Roberto Amaral /
O Estadão (29 de julho, p. A6) diz que o “Brasil volta a negociar uso de base de Alcântara com os EUA.” Há, no título o primeiro erro, pois não se trata de uso de “base de Alcântara”, que não existe, mas de cessão de território estratégico brasileiro, para que nele os EUA e, mais tarde,“europeus e japoneses”, continua o jornal, instalem bases para lançamentos de satélites, suprindo assim suas (deles) atuais carências, exatamente aquelas que hoje tornam concorrencialmente viável o projeto espacial brasileiro – o qual tem (ou deveria ter) objetivos estratégicos determinantes e fins comerciais secundários.
Os europeus não devem ter interesse na empreitada, pois já possuem, em pleno funcionamento, a base de Kourou, na Guiana Francesa, cuja localização geográfica, a 5,0º ao Norte da linha do Equador, preserva algumas das muitas vantagens oferecidas pela península de Alcântara, no Maranhão. Ela poderia interessar aos russos, pois suas atuais bases de lançamento, como a de Baikonur, mediterrâneas, exigem o sobrevoo do satélite sobre áreas habitadas; mas eles estão associados aos franceses em Kourou, de onde serão lançados os foguetes Soyuz, e com ucranianos, noruegueses e norte-americanos da Boeing trabalham o lançamento de satélites a partir de um navio lançador, o Sea Launch, fundeado na linha do Equador. Coisa que até aqui, felizmente, não se revelou comercialmente viável. Por enquanto, portanto, a abertura de Alcântara é o seu fechamento para a exploração dos EUA, e o anunciado réquiem de nosso projeto de programa espacial autônomo.
A matéria diz que as discussões são levadas a cabo pelo Itamaraty, “que espera ter um acordo pronto para ser assinado na visita da presidente Dilma Rousseff a Washington, em outubro”. Como se vê, ou a coisa vem de longe ou é levada a toque-de-caixa. A primeira hipótese é a mais provável, é o que deduzo de mais uma informação do jornal, aquela que diz que “o assunto é ainda classificado como secreto pelo governo”. Mas eu me pergunto: como é secreta informação à qual o jornal tem acesso? E me pergunto, ainda: por que matéria de tal relevância é tratada de forma secreta? Em qualquer hipótese, não sabemos a opinião da Agência Espacial Brasileira – AEB, autarquia brasileira encarregada legalmente de monitorar o programa espacial brasileiro (Qual sua parte nesse negócio? Foi tudo feito à sua revelia?). Não se conhece a opinião do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais- INPE (responsável pelo programa brasileiro de satélites). Não se sabe, tampouco, a opinião da Alcântara Cyclone Space-ACS (a bi-nacional resultante da associação do Brasil com a Ucrânia, responsável pela construção, em andamento, em Alcântara, de uma base habilitada ao lançamento do foguete, médio, Cyclone-4). Não se sabe, a opinião do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, a cuja jurisdição estão subordinadas essas instituições. E não se conhece a opinião da SBPC, tão fogosa e falante nos idos de 2003. Se alguém sabe de alguma coisa, a reportagem sonegou aos leitores essas informações.
E a cidadania não sabe, nem lhe é dado saber, qual a importância, para seu cotidiano, de um programa espacial, que controla desde o espaço aéreo de nosso país à prospecção de nosso território, passando pelo controle das comunicações e das condições meteorológicas e de nossas safras.
Mas voltemos ao Estadão.
A mesma matéria, assinada por Lisandra Paraguassu, diz que “O governo vê a localização de Alcântara – que, segundo especialistas, reduz em até 30% o custo de um lançamento – como um ativo que deve ser explorado, inclusive para financiar o próprio programa espacial brasileiro”. Esse é raciocínio típico de contador, passando ao largo de todas as questões estratégicas.
Expliquemos.
Nossa única vantagem, posto que não dominamos a tecnologia de lançamentos (dependente do êxito da ACS) é geográfica, isto é, deriva da proximidade de nosso litoral Norte-Nordeste em relação à linha do Equador: o município de Alcântara está a 2,2º e o Nordeste brasileiro a 3,2º Sul do Equador, e Kourou, vimos, a 5,0º ao Norte. São duas as vantagens nossas daí consequentes. Primeiro de tudo, essas condições nos possibilitam realizar, a partir de um único centro, lançamentos em todas as direções de órbitas utilizadas para os satélites e outras espaçonaves. Os EUA são obrigados a ter bases nas suas costas Leste e Oeste, e a Rússia em várias áreas de seu território e mesmo em outro país, o Cazaquistão.
Às vantagens decorrentes da proximidade com o Equador, somam-se, ainda no caso brasileiro, condições favoráveis de segurança, pois, além de evitar sobrevoos sobre regiões habitadas, dispomos de todo o mar como área para retombamento dos estágios e coifas (‘narizes’ de foguetes, onde armazenam-se cargas) que são ejetados durante o voo. E essas vantagens fazem cair as despesas com seguro, baixando ainda mais os custos de quaisquer lançamentos a partir de Alcântara. Enquanto isso, para evitar acidentes e invasão de territórios estrangeiros, os veículos que partem dos cosmódromos russos são obrigados a proceder a grandes e custosas manobras em voo, determinantes de maior consumo de combustível e de perda de capacidade de colocação de carga útil em órbita. Os lançamentos a partir das bases dos EUA também precisam efetuar manobras – custosas – para entrar em órbita no Equador.
A grande vantagem geográfica brasileira é, além do litoral aberto, a proximidade com o Equador.
Como vemos, por estarem localizados no hemisfério Norte, os veículos da maioria dos países do clube espacial, para entrar em órbita equatorial, têm de fazer uma manobra (denominada em inglês dog leg)para injetar seus foguetes em órbitas equatoriais, o que exige muito mais combustível, em comparação a lançamentos realizados na proximidade da linha do Equador, como é o caso do Centro Espacial de Kourou e será o do futuro Centro de Lançamentos da ACS, o nosso, o qual não requer a manobra adicional. De acordo com as leis da mecânica espacial, quando um lançamento é realizado em direção ao Leste, e o mais proximamente possível do Equador, conta com a vantagem total da rotação da terra, com o chamado “efeito catapulta” maximizando a carga útil e, em consequência, minimizando o custo de lançamento.
Qual é o nosso patrimônio, único? A localização, que torna os lançamentos a partir de Alcântara altamente competitivos, ao proporcionar uma redução, reconhece o jornal, de até 30% do custo (estimado entre 25 e 30 milhões de dólares) ou um acréscimo de 30% no peso da carga transportada, em face, por exemplo, de um lançamento dos EUA ou da Rússia. Insisto: somente esta vantagem geográfica nos torna competitivos em face dos EUA, da Europa, da Rússia, da China e do Japão.
Qual a proposta comercial de nossa única base de lançamentos, a futura ACS? Disputar o mercado internacional de satélites, a começar pelo maior de todos, o dos EUA, oferecendo-lhe lançamentos mais baratos. E o que anuncia o jornal? Que vamos jogar fora essa vantagem competitiva. Quando os EUA e os demais concorrentes puderem fazer seus lançamentos a partir de Alcântara, transferiremos para eles a economia dos 30%, e os nossos lançamentos e os deles passarão competir no mercado com o mesmo preço, donde o total desinteresse de proceder a lançamentos a partir de nossa base. O que sobrará para o Brasil? De player, nosso projeto original, seremos, a partir da concretização dessa nova política, mero agente imobiliário.
Eis um caso ilustrativo de como, quando não se tem estratégia própria, adota-se a estratégia do outro – julgando aproveitar, assim, maravilhosas vantagens. Ou, dito de outro modo: é difícil, impossível quase, fazer política soberana em país ocupado ideologicamente.
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Roberto Amaral é ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-Diretor geral da Alcântara Cyclone Space (ACS).
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Artigo publicado na revista Carta Capital online em 08 de agosto de 2013. Link.