por: Ana Maria Gonçalves, Editora Record, 2006.

Mais que impressões, em certos momentos é escarificação de leitura, que por um lado remete àquela tatuagem sem tinta, por outro a corte na carne mesmo. Mas antes do tema, algumas observações pessoais. Não há literatura sem leitor e leitura, nesse sentido tem sido frágil, incompleta, nossa “literatura brasileira”, só de autores e editores. Quanto a leitura, aqui significando a transformação, em milésimos de segundo, de fieiras de palavras escritas, num misterioso e fugaz mundo que guarda sentido com o mundo real e imaginado em que vive o leitor concreto, não o abstrato. Na minha opinião, o principal critério para classificar uma obra no campo da literatura é o leitor. Se identifico minha pertinência a um certo segmento histórico e social, e se o texto em minhas mãos remete ao meu universo simbólico de leitor negro, afro-descendente etc., então essa literatura é negra, é afro-descendente. Não existe o “universal”, espúria criação da cultura que se assume hegemônica, espúria porque com o conceito protesta para si mesma excelência que jamais teve. Toda produção cultural tem raiz num determinado chão do Planeta. A fruição da obra é que é particular. A soma dessas fruições particulares não cria nada de universal, cria um conjunto particular mesmo. Encontrei na obra aquilo que, penso, o autor quis passar: um presente (ou presença) do passado ou seu futuro, de seres humanos e mundos específicos…O que encontrei, parece, já estava em nossas células e sinapses, talvez por termos sido humanizados numa imensa Ba(h)ia, de que são tributárias correntezas culturais (e históricas) oriundas de vários continentes e eras.

Eis o grande e ímpar atributo de Um defeito de cor: nos provar que o sentimento de brasilidade que nos é específico, brasilidade afro-descendente – o seqüestro, os três séculos de trabalho sob escravidão, a obra de povoamento e humanização das Américas nos próprios ombros, 500 anos de trabalho pesado em regime de pobreza, racismo e exclusão, essa saga que é só nossa, devia impor a reverência dos demais grupos humanos, mais ainda, devia ser vista e valorizada como parâmetro para um novo mundo, ou não teremos novo mundo nenhum. No momento em que termino este parágrafo vem-me à mente, e registro, a figura de dois jovens, menino ou menina, mas negros, quietos, humildes e humilhados no canto de uma sala de aula de escola pública brasileira, onde um professor de história, “um crente” convicto nas lendas da assim chamada civilização greco-romana-judaico e cristã, conclui sua exposição sobre “povos superiores e inferiores que constituem a população brasileira…”. E essa cena ocorre todos os dias, não obstante quase quinze anos de existência de lei que visou pôr fim a esse tipo de discurso.

AS IMPRESSÕES

Na minha apropriação dos diferentes olhares que viram, viveram e escreveram, ou seja, na minha leitura e resenha, desconsidero qualquer voto de obediência a princípios que visem certificar como culto, acadêmico, o meu olhar de leitor. A leitura é minha, vejo o que quero. Assim, com o que já tinha na cabeça ao fazer meus, os olhos que direta ou indiretamente viram e narraram, eis o que, puxando pela memória, sinto que vi:

Muito me marcou o ataque à aldeia de Kehinde, lá naquele ponto perdido após a região do Sahel, lá pros lado do Benim, quando ela e a irmã gêmea Taiwo, na faixa dos cinco, seis anos, percebem a chegada dos soldados do rei Adandozan, destruindo as aldeias à cata de prisioneiros a serem vendidos como escravos. A cena se completa com o assassinato do irmão Kokumo, bem mais novo que elas, e o estupro e assassinato da mãe pelos mesmos soldados. Na mesma cena, a forçada e incompreendida masturbação aos dois soldados por essas meninas, o membro duro em suas pequenas mãos, sem função ou sentido, a sobrevivência delas e da avó por obra do destino, a fuga para Uidá, onde nos dias imediatos há o seu seqüestro, tomadas como mercadoria enquanto passeavam quase à frente de casa, só queriam conhecer o que lhe disseram ser a cidade, o embarque no tumbeiro, a avó implorando para acompanhar as netas no cativeiro, a reverência africana ao traficante português, considerado um deus, a travessia da avó e das netas gêmeas, o cúmulo da promiscuidade e podridão do porão do tumbeiro, o imposto cobrado pelo mar, “no mínimo 1 em cada 20 fica comigo”, a lógica do negócio sujo impondo aos donos da carga a concessão de um mínimo daquele algo que possa ser entendido como arremedo de “bom trato”, sob risco de perda total da carga.
Na sucessão de eventos não há decalque ou referência a essa ou àquela narrativa moral preexistente, e já estamos no início do século XIX, ou seja, para os europeus, as teses iluministas vivem sua pós-adolescência, 18 séculos de prédica filosófica e evangélica já se passaram, embora nesse então como ainda hoje, dois séculos após, religião e filosofia, se não promovem o modo de produção da existência real, aqui e agora, são descartáveis.

No nível da justificação moral a partir da visão do mais forte, seja este europeu ou as elites africanas, seqüestro e escravidão são percalços do encontro de povo civilizado com povo sub-bárbaro (visão européia), ou resultante do exercício de prerrogativa da nobreza e do poder, caso africano. No nível da ação, da práxis como se diz, todos são bárbaros, sub-bárbaros, agem consoante a lógica de um sistema de trocas rebelde a qualquer análise que contemple valores transcendentais concernentes à vida, ao sentido do viver ou do morrer. O brilho da fruição mágica, imediata, da bugiganga reluzente, inerente às moedas no processo de trocas no capitalismo apaga a noção de “um lado de lá”, de um Paraíso lá…O Paraíso é aqui e é seletivo, não há ilê orum.
Na África, o poder político discricionário, através de indivíduos ou de famílias reinantes, quer ter acesso aos bens da Europa em sua dita primeira revolução industrial: do charuto à cachaça, do espelho, do açúcar e da pólvora, às armas de fogo. Lembremo-nos de nossa própria época: o tênis de grife, o andróide, o iPhone. Circunstancialmente, na África de então o bem de consumo de maior demanda é o ser humano, abundante no imenso continente, “uma peça” forte e pejada de cultura, máquina viva de produzir riqueza, mais ainda, máquina viva de produzir riqueza e civilização de modo sustentável…Mas para que seu valor seja o mínimo possível, cumpre ver esses seres humanos como animais.
Na outra margem do Oceano há um mundo a ser integrado à força às trocas planetárias, é o Eldorado, no qual, segundo o olhar europeu, o nativo bruto e idiota não sabe a riqueza que tem, riqueza e descaso quanto a ela suficientes para imantar, exacerbar e justificar a invasão, a desapropriação, escravização e tutela num quadro de dominação planetária e multissecular.

Insisto na inserção de dados acessórios que julgo pertinentes na constituição de um quadro explicativo para os dramas que a narrativa nos oferece. É a primeira vez na história da espécie que expedições de rapina e conquista, durante 5 séculos, já que até hoje nada mudou, vão e voltam às terras do butim sem que nesse ir e voltar temam encontrar qualquer reação, qualquer julgamento punitivo dos atos criminosos aí cometidos. Até o fim do século 15, se uma caravana saía de Pequim, Moscou ou Bucareste para “ir fazendo” comércio até Constantinopla, seguindo itinerário essencialmente terrestre, conclui-se que essa caravana, um pequeno exército em deslocamento, ia atravessando a morada de uma imensa variedade de povos e civilizações…Daí o fio da navalha: a guerra ou a diplomacia… Mesmo porque, esgotados os estoques levados para as trocas, cumpria que ela, a caravana, voltasse, de preferência pelo mesmo caminho por onde passara. Um ato de violência, um erro, um deslize diplomático cometido e não sanado na ida, era julgado e punido na volta… É da mais tenra Antiguidade a noção de um Direito Internacional.

Isso não valeu para a conquista das Américas e invasões ao território africano. Era ir, barbarizar – um falo cheio de gonorréia, e voltar milionários e como heróis. Eis os pontos notáveis no itinerário de volta: o porto no território invadido, tornado fortaleza do invasor, o oceano e o lar, o Paraíso…Não é de estranhar a áurea de paraíso que envolve a Europa no imaginário do colonizador… Não havia (nem mesmo hoje há) algo como uma CPI – Corte Penal Internacional (estou me valendo da ironia) para julgar os crimes inerentes às invasões européias. Tornados heróis pelas circunstâncias históricas, nos últimos 500 anos é planetariamente criado um modo de viver, de estar no mundo quer como agente, quer como paciente, em que circunstancialmente deixava e deixa de ser crime aquilo que a narrativa dita cristã (ou jurídica de todos os povos) vinham considerando como crime havia e há séculos – a escravidão em particular, juntamente com todos os atos antijurídicos já consagrados na legislação de povos marciais como os romanos e demais povos antigos – assassinato, roubo, estupro, seqüestro, tortura sob todas as formas… Expliquemos outra vez: deixava e deixa de ser crime desde que esses atos ocorressem (e ocorram) na África, no chamado Novo Mundo e em várias outras correlatas regiões do Planeta, “e tivessem como vítimas os nativos dessas regiões e como agressores os europeus hegemônicos”. Vide recentemente a Líbia.

Vejam a tremenda ironia: para que o “ente” Mundo ganhasse existência, para que nascesse o fenômeno Mundo, e para que “uma” humanidade nascesse e se conhecesse em “tempo real” (mesmo reconhecendo a força do racismo) cumpriu, a partir de 1492 e até hoje, voltar-se à Barbárie…e é dela, dessa Barbárie muito cara e vantajosa aos herdeiros daqueles europeus invasores, que desde esse mesmo 1492 nós, as vítimas, os não-brancos, temos tentado nos livrar, à medida que superamos a lavagem cerebral recebida. Um defeito de cor tem como cenário etapa crucial do fenômeno de nascimento do Mundo, da Humanidade diversa e interligada em tempo real, que começa a nascer com a chegada dos espanhóis à América.
Protagonistas e coadjuvantes – aquelas, mulheres; esses, eventualmente homens.

É o mundo sob o olhar feminino. Kehinde ou Luisa, (ou dependendo do leitor, Luisa Mahin, mãe de Luis Gama, o qual se tornará seu Santo Graal, a cuja procura ela consagrará a vida) nasceu guerreando e guerreará por toda a vida na trans-secular luta pela re-civilização não desse ou daquele homem/mulher, mas da Humanidade, do Mundo. Ela é filha da Mundialização… Seu filho Bonjoko cujo pai português é a primeira relação estável e digna que ela teve como mulher, vira alcoólatra e perdulário, donde a solução pela venda do filho na fase dos 8 ou 10 anos. Bonjoko, tornado escravo, vira um ponto cego na narrativa, a mãe do lado visível do espelho à sua procura pelas províncias de São Paulo e Rio de Janeiro; e ele, sem forma na consciência do leitor, a exigir cuidados, compaixão, solidariedade com a mãe, votos de um rápido reencontro… Essa trama é o que reforça a compreensão de Um defeito de cor como a saga da diáspora africana no Brasil, tanto no que tange à sua permanência em solo brasileiro, quanto no que tange ao retorno de Luisa à África, que nada terá de heróico ou romântico, como o Fantástico da Globo gosta de nos mostrar. O mal-estar provocado pelo seqüestro e escravização de 100 milhões de seres humanos grassa e por muitos séculos ainda grassará em todos os cantos do Planeta. Cumpre re-civilizarmo-nos todos, ou não nos civilizaremos. Para Kehinde e para os demais olhos e olhares que dão nexo e forma à narrativa, essa re-civilização passa pela re-significação das práticas e valores que respondam pela sustentabilidade da vida no Planeta, é o que ela nos diz nas 947 páginas do seu relato.

Para operar essa re-significação, ela, sem passar por qualquer outra escola senão a do mundo, aprende várias línguas e linguagens, o falar, ler e escrever em português, o falar em inglês, em iorubá, em ewe e em fon, além da linguagem do comércio dito legal e ilegal, inclusive as linguagens e hábitos que a distinguirão do nativo que ficou isolado na floresta. Seu processo pedagógico foi a interação, a comunhão em laço de amor com brancos, negros livres e escravos oriundos de todos os rincões da África…Escravos e livres ativos em suas organizações populares – candomblés, mesquitas, roças, ordens religiosas, associações beneficentes e de pecúlio. Não é àtoa que qualquer governo ditatorial impõe o fechamento das organizações populares. Mas jamais Kehinde se aparta das linguagens (liturgias) que tentam operar a comunicação entre este e o outro mundo. Sem preceptor moral ou religioso vivo, guarda da avó e re-atualiza no fervilhante e dinâmico mundo dos escravos no Brasil do século 19, o patrimônio religioso africano: os dois mundos, as origens míticas e dignas de todos e de cada um, o culto aos ancestrais masculinos e o culto a Iyamin oxorongá, ancestral mítico de todas as mulheres. No mundo africano não há redenção ou pecado original, não há diabo, pois não se admite que Olorum tenha-se distraído a ponto de, num momento, criar órgãos correlatos para a reprodução, perpetuando a vida, e noutro considerar esses órgãos e forma de reproduzir como indignos, putrefatos, malignos, pecaminosos. Na África, o que se poderia chamar de putrefação, decaimento da matéria orgânica, é fase do ciclo da vida. Laroiê, Exu.

Em relação aos nossos dias, ela nos surpreende pela justa observância dos ditames da existência tolerante benigna, aqui e agora e não num mundo ideal. No armazém de escravos, ela sabe que naquele momento é mercadoria, e que nada poderá mudar sua condição de escrava…Deixando de ser criança, que aliás nunca foi, ela conclui que não pode ser mercadoria encalhada… Antecipando o risco de reprimenda com chicote, ela dança e faz gracinha para chamar a atenção do seu futuro “sinhô” que a compra, de antemão sabendo o que vai acontecer.
Ao contrário de muitos africanos hoje, ela não cultiva a homofobia. Ela está sempre acima da ganga impura da moral do mundo de então e de hoje…Se muitos africanos hoje dizem não haver nos idiomas nativos palavra para gay etc., ela os desmente e chama logo a diferença pelo nome angolano, jimbanda, o qual, como o conhecido chibungo deve ter correspondentes nos demais idiomas africanos. Tudo que é humano é africano.

No período da efervescência da revolta muçumirim em Salvador, ela contrata Jongo e Adriano, escravos fugitivos, formando casal gay que em seu sítio terão direito a quarto separado. No seu retorno à África, ela também contrata como auxiliar e valete de companhia o múltiplo artista e performista Van-Van. Nas coisas relativas à reprodução humana e ao amor, ela é naturalista, ou seja, naturalmente à vontade, compreensiva, bonançosa, aberta. Aliás, para quem procura os pontos cegos na narrativa, é aqui, nas coisas essenciais da vida – o amor, o parir, o nascer e morrer, o gozo, a paixão e a tesão, o sofrimento e a alegria, a sorte ou o azar, o destino, a criança, o jovem, o adulto, a velhice, é nesses momentos e espaços da vida que através das personagens se dá o embate entre as culturas africanas e a européia, e as africanas vencem de lambada mesmo…Venceram ontem e vencem hoje, não obstante as práticas racistas, em especial a política de extermínio levada a cabo pelos órgãos de segurança das metrópoles brasileiras.

OS BRUTOS TAMBÉM AMAM

Já sabemos que, se titulares diretos do empreendimento escravocrata, desses europeus nada se exigia senão retirar à força, as energias dos escravos, atividade e ação que exercem teatralmente, isto é ritualisticamente, através de prepostos especializados nas diferentes áreas da exploração colonial: na época, a fazenda, as minas, a caça à baleia, ainda chamada pesca, as lides domésticas, os ofícios exercidos pelos escravos de ganho, que vão desde o saneamento – jogar o cocô deles fora – os Tigres, passando pelo transporte de coisas e pessoas em toda a sua extensão até a satisfação da mais sofisticada fantasia sexual do sinhozinho, sinhá ou sinhazinha… Demais atributos desses senhores podem incluir a lassidão mental como valor de casta, a preguiça como valor moral a ser cultivado, a permanente predisposição à morte e tortura de seus escravos, o racismo radicular, a idiotia, a luxúria, a gula exorbitada, a afetação e vacuidade intelectual e religiosa, enfim. O lar deles reconstitui-se para conviver com a escrava e o escravo “de casa” – jovens em sua maioria. Aquele permanente cheiro de sexo exsudado por corpos negros sob o calor tropical, sexo que se desabrocha à vida, promiscuamente misturando-se ao cheiro das sinhazinhas e sinhozinhos, ainda não afetos ao banho diário, sob o olhar repressor do predador-mor, o “sinhozão”, ou furtivo, malicioso, sempre à espreita, do padre confessor e das sinhás. Aliás, a instituição do padre confessor na casa grande brasileira é tema que devia interessar a academia, se é que está mesmo à procura de conhecimento novo… Como seres humanos iguais aos demais, os europeus, de um modo geral e sob o contexto da escravidão e da moral daí decorrente, vão manter vida dupla, desse modo determinando algumas das contradições até hoje vivas na sociedade brasileira.
Ainda no campo dos pontos cegos, há muito a dizer. Por viverem como senhores de escravos, portanto “civilizados”, bonequinhos de louça, pessoas como Ana Filipa e seu marido José Carlos de Almeida Carvalho Gama desempenham papéis cujos scripts são invariáveis há milênios, desde Roma antiga até o Caribe, a Jamaica, Cuba e Haiti ou Salvador, Rio de Janeiro. Vivem o papel de senhores de escravos, material e intelectualmente superiores por decreto, mesmo que sejam vítimas de doenças genéticas como a microcefalia. Para manterem os predicados imprescindíveis ao papel e à função que desempenhavam, bastava que cultivassem a violência em suas mais elevadas formas de manifestação – num acesso de raiva, Ana Filipa arranca, com seus dois dedos, um a um, os olhos da escrava que, vítima de estupro, dera a seu marido José Carlos o filho que seu útero seco e murcho jamais pôde dar. Possessa de ciúme e noção de inferioridade, depois do crime (que como sabemos não será visto como crime) ela embrulha os órgãos da pobre mulher e lhe manda entregar, com o recado de que “terá o filho bastardo sim, mas nunca o poderá ver”… Ato que, no nível da sua relação com o esposo, marca o retorno da lua de mel para ambos, ele viu que era amado e puf, voltou a tesão pela esposa estéril e fria.

Inimiga atroz de Kehinde, que como já se sabia desde a compra no armazém teria seu hímen violado e útero fecundado pelo José Carlos, Ana Filipa, algum tempo após a morte deste, para não ter competidora quer como mãe putativa do filho de José Carlos com Kehinde, o Bonjoko (que ela transfigura como seu e do marido morto) quer no desfrute sexual de um jovem escravo, eventual namorado de Kehinde, Ana Filipa após anos de perseguição à jovem escrava, a aluga a uma família inglesa; depois, querendo-a mais longe, torna-a escrava de ganho e ordena que vá se virar nas ruas de Salvador.

A trama que leva à morte de José Carlos é um rosário de atos violentos. No dia do estupro, ele manda que seu capataz avise a Kehinde que a espera num cubículo da fazenda. Lourenço, escravo na mesma idade da jovem virgem e seu admirador, movido pelo ciúme tomou a defesa da vítima, empurrando ou dando um soco no garanhão sinhô Zé Carlos…Deu-se mal. O garanhão deu-lhe castigo exemplar. Ali mesmo, os três num cubículo, ele possesso, não só possuiu Kehinde, como também sodomizou o pobre Lourenço e a seguir o castrou, decepando seu membro à faca e a sangue-frio. Mas a vingança sobre ele foi brutal. Uma serpente sob os lençóis do leito conjugal pica-lhe o pau, condenando-o a uma morte vil. Viúva, Ana Filipa acrescenta ao seu script a administração da fazenda e o exercício de mãe vicária, substituta, de Bonjoko, filho de Kehinde, menino que por um lado é escravo, coisa, propriedade sua, e por outro, o filho do homem que, à sua maneira, ela amava, logo em certo sentido seu filho também…Na dinâmica dos sentimentos, contradição em cima de contradição.

No caso do Brasil e Caribe, com o escravo a religiosidade africana transplanta-se, vem agarrada à sua pele. A história do ritual das sete portas ou doze árvores, ritual a que o escravo antes de embarcar era levado a submeter-se com o fito de esquecer sua cultura, esse ritual se existiu não produziu efeito no Brasil. Em Salvador há vodum com vodúnsis, inkisi e encantados, há candomblés, cada qual cultuando seus orixás, com pai de santo e com mãe de santo, há parteiras e rezadeiras na tradição africana , há jogadores de búzio, sacerdotes de Ifá, há adivinhos e feiticeiros muçulmanos, há uma sofisticada culinária milenar, enfim, há a Umá brasileira (termo que significa a comunidade dos crentes muçulmanos) organizada em torno dos seus Mala, Limane e Alufá. São esses homens e essas instituições culturais que aos escravos e aos europeus vão dar respostas definitivas ou provisórias sobre toda a gama de questões essenciais à vida na dimensão do indivíduo e do coletivo: e o “meu” destino, “meu” futuro, a minha saúde, a “minha potência sexual”, o “meu” feto, o meu filho, meu trabalho, meu emprego, minha dor, meu sofrimento, sorte, azar, meus chifres, meus crimes, minhas culpas, meu inimigo, “meu” amor?.. “E Meu orixá, meus santos, e o pacto que meu filho abiku fez lá no Olorum?

A cultura européia será muda a essas questões ou, no máximo, vinculará respostas ditas “cultas”, condicionadas à renda e erudição do demandante. Ao contrário, para a África, não há outra função que se possa dar a essa coisa que o branco chama de “narrativas estruturantes” senão a de atender ao homem/mulher, independente da condição social, religá-lo a uma outra dimensão, fazendo com que esse ser humano seja de fato cidadão de dois mundos, aliás, como o é tudo que há no “Multiverso”, antes chamado Universo.

É aqui que o africano tornado coisa, como o foi Kehinde ou Luísa, se levanta como criador de civilização. E dado que a escravidão no “Mundo” (não nos feudos civilizados da Antiguidade) é negra e só negra, todas as contradições do escravo manifestam-se aberrativamente sobre o homem e mulher de cor, isto é, negro ou negra: são dignos e lindos, mas tornados índices da feiúra e da indignidade; primeiros humanos, mas no olhar do europeu são tornados coisas, mutação genética degenerada que não obstante, continuam a inventar e propagar cultura e civilização; enfim, se maioria, são tornados invisíveis e passam à minoria. Cúmulo da ironia, deletado da História Universal dos alemãs (coisa ridícula esse tipo de história universal), o mundo negro africano faz do mundo dito ocidental tremenda mentira. Sem a África como berço da civilização, tudo vira mentira. É ridículo o multissecular afã supremacista por tornar branco os 5 mil anos de História do Egito.

Um passeio despretensioso nas searas do vocabulário
As palavras desusadas podem ser vistas como testemunho fóssil de eras e ambientes sócio-políticos carregados de construções simbólicas populares cuja manutenção ameaçaria o poder (aliás a história oficial existe para nos esconder tudo aquilo que possa potencializar nossas formas de organização). A análise ao material vocabular de Um defeito de cor aqui e ali confirma essa hipótese. Nesse sentido, a ocorrência de termos adaptados ao nosso falar, mas de origem árabe ou mesmo de línguas africanas, iorubá e hauçá principalmente, ilustram uma hierarquia de postos consolidada na Umá (comunidade de crentes do Islã) da Bahia e mostra o que nos esconde a história ensinada às massas, ou seja, o Islã ainda na primeira metade do século XIX foi religião implantada e estruturada pelo menos na Bahia. Assim, o Ímã, aquele que numa mesquita dirige o culto, na Bahia torna-se o Limano, do árabe el mány conforme a autora; enquanto aquele mais culto entre os clérigos, al mu’allim, na Bahia torna-se o Mala, ao lado do alufá e do bilal, cargos sacerdotais. Machacali é o termo para a mesquita, enquanto baraka é ao mesmo tempo o ato da bênção como a força espiritual que a legitima. Ainda no âmbito religioso, outra palavra muito usada na Bahia era tira, na expressão “tira do Bonfim”, significando o que hoje para muitos é fita ou fitinha…Tira, nos revela a narrativa, era para o muçurumin o equivalente do escapulário de alguns sacerdotes das nossas ordens católicas. Notável foi a entrada em cena do casal gay Jongo e Adriano, até por que Jongo era da famosa e misteriosa etnia Jaga, temida e odiada pelos portugueses, que em princípio não os traziam para o Brasil mesmo como escravos. Os Jaga tiveram a atenção mundial (no mundo da esquerda, é claro) quando da revolução angolana…Dizia-se então que desde o momento em que o MPLA fez aliança com eles, estava praticamente garantida sua vitória. Os Jaga, dizia-se, em combate tornam-se canibais…

A liamba, ou a maconha, está sempre presente entre os negros como vetor de revigoramento, de distensão e alegria, de liberação frente ao permanente estado de tensão inerente à condição de escravo. Das palavras do baianês que desapareceram dos anos 50 para cá, está lá a taioba, a folha de taioba, muito cara à minha meninice, que substituía a carne na panela do pobre…Está lá também a palavra farnel, significando a ração geralmente seca que se levava em qualquer deslocamento que impossibilitasse fazer as refeições regulares…Dos 50 aos anos 80, passou a ser marmita; talvez hoje seja lanche, de lunch. Fiquemos por aqui… Adorei o livro, vicariamente sofri e ainda sofro com o sofrimento dessa mulher fenomenal, a nossa querida Kehinde. Infelizmente, o povo não lê numa sistemática e intensidade que viesse a justificar nos próximos dez ou vinte anos permanentes ciclos de palestras e discussões informais sobre a obra. Lembro-me que quando Jorge Amado lançou seus best-sellers, Tereza Batista cansada de guerra, Dona Flor e seus dois maridos, Gabriela, cravo e canela, Os velhos marinheiros, entre outros, o número de leitores em relação à população afro-descendentes era muito maior…A novelização televisiva ocorreu porque houve sucesso no mercado leitor. Infelizmente, lê-se muito pouco hoje. Mas mesmo entre os que constituem “esse pouco”, cumpre ao negro e à negra ler Um defeito de cor, para que vislumbrem com reverência cenários da luta que nos trouxe de África até aqui, às vésperas de mais um golpe à frágil democracia brasileira que tem nesse defeito de cor a principal causa de repúdio por parte dos brancos….

Itaparica, 14 de março de 2016, ABS

Resenha de Ailton Benedito de Sousa