por: Luiz Alberto Gómez de Souza.

Sou favorável a análises de uma situação político-social no seu processo de media ou longa duração, sem ficarmos prisioneiros de uma análise de conjuntura que pode ser míope. Mas há momentos em que as urgências se impõem. Quero então distinguir os dois tempos, urgências e processo, que, claro, mais adiante estão interligados.

Vários de nós, com um tempo maior, vivemos tempos de tensões, conflitos e radicalizações, no Brasil a meados de 54 e de 64, no Chile no primeiro semestre de 1973. A recordação desses climas sofridos, não deixa de afetar-nos, mas não podemos permitir que ela nos envolva e paralise. Sem deixar de lado uma reflexão mais abrangente – voltarei a ela adiante -, somos chamados em alguns momentos críticos a tomar decisões no imediato. Como quem está construindo uma ponte que demanda tempo e tem de interromper a tarefa, para enfrentar uma enchente inesperada. É o que ocorre agora, na vida política brasileira.

Há em marcha um movimento para derrubar o governo e, com isso, violar o estado de direito. Neste caso, temos de fazer uma aposta urgente na democracia e no respeito ao que a população decidiu nas últimas eleições. Ninguém esquece que os derrotados, não ocultando amargor, imediatamente depois, tentaram criar uma espécie de terceiro turno para derrubar a presidente eleita. E agora, ao arrepio dos processos judiciários legais, querem pôr na prisão um ex-presidente, para evitar que ele possa voltar, por seu carisma e vigor, como uma liderança em 2018. Tudo num clima de intensa excitação, insuflado por meios de comunicação tendenciosos, vestindo um figurino de falsa objetividade.

Vários são os pretextos. Um é a corrupção. O notável é que nunca como agora tem havido tanta liberdade para puni-la. Mas logo descobrimos que as denúncias e seus vazamentos são seletivos. Buscam-se malfeitos no governo federal e em gestões anteriores de Lula. Como não procurá-los, por exemplo, em São Paulo, durante os governos tucano, no escândalo dos trens metropolitanos? E no que foi conhecido como o mensalão mineiro, anterior ao outro nacional ou nos negócios, pelo menos discutíveis, da privataria tucana? É verdade que agora, afinal, denuncia-se o governo do PSDB no Paraná.

A corrupção é um mal endêmico inclusive a nível internacional, que tem de ser extirpado. Mas agora há total liberdade para fazê-lo. Só que essa tarefa tem de ser ampla e em todas as direções.

Acabamos de ver neste domingo gigantescas manifestações contra a corrupção, pelo impeachment de Dilma e, com força, pedindo a prisão de Lula. Os lugares dos atos são significativos, como na avenida Atlântica, com uma população basicamente branca, exalando rancor. As manifestações correram sem incidentes, pois posições contrárias, com maturidade, não quiseram intervir para não aguçar ânimos, nem dar pretexto de serem acusadas de incitar à violência, o que as marchas deste domingo o fizeram à saciedade. Nada mais longe, pelo tom violento, de um processo democrático e pluralista, onde o dissenso sério e maduro não só é permitido, como bem-vindo.

Dia 18, possivelmente, setores contra o impeachment e em defesa de Lula, farão manifestações que também se espera sejam pacíficas, com um cuidado especial para evitar provocações mal-intencionadas. Certamente haverá uma maior diversidade social, étnica e de classe. Boa parte desses setores que irá participar, defende a democracia contra golpes e atropelos legais, mas não necessariamente está de acordo com as políticas econômicas vigentes. O MST faz muito bem essa distinção e seus tempos de ação.

Não valem contagens apressadas, como num jogo de futebol. Há um Brasil do interior, de pequenas cidades e áreas rurais que não está presente nessas manifestações.

E isso nos leva da urgência ao processo. Diante de grave crise nacional, em tantas dimensões, faz-se necessária uma frente ampla nacional, para além de partidos, com setores, movimentos e pessoas que querem defender a nação e aprofundar mudanças na sociedade e nas políticas públicas. Têm surgido nos últimos meses importantes manifestos, documentos e declarações nesse sentido. Grupos de estudos e debates aprofundam esses pontos. Aí temos a presença de lideranças sociais, políticas e populares as mais diversas, artistas e intelectuais, independentes, procurando indicar caminhos criativos para este país. Este trabalho de profundo cunho nacional é cada vez mais fundamental, quando o capital financeiro internacional em movimento, vê o Brasil como um espaço para suas aplicações, aproveitando-se da crise atual e inclusive ajudando a aguçá-la. Caso emblemático é o do pré-sal. Querendo sangrar a Petrobras que, apesar do que anunciam segue sendo uma empresa exitosa, propõe, através de seus agentes no país, uma política de desnacionalização que pronto chegaria a outras áreas produtivas.

Em sentido inverso, tem havido um processo de construção da nação, que vem lá de meados do século passado e que agora está novamente em perigo, como nos tempos do regime militar. Já houve precedentes históricos, como na derrubada de Mossadegh no Irâ em 1953, pelas polícias secretas da Inglaterra e dos Estados Unidos, em conluio com as grandes petroleiras internacionais. Exatamente no momento em que, entre nós, surgia a Petrobrás, depois de uma campanha nacional exitosa de “O petróleo é nosso”. A Petrobrás nasceu sob os virulentos ataques dos gudins e lacerdas de então. O pretexto geral da campanha de Lacerda era o combate à corrupção, aliás irrisória aos níveis atuais. Isso contribuiu para o suicídio de Vargas e um levantamento nacional que adiou o golpe em uma década. Lacerda voltaria em 64 com os mesmos argumentos, participando novamente num golpe que se voltaria contra ele mais adiante. Confesso que nas marchas como a deste domingo, sinto um certo odor lacerdista.

Olhar longe é uma expressão profética de João XXIII. Porém desde a base da sociedade, como nos ensinou Betinho. Esse enraizamento no real é que nos impedirá de fitar apenas um horizonte mais à frente, deixando de perceber crateras destrutivas que se abrem aos nossos pés. Uma está aí, implacável, sob a forma de um golpe disfarçado e de um atentado à democracia, que nos faria recuar no tempo, como nos idos de 64-85.