O que fazer para que o Brasil tenha um programa espacial independente em tempo recorde e sem dispêndio de investimentos vultosos? Roberto Amaral escreve sobre os impasses a serem suplantados para que o programa espacial brasileiro (PEB) se desenvolva de forma independente. Mas também apresenta alternativas. Entre elas está a busca de uma parceria internacional, cuja cooperação inclua a transferência de tecnologia. Mas qual seria o parceiro ideal para transferir a tecnologia de que precisamos? Os líderes Rússia e Estados Unidos? Os grandes asiáticos China e Índia? A União Europeia? O Canadá? Ou a Ucrânia? Mas o Brasil está preparado para receber a nova tecnologia de que precisamos?
Roberto Amaral responde a essa pergunta, apontando os principais problemas que entravam o pleno desenvolvimento do nosso programa. E, a partir desse diagnóstico, apresenta sua proposta para recriar o PEB considerando as conquistas já estabelecidas.
Sua proposta deve ser discutida por todos os brasileiros que se preocupam em garantir a soberania do nosso país. Afinal, ressalta o autor, o Brasil não pode mais prescindir de um programa espacial se quiser se tornar uma potência nos próximos anos, e assumir sua posição de ator no cenário internacional.
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1. Introdução
A atividade espacial de qualquer Estado é determinada pelo seu nível de desenvolvimento tecnológico. Sua contribuição para a economia e as tarefas de defesa, de segurança e comunicações em geral, vem crescendo nos últimos 50 anos, e continuará a crescer de forma exponencial nas próximas décadas. É, certamente, um dos principais desafios estratégicos reclamados pelo século XXI, em face do papel crucial desempenhado pelo sistema satelital na vida moderna.
Como é sabido, um programa espacial compreende (i) veículos lançadores, (ii) satélites e espaçonaves (isto é, o que lançar) e (iii) outros equipamentos espaciais (principalmente científicos) que integram o sítio de lançamentos. O aspecto chave que determina o nível da ciência e tecnologia espaciais é a criação de um moderno veículo lançador juntamente com uma desenvolvida infraestrutura terrestre, e a disponibilidade de satélites nacionais, o que assegura um processo controlado de desenvolvimento e de implantação de uma política independente no campo das atividades espaciais. A tal conjunto pode-se chamar de Programa Espacial Completo.
Por razões óbvias, qualquer política de ciência e tecnologia deve compreender o desenvolvimento da atividade espacial como plataforma indispensável para que o país, atendendo às suas necessidades internas, desempenhe sua projeção na comunidade internacional. Essas considerações se aplicam a todos os países desenvolvidos e aos hoje ditos emergentes, mas se aplicam de forma especial ao Brasil, quando consideramos sua posição geopolítica, seus compromissos internacionais, extensão territorial, produção agrícola, reservas minerais, fronteiras desabitadas − 15.735 km e nove países (mais o departamento Guiana Francesa, anacrônica projeção europeia) − um litoral de 7.367 km (onde se encontram a maioria de suas capitais de Estado e grande parte das indústrias, universidades e centros de pesquisa), e as riquezas conhecidas (e ainda por descobrir) da plataforma submarina, um espaço marítimo que pode alcançar 4,5 milhões de km2, ou seja, mais da metade do território nacional.
Não é acaso, pois, que, hoje, todas as grandes potências e aquelas que têm justificadas expectativas de se tornar potência nos próximos 50 anos, disponham de programa espacial avançado.
O Brasil é a teimosa exceção.
2. Custo de um programa espacial completo
A história do desenvolvimento da cosmonáutica revela como a conquista do espaço sideral é processo extremamente oneroso, que requer lenta maturação dos investimentos e, infelizmente – como demonstra até mesmo a pequena experiência brasileira – alto custo em perdas de vidas humanas. Essa verdadeira gesta pode ser ilustrada com a história dos pioneiros programas espaciais dos EUA e da URSS, impulsionados pela Guerra Fria, os quais custaram US$1,8 trilhão e US$1,6 trilhão, respectivamente, e 50 anos para atingirem os estágios em que se encontram[1]. Não precisamos, porém, gastar tanto, nem podemos esperar por tanto tempo.
O desenvolvimento tecnológico conhece outros caminhos, como aquele seguido por alguns países que hoje possuem um robusto programa espacial, como China, Índia e Japão. No caso dos dois primeiros, os bons resultados em pouco tempo decorreram do fato de a URSS − nos anos 1950 no caso da China, e de 1960 em diante no que se refere à Índia −, haver transferido a tecnologia de criação de motores de foguetes, com o que o Leste buscava alinhar parceiros no enfrentamento com os EUA, que, por seu turno, e com o mesmo objetivo, transferiram tecnologia ao Japão e a Israel. Assim, os programas espaciais desses países saltaram etapas cruciais no processo de desenvolvimento tecnológico, ademais de ganharem extraordinária economia de custos, se considerarmos o que URSS e EUA tiveram de despender.
O Brasil não dispõe de bilhões de dólares para investir em seu programa espacial, nem pode aguardar mais 50 anos para vê-lo completo depois dos 32 anos já dedicados ao Veículo Lançador de Satélites (VLS, do Departamento de Ciência e Tecnologia da Aeronáutica (DCTA), o qual, até hoje, lamentavelmente, ainda não conseguiu ultrapassar a etapa de protótipo após três tentativas frustradas de lançamento). A primeira iniciativa brasileira com vistas à montagem de um programa espacial data de 1961, com a criação do Conselho Nacional de Atividades Espaciais (hoje Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE). Em 1965 foi inaugurado o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI) e em 1979 foi aprovada a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB). Para o exercício de 2011, o Orçamento da União prevê, para todo o Programa Nacional de Atividades Espaciais Brasileiro (PNAE), 333,4 milhões de reais, sendo apenas 50 milhões para o projeto Binacional Alcântara Cyclone Space − ACS[2] (continuidade da integralização do capital da parte brasileira), exatamente no ano em que se dão início as obras civis do Complexo Terrestre do Cyclone-4 em Alcântara, no estado do Maranhão (MA). Não estão aí relacionados os outros projetos e atividades do INPE e do DCTA.
Que fazer?
Há, por certo, entre outras, pelo menos três alternativas: (i) renunciar ao programa espacial próprio, e ceder a área de Alcântara para a instalação de sítios de lançamentos estrangeiros, algo cogitado no escopo das negociações que levaram ao Acordo Brasil-Estados Unidos firmado em 2002 e recentemente retirado do Congresso Nacional pelo governo brasileiro;[3] (ii) refazer todos os caminhos, começando do estágio de desenvolvimento atual, ou (iii) saltar etapas tecnológicas.
Dessas alternativas, uma é aquele caminho percorrido pela URSS e pelos EUA, exigindo custeio total do programa espacial completo e outras décadas de desenvolvimento. Considerando o estado da arte da tecnologia espacial brasileira, e o proposto investimento anual de 400 milhões de dólares estadunidenses a partir de 2016, solicitado pela Aeronáutica,[4] de atendimento quase impossível, seriam ainda necessários pelo menos mais 25 anos (e mais 10 bilhões de dólares) para o Brasil adquirir o domínio completo da tecnologia espacial.[5] O terceiro caminho (transferência de tecnologia) permitirá criar rapidamente aparelhos espaciais de alta complexidade que poderão satisfazer às demandas do Governo e ao mesmo tempo gerar valor agregado, assim atraindo investimentos privados internacionais e propiciando o ingresso de divisas com a atração do mercado mundial. E, principalmente, saltar etapas de desenvolvimento tecnológico. A prioridade da política de aquisição de tecnologia é a nova orientação do Estado brasileiro, se levarmos em conta as recentes negociações com as autoridades francesas visando à cooperação no projeto de nosso submarino de propulsão nuclear e o estabelecimento de transferência de tecnologia como item decisivo de avaliação na compra de novos caças para a Força Aérea Brasileira (FAB).
Esta política, aliás, conta com um precedente vitorioso: a fabricação, por um consórcio, Brasil-Itália (Embraer/Alenia/Aermacchi, 1981), do AM-X, caça de ataque da FAB.[6]
2.1. A experiência com o AM-X.
Diante da necessidade de dotar seus esquadrões de ataque de uma maior capacidade de emprego, o Estado-Maior da Aeronáutica se encontrou em face de quatro alternativas:
- A opção usual e mais cômoda (embora implicando dependência) que era pura e simplesmente adquirir esses aviões no mercado internacional;
- a adoção do modelo commuter (Embraer), mediante importação de matérias-primas, componentes, equipamentos, todo o sistema aviônico, inclusive software embarcado (Operational Flight Program), reatores etc. Este modelo, como o anterior, conservava a dependência tecnológico-estratégica, em face dos consabidos bloqueios políticos dos governos nacionais dos fabricantes, aos quais está sujeita a operação desses equipamentos, independentemente dos acordos de salvaguardas;
- a opção por um projeto puramente nacional, que exigia apoio em base industrial ainda inexistente e demorado desenvolvimento de tecnologia não disponível no país (como aviônica, motorização e a matéria-prima usada na fabricação de estruturas), implicando o dispêndio de grandes recursos financeiros; ou
- a constituição de programa de cooperação internacional que nos possibilitasse o acesso à mais moderna tecnologia, economizasse custos e tempo no projeto e fabricação das aeronaves.
Optou o país pela participação em programa internacional, como oportunidade mais fácil, rápida e barata para adquirir nossa própria capacidade de fabricação e desenvolvimento. Essa opção, dotando a FAB da aeronave de que necessitava, possibilitava-nos saltar etapas de desenvolvimento tecnológico e industrial, atendida, ademais, a necessidade de adequar o projeto às nossas limitações de recursos.[7]
Ao lado de todas essas vantagens, o programa propiciaria a formação de mão-de-obra nacional altamente qualificada, a geração de empregos no país, o desenvolvimento da indústria nacional[8]nas mais diversas áreas, indispensável na eventualidade – e é em face dessa possibilidade que existem forças armadas – de um esforço de guerra.
Retornemos à questão espacial e à necessidade de desenvolvimento de veículos lançadores orbitais e suborbitais, condição de autonomia no acesso ao espaço.
O esforço estritamente nacional com esse objetivo caracteriza-se, porém, pelo carreamento de recursos para o desenvolvimento e a produção do VLS, já referido, de foguetes de sondagem, da infraestrutura do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA-MD), de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e de manutenção. Sem questionar o custo-benefício desses investimentos, estima-se que no período 2000-2010 o Brasil gastou com o VLS do Centro Técnico Aeroespacial, CTA (hoje, DCTA) e toda a sua infraestrutura, aproximadamente 1,5 bilhão de reais. Relativamente ao período 1984/2010 esse dispêndio está calculado (números aproximados) em 2,1 bilhões de reais. Na área de satélites o Brasil já cooperou com a Argentina no desenvolvimento do SAC-B, e mantém com a China o desenvolvimento da família CBERS. Há entendimentos, ainda incipientes, de cooperação com a França, EUA, Argentina, África do Sul e Índia. Com o programa Cyclone-4, isto é, na constituição da ACS, empresa binacional com sede em Brasília, instalada no último trimestre de 2007, o governo despendeu, até fevereiro de 2011, apenas 218 milhões de reais. No entanto, o foguete, obrigação ucraniana, está em fase final de desenvolvimento e fabricação, todos os projetos terrestres foram concluídos ou estão em fase de conclusão e já foram iniciadas as obras civis do Complexo Terrestre da ACS em Alcântara (MA), sob a responsabilidade da ACS.
Trabalharemos com a opção da parceria internacional.
3. Parceiros potenciais
O parceiro ideal para a transferência de tecnologia deve possuir os seguintes predicados:
• Não oferecer restrições políticas ou estratégicas, inclusive as relacionadas ao regime MTCR;[9]
• Necessitar de cooperação internacional;
• Apresentar custos suportáveis; e
• Ter vontade política e relações estratégicas para a transferência de tecnologia.
Analisando as possíveis parcerias, observa-se:
a. Rússia e os EUA
Esses dois países lideram o ranking da exploração espacial. Cada um deles possui um programa completo (incluindo voos tripulados), e seus próprios centros de lançamento,[10] e obviamente não têm o menor interesse no surgimento de um concorrente potencial, considerada qualquer de suas consequências, a começar pelo disputadíssimo mercado internacional de lançamentos de satélites. Além do mais, tanto EUA quanto Rússia são protagonistas do Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR), cuja proposta é impedir aos demais paises o acesso à tecnologia missilística, a qual, pelas características de dualidade, tem grande espectro de aplicação em sistemas espaciais. As políticas das duas potências espaciais não ensejam a hipótese de cooperação, e se traduzem em contratos vantajosos para elas, pois objetivam, tão-só, o custeio da manutenção de seu próprio setor míssil-espacial, de que é exemplo o já referido acordo Brasil-EUA.
Ainda relativamente aos EUA, são conhecidos seus esforços visando a impedir o desenvolvimento tecnológico brasileiro, particularmente nas áreas nuclear,[11] aeronáutica e espacial. Relativamente ao nosso programa espacial, os vetos ficaram nus com a divulgação de telegramas da embaixada dos EUA em Brasília, publicados pelo WikiLeaks e divulgados pela imprensa brasileira, nos quais se lê que “o governo dos Estados Unidos não quer que o Brasil tenha um programa próprio de produção de foguetes espaciais“.[12] Provocado pelo embaixador ucraniano no Brasil, então Volodymyr Lakomov, o governo estadunidense, por intermédio do diplomata Clifford Sobel, reitera a proibição de lançamento de qualquer satélite fabricado nos EUA pelo Centro de Lançamento de Alcântara e insiste no veto a qualquer transferência de tecnologia ucraniana, como condição para permitir a associação Ucrânia-Brasil, de que resultaria a Alcântara Cyclone Space – ACS. Diz o telegrama de fevereiro de 2009:
Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os EUA não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes ao Brasil.[13]
b. China e Índia
Os dois gigantes asiáticos alcançaram resultados extraordinários dentro de seus programas espaciais, graças à transferência da tecnologia promovida pela URSS décadas atrás e nos primeiros anos seguintes à sua dissolução, tempo de anarquia. Nem a China nem a Índia, porém, podem ser considerados bons parceiros para um país necessitado de profundos conhecimentos tecnológicos. Explicamos:
- Ambos os países possuem motivações de aplicação bélica para sustentar o esforço de desenvolvimento autônomo de programas espaciais;
- dispõem de programas espaciais completos consagrados e dominam as tecnologias básicas para competir no mercado mundial de lançamentos, donde, considerando ainda o imperativo de defesa nacional, não necessitarem de cooperação internacional, e de encomendas, para sobrevivência de suas indústrias; e
- tanto a Índia quanto a China almejam a liderança no mercado de lançamentos espaciais apoiadas no baixo custo de seus serviços, atualmente restringidos pela legislação ou por embargos internacionais, e também obviamente não têm por que estimular o surgimento de concorrentes. De outra parte, se avançam na tecnologia de foguetes, e a China já ingressou na fase de lançamentos tripulados, ambos os países ainda carecem de tecnologia satelital como aquela possuída pelas potencias ocidentais, EUA, França, Alemanha e Canadá.
c. União Europeia
As tecnologias europeias são bastante desenvolvidas, tanto na área de veículos lançadores, quanto na de satélites. A União Europeia possui um programa espacial completo (embora ainda sem capacidade para voos tripulados), mas oferece as seguintes restrições aos seus eventuais parceiros:
- Elevados custos de componentes e de mão-de-obra. A empresa Arianespace, por exemplo, um dos líderes mundiais do mercado de lançamentos espaciais, ainda precisa receber um auxílio anual na ordem de 200 milhões de euros da UE, para poder manter-se viável;
- a UE possui seu próprio centro de lançamento tropical, em Kourou[14], com um leque completo de lançadores operacionais ou em desenvolvimento, e obviamente não favorecerá o surgimento de um concorrente;
- a UE já empreende parceria com a Rússia para lançar os veículos da família Soyuz a partir de Kourou; e
- As grandes empresas europeias na área de satélites, como Thales Alenia Space e Astrium, não adotam a política de transferência de tecnologia completa nem abrem os códigos fontes do software de seus satélites. Assim, um país que compre satélites dessas empresas para usos de segurança nacional, por exemplo, não pode considerá-los como completamente seus.
d. Canadá
O país não domina a tecnologia de foguetes,[15] mas possui uma indústria de satélites muito desenvolvida, de que são exemplos, entre outras, as empresas MacDonald, Dettwiler and Associates (MDA) e ComDev, as quais, em algumas áreas, como a de radares, ostentam tecnologia de última geração. Uma vez que o programa espacial do Canadá não pode sustentar plenamente sua indústria de satélites, fato agravado pela redução das encomendas dos EUA, suas empresas passam a depender da cooperação internacional. A MDA, por exemplo, oferece transferência completa da tecnologia de satélites (desenvolvimento, fabricação, abertura do software e até financiamento).
4. O caso ucraniano
A Ucrânia herdou da URSS e continuou desenvolvendo após a independência uma indústria espacial potente. Nesse país é que foram produzidos mísseis balísticos intercontinentais ainda não superados, bem como alguns dos melhores veículos lançadores do mundo. A Ucrânia também possui ampla experiência na área de desenvolvimento e produção de satélites de sensoriamento remoto (observação da Terra). Sua indústria de satélites, todavia, não está no nível da melhor tecnologia mundial. Entre outras vantagens para a parceria em transferência de tecnologia espacial, na área de foguetes, destacamos:
- A Ucrânia já desenvolve com o Brasil uma parceria real. O total de investimentos ucranianos previstos em nosso país é de até US$300 milhões para a criação do complexo de lançamento (participação no capital da ACS) e de mais de US$150 milhões para o desenvolvimento do veículo lançador Cyclone-4;
- a Ucrânia domina modernas tecnologias de mísseis, mas não dispõe de um centro de lançamento próprio;
- assim como o Brasil, a Ucrânia também não tem capacidade de investir vultosas somas em seu programa espacial, mas procura parceiros para uma efetiva cooperação técnica e financeira;
- a realização do projeto Cyclone-4 assegurará resultados reais: a criação de um moderno veículo lançador e o desenvolvimento da infraestrutura do CLA, servindo à ACS e ao DCTA.
A união dos recursos financeiros e tecnológicos, no campo da atividade espacial, permite antever um futuro promissor, como o desenvolvimento conjunto de tecnologias pelas empresas dos dois países, como, por exemplo, um veículo lançador pesado, já em cogitação. Por enquanto, batizado de Cyclone-5.
Baseando-se nas reflexões até aqui desenvolvidas, podemos concluir que os melhores parceiros para o Brasil, considerando a política de transferência de tecnologia, são, (i): na área de veículos lançadores, a Ucrânia; e (ii) na área de satélites, o Canadá[16], sem prejuízo do programa presentemente desenvolvido com a China, os satélites da família CBERS.
A política canadense tem como objetivo a maior abertura internacional possível, o que, se significa o aprofundamento de parcerias com a NASA e a ESA, significa igualmente a busca do mercado sul-americano. É o que se lê no Relatório 2009-2010 da Agência Espacial Canadense. Segundo aquele texto, a cooperação internacional é crítica para a implementação da Estratégia Espacial Canadense. Por isso, o Canadá tem trabalhado em parceria com outras nações da área satelital, particularmente com a NASA e a ESA, e se vê como nação que pode contribuir para as iniciativas de outros paises, em particular com os emergentes da Ásia e da América do Sul, nos quais, destaca, vê grande potencial de cooperação. Finalmente, ainda segundo o Relatório, o Canadá continua desenvolvendo esforços para se inserir nesses mercados.[17]
5. Como fazer funcionar o programa espacial e receber a tecnologia
Não basta identificar os melhores parceiros para transferência de tecnologia; é preciso montar, corretamente, um programa espacial para poder receber a tecnologia e dela fazer uso. Neste sentido, o Brasil apresenta alguns problemas que dificultam a incorporação de novas tecnologias. Examinemos alguns deles:
Um. O primeiro de todos é a fragilidade do nosso sistema de administração do programa espacial. A estrutura que deveria dirigir o programa como um todo está distribuída em vários órgãos, sem coordenação, agindo de forma dispersa, com ações e projetos superpostos e, em muitos casos, até, conflitantes. Hoje, atuam no desenvolvimento e administração do programa espacial a Agência Espacial Brasileira (AEB)[18], a Alcântara Cyclone Space (ACS), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia – MCT), o Comando da Aeronáutica (COMAER), com seus órgãos Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), dentre outros, todos na esfera do Ministério da Defesa. A questão crucial é a inexistência de uma Agência Central, coordenadora e reguladora, como por exemplo a NASA,[19] nos EUA, ou o CNES[20] na França, ou o ISRO[21] da Índia. Produto desse imbróglio é a malha de órgãos que interferem no Programa, ou dos quais depende a ACS para operar. Como consequência, a política espacial brasileira carece de coordenação, planejamento e comando unificado. Sua operação remonta ao triângulo institucional formado pela AEB (do MCT), pelo INPE (do MCT), os quais, porém, atuam como ilhas, e pelo DCTA (da Aeronáutica). Mas a AEB não coordena as ações dos diversos agentes, não estabelece metas, não acompanha o desempenho dos demais entes, não participa dos planejamentos setoriais, nem supervisiona a compatibilidade dos projetos; simplesmente repassa para o INPE e o DCTA 94% de seus recursos orçamentários, mediante Termos de Descentralização de Créditos, sem acompanhar sua execução, a qual, aliás é muito baixa. Muitas vezes, por isso mesmo, os recursos de projetos da AEB destinados a essas entidades são utilizados no custeio das próprias administrações;
Dois. Inexistência de programa governamental (assumido como política de Estado) de longo prazo de que decorre a inexistência de uma política de contínua (e igualmente de longo prazo) de liberação de recursos, de sorte a garantir o desenvolvimento permanente das atividades espaciais. Ao contrário, às vésperas dos lançamentos do 2º e do 3º protótipos do VLS, nos anos de 1999 e 2003, por exemplo, o Governo reduziu (1998, 1999 e 2002) drástica e irresponsavelmente os recursos destinadas ao projeto, com as consequências conhecidas;
Três. O terceiro fator negativo é uma distorção. Embora o projeto brasileiro priorize os lançadores – porque é fundamental ter lançador –, os investimentos e as preocupações foram desviados para a fabricação de satélites. Nessa área, ainda nos demos ao luxo de remeter grandes recursos para outros países, para a China (programa CBERS[22]) e para os EUA, para lançamento dos nossos SCD-1 e -2, e para a cooperação com a Estação Orbital Internacional (ISS);[23] e
Quatro. Inexistência de um complexo de empresas projetistas e fabricantes dedicadas ao setor espacial. No caso dos veículos lançadores, por exemplo, uma única entidade, o IAE, cuida ao mesmo tempo de projetos, fabricação (própria e compartilhada com empresas) e operação dos equipamentos espaciais. Relativamente ao VLS 1 e seus seguidos protótipos, o DCTA viu-se na contingência de assumir o papel de integrador, obrigando-se a desempenhar funções estranhas ao seu destino institucional (explorar, desenvolver tecnologias e estimular a indústria nacional a capacitar-se para produzir), como, por exemplo, fabricar sistemas aeroespaciais, com inevitáveis prejuízos à inovação e ao controle de qualidade.
5.1 Uma expectativa frustrada?
A criação da Secretaria de Assuntos Estratégicos,[24] em nível ministerial, sugeriu a importância que a República passava a dar a seus temas estratégicos. Essa visão foi corroborada pela edição da Estratégia Nacional de Defesa[25], costurada a duas mãos pela SAE e o ministério da Defesa e pela eleição, como prioridades estratégicas, dos programas cibernético, nuclear e espacial.
A SAE foi criada em substituição ao Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE), o qual, por seu turno, sucedera a Secretaria de Planejamento de Longo Prazo (SPLP)[26], competindo-lhe promover o planejamento nacional de longo prazo, discutir as opções estratégicas do País e articular com o governo e a sociedade a formulação da estratégia nacional e das ações de desenvolvimento nacional de longo prazo. Cabe à SAE debater e elaborar políticas públicas de Estado em articulação com governo e sociedade civil.
A formulação da Estratégia Nacional de Defesa significou, por si só, um grande avanço, por constituir uma aguardada tomada de posição do Estado brasileiro. Mas seus méritos se estendem às proposições, quando eleva o programa espacial à categoria de política estratégica. Lê-se, na Parte I – Formulação Sistemática:
Os setores estratégicos: o espacial, o cibernético e o nuclear: 1. Três setores estratégicos – o espacial, o cibernético e o nuclear – são essenciais para a defesa nacional. 2. Nos três setores as parcerias com outros países e as compras de produtos e serviços no exterior devem ser compatibilizadas com o objetivo de assegurar espectro abrangente de capacitações e de tecnologias sob domínio nacional. 3. No setor espacial, as prioridades são as seguintes: a. projetar e fabricar veículos lançadores de satélites e desenvolver tecnologias de guiamento remoto, sobretudo sistemas inerciais e tecnologias de propulsão líquida; b. Projetar e fabricar satélites, sobretudo os geoestacionários, para telecomunicações e os destinados ao sensoriamento remoto de alta resolução, multiespectral e desenvolver tecnologias de controle de atitude dos satélites; c. Desenvolver tecnologias de comunicações, comando e controle a partir de satélites, com as forças terrestres, aéreas e marítimas, inclusive submarinas, para que elas se capacitem a operar em rede e a se orientar por informações deles recebidas; e d. Desenvolver tecnologia de determinação de coordenadas geográficas a partir de satélites.
Concomitantemente, a experiência institucional do governo do Presidente Lula apontava no sentido da revisão da estrutura administrativa responsável pelo projeto espacial, que já havia sido objeto de duras críticas da CPI da CF que examinou o desastre com o terceiro protótipo do VLS[27]. Cogitou mesmo o presidente de fazer retornar o Programa à Presidência da República. No ‘governo de transição’ o tema foi retomado e, abandonada a proposta de sua integração à SAE, prevaleceu a criação de uma Secretaria, diretamente subordinada à Presidência, coordenando os programas cibernético, nuclear e espacial, opção até aqui não concretizada. De outra parte, a SAE passou a cuidar, dentre outras questões, da política de saneamento básico, o que nos leva a temer a orfandade institucional das políticas estratégicas brasileiras. Relativamente à área espacial, a questão é menos de localização institucional, e fundamentalmente de o Programa ser, realmente, considerado como estratégico pela estrutura estatal. Independentemente do organograma que integre, o PEB não pode ficar à mercê do voluntarismo burocrático, tocado por políticas erráticas, dependentes de recursos escassos e intermitentes, ausente de um planejamento governamental de longo prazo.
5.2 Uma proposta para recriar o Programa Espacial Brasileiro
Discorrer sobre a história e as deficiências das atividades espaciais brasileiras talvez nos remeta, senão às cenas de uma vila devastada por enchentes, ao menos ao cenário tedioso de cidades decadentes, desprovidas de pujança econômica e altamente carentes de perspectivas. É fato que temos do que nos orgulhar de certas conquistas, algumas, inclusive, presentes no dia-a-dia de todos os brasileiros (é o caso das aplicações meteorológicas baseadas em dados e imagens providos por satélites). A ausência de perspectiva, no entanto, é inaceitável para um país que finalmente desponta como ator no cenário internacional.
Considerando que são múltiplas as razões a sustentar a tese de que o Brasil necessita de um programa espacial condizente com sua estatura e projeto de nação, ou seja, partindo do pressuposto segundo o qual essa obviedade não precisa mais ser demonstrada, sugerimos a discussão de uma proposta que, sem desconstruir as conquistas estabelecidas, possa contribuir para minorar deficiências, fomentar sinergias e traçar novos e objetivos rumos na área espacial.
5.2.1. Quatro dimensões a trabalhar
São quatro as dimensões a serem abordadas nessa proposta, todas essenciais para a sustentação de um verdadeiro programa espacial: (i) a dimensão político-institucional, (ii) a política de recursos humanos, (iii) a disponibilidade de recursos financeiros e (iv) a disponibilidade de uma indústria espacial.
a) Dimensão político-institucional
Conduzir um programa espacial requer a mobilização dos mais diversos setores da sociedade, a Universidade e centros de pesquisa e ensino mobilizando ciência, tecnologia e inovação (C,T&I), e o planejamento governamental em estreita relação com a indústria nacional de base. E fontes de financiamento. Nenhum país pode pensar em desenvolver programa espacial se não estiver disposto a nele investir pesada e continuadamente; e no entanto somos, hoje, o 23º investidor em programa especial, se considerarmos a relação investimento/PIB.[28] Além disso, as necessidades de cooperação internacional, seja para fornecimentos diversos, seja para aquisição tecnológica, demandam afinada coordenação de esforços diplomáticos.
Percebendo-se o Brasil como uma potência emergente, e até por isso carente de recursos para investir no atendimento dos diversos e crescentes anseios da sociedade, fica nítida a importância de eleger objetivos estratégicos e estabelecer metas coerentes e factíveis. Hoje, há múltiplas ações classificadas como de interesse para o desenvolvimento espacial, mas com francas discrepâncias e deficiências na integração de esforços e no cumprimento de metas.
Dependemos de uma organização governamental com poderes não somente para atuar como órgão central de um sistema (o SINDAE),[29] mas, para, efetivamente, promover e articular, nas mais altas esferas da representação do Estado, as medidas requeridas por um programa estratégico. Deve, também, dispor de autonomia, competência e autoridade para, além de meramente estabelecer diretrizes e redistribuir recursos, exercer gerência e coordenação, ou seja, poderes e vontade para cobrar o cumprimento das decisões do Conselho, e de acompanhar, também cobrando a execução do que for por ela atribuído aos demais atores da área espacial.
b) Recursos humanos:
É ponto pacífico que qualquer empreendimento depende, para seu sucesso, do adequado provimento, em quantidade e qualidade, dos recursos humanos, principalmente quando se trata de tecnologia complexa e do desenvolvimento de produtos não convencionais. Hoje, a tão propalada ‘massa crítica’ que se logrou instituir nas primeiras décadas de atividades espaciais, encontra-se, particularmente na área de transporte espacial, em estado verdadeiramente crítico: não houve reposição adequada das competências que deixaram as instituições; não há flexibilidade para contratações, mas igualmente não se abrem concursos públicos, e, por exemplo, a AEB sequer tem quadro próprio; e os novos desafios de projeto são incompatíveis com os quadros especializados disponíveis.
A média etária de nossos cientistas e técnicos é, hoje, de 50 anos, sendo ainda elevado o número de funcionários às vésperas de aposentadoria, donde a desconstituição do saber coletivo. O Estado não forma novos quadros em número suficiente para suas carências; dos poucos que forma, considerável contingente, sem expectativa de trabalho, salário e realização profissional na área pública, opta pela iniciativa privada, não raro em áreas distintas de sua formação aeroespacial específica, numa pré-seleção que termina encaminhando nossos melhores quadros para o trabalho no exterior, onde encontram emulação e bons salários.[30]
O Programa necessita, portanto, que se adotem medidas para permitir a atração e a manutenção de quadros especializados, nos locais e nas quantidades necessárias para a condução das atividades de desenvolvimento e de operação, de acordo com o que for estabelecido como imprescindível a um projeto estratégico.[31]
c) Recursos orçamentários:
As críticas ao inconsistente caminhar do Brasil espacial sempre apontam as deficiências orçamentárias como uma das principais causas para os insucessos ou para a perda de conquistas já alcançadas. De fato, o garroteamento do fluxo financeiro, bem como as oscilações ao longo dos anos, são totalmente incompatíveis com o desenvolvimento de projetos e de ações de capacitação que demandam esforço continuado por décadas. Em inumeráveis oportunidades temos denunciado a dieta de recursos na determinação de nosso atraso.
Não basta, todavia, simplesmente aumentar e regularizar o volume e fluxo de recursos, embora sejam essas decisões indispensáveis. As definições político-organizacionais devem ser o farol a iluminar o planejamento dos projetos estratégicos, os quais, certamente, ultrapassam a duração de mandatos de governo. Portanto, o planejamento adequado e as medidas para garantir a disponibilidade dos recursos como prioridade de Estado, são conquistas políticas imprescindíveis para que o Brasil tenha um programa espacial com estatura e credibilidade internacionais.
d) Indústria espacial:
O vasto e complexo leque de tecnologias envolvidas num programa espacial requer, além da sólida base de ciência, tecnologia e inovação, um parque industrial capaz de transformar os projetos e os protótipos em produtos de escala industrial.
Na segunda metade do século XX o Brasil logrou instituir uma indústria aeronáutica própria, hoje considerada como uma das quatro maiores do mundo.[32] Essa história é rica de exemplos virtuosos, dentre os quais devemos destacar o paulatino fomento de indústrias capacitadas para produzir com qualidade aeroespacial.
Note-se, no entanto, que a indústria aeronáutica brasileira não produz tudo o que vai numa aeronave: a motorização (correspondente a algo como 30% do valor total de um avião), os sistemas aviônicos, assim como as ligas metálicas estruturais, são importados. De outra parte, o mercado de aeronaves comerciais, diferentemente do que ocorre na área aeroespacial, possui grande diversidade de agentes compradores e operadores, permitindo à indústria planejar e lutar por nichos para os quais tenha possibilidade de oferecer produtos competitivos.
Decorrente de inumeráveis fatores, mas principalmente à intermitência de projetos determinando a intermitência de encomendas, não logramos desenvolver uma indústria capacitada a dar suporte ao programa espacial. O máximo alcançado foi a capacitação de setores da indústria tradicional, a qual, em determinados momentos, episódicos, produziu alguns itens de veículos lançadores, de satélites e de meios de rastreio. É o caso da área de materiais e estruturas, e o seu sucesso no desenvolvimento autônomo de ligas metálicas e de envelopes-motor capazes de suportar as elevadas cargas térmicas e esforços estruturais de um propulsor sólido, tecnologias cuja transferência nos havia sido negada. A ausência, no entanto, de demanda continuada, porém, comprometeu essa qualificação. Eis por que, ainda hoje, não se pode afirmar que o país possui uma indústria espacial. E sem ela não há como levar adiante um programa espacial, que precisa ser visto como um complexo tecnológico-industrial.
Naturalmente, o fomento desse tipo de indústria, a atração de investidores, a manutenção de equipes e o provimento de recursos financeiros e produtivos, dependerão de um competente planejamento de demanda, do oferecimento de garantias de regularidade orçamentária e do gradual crescimento dos projetos, ou seja, cenários de confiança e de motivação capazes de atrair e manter recursos materiais, financeiros e humanos.
5.2.2. O legado a preservar
Falar em recriação não significa mudar tudo. Apesar de todos os pontos fracos apontados, e identificá-los foi nossa motivação, o Brasil possui alguns nichos de capacidade espacial, seja em projeto, seja em produção, seja em operação. Não se pode negar, por exemplo, que o INPE é competente na utilização de aplicações baseadas em satélites. Seu Laboratório de Integração e Testes (LIT) é exemplo de excelência. O Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI) há anos participa da cadeia de rastreio dos veículos europeus Ariane, um demonstrativo da qualidade e da confiabilidade de seus serviços de telemedidas. O IAE desenvolveu diversos veículos de pequeno porte, com propulsão sólida, com destaques para o veículo de sondagem VSB-30, que já é exportado para lançamentos na Europa, e para o lançador de satélites VLS, cujos primeiros protótipos, apesar dos insucessos, representaram significativas conquistas para o domínio das tecnologias de lançamento espacial. O complexo aeroespacial de São José dos Campos é internacionalmente reconhecido pela capacidade de formar e aperfeiçoar recursos humanos em áreas intensivas em tecnologia. Enfim, há competências a preservar.
As evoluções político-organizacionais têm que levar em conta esse legado e, ao propor redefinições de objetivos ou rearranjos, cuidar para que não se dispersem as equipes e as células de desenvolvimento e produção que já vingaram.
5.2.3. Os objetivos estratégicos e o mercado espacial[33]
Investir na área espacial é desafio que tem de ser assumido pelo Estado. Sem essa decisão fortemente instituída, os esforços ficarão desconexos; os resultados, desalinhados; a eficiência, altamente comprometida. Ademais, e principalmente, os projetos, os programas, as metas não podem ter suas execuções dependentes do humor da burocracia, ou das sucessões administrativas, arvoradas no direito de rever projetos estratégicos, alterá-los, cancelá-los.
O cerne do que estamos discutindo está na eleição, pelo Estado, de políticas estratégicas, eleição e implementação vertical, de sorte que objetivos de Estado não padeçam, como agora, à mercê da intricada malha burocrática descomprometida com os objetivos nacionais. Não é acaso o fato de os projetos estratégicos nacionais − menciono as políticas espacial, nuclear e a cibernética como exemplos paradigmáticos − estarem padecendo solução de continuidade, enquanto somos superados tecnologicamente por parceiros como os indianos, os chineses e os sul-coreanos. E pelos iranianos e os coreanos do Norte.
Os últimos anos têm sido, para o Brasil, de amadurecimento institucional, de resgate da auto-estima, de fortalecimento da confiança num futuro melhor. Desfaz-se, parece, aquele estigma de que o país estaria ‘deitado eternamente em berço esplêndido’. Discutem-se hoje, por exemplo, investimentos no resgate das camadas sociais desassistidas e no fortalecimento dos meios de defesa do país, sem que isso seja visto como linhas de ação auto-excludentes.
A decisão de investir na área espacial como um desafio estratégico para o Brasil encontra sustentação na Estratégia Nacional de Defesa, no fortalecimento do agronegócio, na universalização dos modernos meios de educação, na proteção ambiental, na prospecção de nossos recursos minerais, na exploração da plataforma marítima, no compartilhamento, com outros países sul-americanos e africanos, do acesso às informações via satélite. Mas, repita-se à saciedade: a importância do projeto não é exclusivamente comercial ou financeira. O controle de nossas fronteiras e de nossa costa, por exemplo, não estará assegurado por intermédio de satélites meteorológicos, mas de satélites os quais não serão lançados senão por nós, pois lhes caberá o controle das aviações civil e militar, a orientação de nossa Marinha de Guerra etc.
Ou seja, há condições favoráveis à discussão ampla e prática para a definição de objetivos estratégicos, tanto no nível interno, como no de política de Estado e relações externas.
Sabe-se, também, que, além de interesses político-estratégicos, dentre os quais a conquista e manutenção da soberania nacional e o fortalecimento das relações internacionais, há o interesse em participar da vertente comercial do mercado espacial. Ingressar no mercado de produção e exploração de satélites concomitantemente com o de lançamentos espaciais, ajuda a obter mais recursos para investimento e manutenção, e a diluir os gastos com desenvolvimento e sustentação de toda a infraestrutura espacial.
O caso da ACS é emblemático: dois países se uniram para, em se valendo de suas potencialidades específicas (de um a tecnologia espacial; de outro a melhor localização para um centro de lançamento de foguetes), tornar viável a operação de um veículo de boas características de desempenho e confiabilidade, a partir de um centro de lançamento com atributos quase inigualáveis em termos de segurança e de aproveitamento da capacidade impulsiva.[34] A associação com um fabricante de satélites fecharia o círculo e consolidaria o sucesso comercial do empreendimento.
São características do mercado de transporte espacial (i) ser altamente disputado e (ii) ser afetado por restrições políticas e embargos, bem como pelos subsídios que os países dominantes concedem a seus sistemas próprios de lançamento.[35] Afinal, mesmo as grandes potências querem garantir que sua indústria espacial tenha demanda continuada (só nós é que não nos preocupamos com isso): para tanto, vale até bancar reduções expressivas de preço de lançamento, a fim de manter a cadência de produção e a evolução dos veículos e da infraestrutura correspondente. Isso entre nós, hoje, é impensável, se considerarmos um programa que em 32 anos promoveu apenas três lançamentos frustrados.
Na rediscussão político-institucional, portanto, impõe-se considerar: como desenvolvimentos autônomos poderão conviver com parcerias já em andamento; como objetivos de assimilação ou desenvolvimento de tecnologias duais poderão coexistir com projetos de natureza comercial; como os objetivos estratégicos e as lógicas de mercado deverão conciliar ações e integrar esforços.
5.3 Uma visão de futuro para o Brasil espacial
A discussão sobre a recriação do programa espacial brasileiro, incluindo a preservação do legado disponível e a conciliação de objetivos estratégicos com a atuação no mercado espacial, demonstra a complexidade do desafio a enfrentar. Não é tarefa para uns poucos, nem sobrevive a decisões improvisadas.
Como a raiz das soluções para os problemas elencados parte, necessária e primordialmente, das redefinições político-institucionais, um grupo de trabalho interministerial poderia ser constituído com a incumbência de, em prazo adequadamente definido, reavaliar o SINDAE e o PNAE.[36] Trata-se de executar um planejamento estratégico de Estado, incluindo pelo menos:
• análise do cenário espacial, no mundo e no Brasil;
• avaliação da efetividade dos planos, programas e projetos;
• proposição de objetivos estratégicos integrados, adequadamente estabelecidos ao longo do tempo;
• proposição de uma reestruturação dos órgãos governamentais envolvidos em atividades espaciais, abrangendo:
- instituição de uma Agência Espacial em estatura e autonomia compatíveis com a condução de um programa estratégico eficaz e eficiente, compreendendo o comando estatal das políticas de lançamentos e fabricação de satélites;
- rearranjo de instituições ou de alguns de seus setores, de forma a poderem conduzir adequadamente os projetos que lhe forem atribuídos, de acordo com suas competências específicas, respeitando o legado que deva ser preservado; e
- delineamento das primeiras ações para efetivar a transição do modelo atual para o cenário que se deseja alcançar.
Tal grupo executivo deverá contar com representantes daquelas áreas que têm relacionamento com as dimensões aqui discutidas (político-institucional, recursos humanos, recursos orçamentários e indústria espacial) e deve mobilizar o Poder Legislativo (aproveitando os debates e estudos já conduzidos sobre a temática espacial) tanto na Câmara dos Deputados,[37]principalmente, quanto no Senado Federal, das entidades da área científica e tecnológica, e, naturalmente, com profissionais de notório conhecimento na área espacial, seja da esfera governamental, seja da Universidade, seja da indústria.
Executar tal planejamento, em prazo não superior a um ano, e iniciar as reorganizações delineadas, certamente são os primeiros passos. Com credibilidade interna e externa, os recursos poderão ser mobilizados: os governos poderão tomar as medidas em sua esfera de competência; a indústria poderá investir; os jovens buscarão as carreiras de C,T&I, porque nela enxergarão a possibilidade de realizar sonhos sem abdicar do atendimento às necessidades básicas da vida. Afinal, desbravar o espaço não é apenas um sonho juvenil, mas uma paixão e uma carreira que se abraçam por gerações.
O fato objetivo a ser enfrentado é este: na segunda década do século XXI não dispomos de satélites completamente brasileiros (à exceção dos pioneiros SCD-1 e 2), nem de veículos lançadores. Nossos satélites são construídos em cooperação com a China, lançados de Centro Espacial chinês, com foguete chinês, o Longa Marcha. A questão não se reduz ao uso unicamente comercial de nossos lançadores, nem à produção de satélites meteorológicos ou de sensoriamento, mas, sim, que já somos objeto da espionagem via-satélite, e, neste contexto, depender de satélites de terceiros é renunciar à garantia de seus serviços. Se não tivermos capacidade de lançar, de solo brasileiro, com foguete brasileiro, nossos satélites, sejam eles quais forem, não teremos condições de garantir a soberania de nosso país.[38]
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Texto na íntegra: https://cosmosecontexto.org.br/programa-espacial-brasileiro-impasses-e-alternativas/