Eleonora Menicucci discursou durante lançamento do portal ‘Memórias da Ditadura’, com informações sobre o período
BRASÍLIA – Em discurso emocionado, a ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, afirmou nesta sexta-feira que a dor sofrida na ditadura, quando foi torturada, era tão grande que ela preferia ter morrido. Hoje, porém, a ministra diz estar feliz por ter sobrevivido, para poder contar sua história. Ela discursou durante o evento de lançamento do portal “Memórias da Ditadura”, com informações sobre o período que vai de 1964 a 1985.
— Só nós que vimos sangue ser derramado, vidas serem perdidas, e que tivemos as nossas vidas e nossos corpos manchados pela ditadura, sabemos o que foi. E por isso eu tenho coragem e estou aqui como ministra de Estado, mas antes de tudo como mulher, como mãe que era na época e ainda sou, e avó que hoje sou, para dizer o que digo sempre aos meus netos: a vovó foi presa, o vovô foi preso, formos barbaramente torturados, é por isso que a vovó operou do coração, é por isso que a vovó teve que colocar dois dentes postiços, é por isso que a vovó tem dificuldade na coluna, mas é por isso que a vovó é uma senhorinha jovem que lutará até o fim da vida para que vocês possam contar essa história – disse Eleonora Menicucci, acrescentando: — Eu naquela época preferia ter morrido, tamanha a dor da tortura física e psicológica. Mas hoje tenho uma alegria enorme por ter sobrevivido para poder contar essa história
Em entrevista após o evento, ela reconheceu que foi difícil fazer o discurso:
— Sempre é muito difícil. Falar de dor, de sofrimento, lembrar companheiros e companheiras que foram assassinados é muito difícil e doloroso, porque fica no corpo da gente, no psíquico da gente. Mas o melhor de tudo, a forma mais bonita da resistência é que tudo isso se torna um agir político.
Segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o portal é o “maior repositório virtual de informações sobre a ditadura civil-militar (1964-1985)”. Os organizadores do site preferiram chamar a ditadura de “civil-militar”, em vez de apenas “militar”, como é mais comum. Entre as biografias disponíveis no site estão o ex-presidente e senador José Sarney (PMDB-AP) e o ex-ministro e ex-deputado Delfim Netto. No passado, eles apoiaram a ditadura, mas, neste século, se tornaram aliados e interlocutores do PT. Outra seção se chama “Militares que disseram não”. Questionada se os civis que apoiaram o regime também eram corresponsáveis pelos crimes da ditadura, a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, respondeu:
— Indiscutivelmente. Tivemos empresários que colaboraram com a ditadura, órgãos de imprensa, parcela civil da sociedade brasileira. Como também tivemos militares que não admitiram e se revoltaram, se manifestaram e sofreram. Alguns inclusive foram mortos. Está correto o termo ditadura civil-militar, porque houve participação dos militares, mas também houve participação anuência de parcela da sociedade civil.
Em seu discurso, Ideli afirmou que a ditadura, embora tenha terminado em 1985, ainda hoje tem consequências. Ela aproveitou o discurso para defender o governo a criticar quem pede um novo golpe. Ideli disse que a ditadura é um pesadelo que não quer mais vivenciar.
— Este momento é absolutamente necessário, importante e relevante. Porque são 50 anos do golpe civil militar. A ditadura teve 21 anos, mas suas consequências ainda estão presentes: no sistema penitenciário, na repressão na periferia à população jovem, negra. Está neste momento em manifestações verbais públicas que algo que a gente poderia ter esquecido, mas que agora aflorou, que é conservadorismo da sociedade brasileira, pedindo golpe, pedindo intervenção militar — afirmou Ideli, concluindo:
— Toda vez que um governo voltado para os interesses da população, se levanta a voz do conservadorismo. Foi assim com Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart. Foi assim com Lula e agora é assim com Dilma Rousseff.
O portal foi produzido pelo Instituto Vladimir Herzog em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Secretaria de Direitos Humanos. O portal está disponível no endereçohttp://memoriasdaditadura.org.br e contém informações sobre a ditadura, incluindo documentários, livros, mapas, biografias, produção artística e depoimentos. Há também uma área de apoio a educadores, com planos de aula, material didático e sugestões para o ensino do tema.
Há no portal uma seção chamada “Civis que disseram sim”, ilustrada com uma grande foto de José Maria Marin. Marin foi vereador, deputado estadual e governador de São Paulo na época da ditadura. Mais recentemente, passou a presidir a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O caso dele Marin é especialmente relevante para a família do jornalista Vladimir Herzog, como mostra a biografia dele, também disponível no portal. Ivo Herzog, filho do jornalista e presidente do instituto que leva o nome do pai, participou do evento de lançamento.
“Em outro discurso, em outubro de 1975, Marin pediu providências sobre a TV Cultura que, segundo ele, exibia reportagens que não retratavam corretamente o governo e programas que causavam ‘intranquilidade’ nos lares de São Paulo. Quinze dias após o discurso, o jornalista Vladimir Herzog, editor-chefe da emissora, foi preso e assassinado pelo DOI-Codi. Em 1976, na Assembleia Legislativa de São Paulo, Marin elogiou publicamente o delegado Sergio Paranhos Fleury, delegado do Dops”, informa o portal.
“Quando se discute o golpe militar no Brasil, na imensa maioria das vezes, atribui-se o protagonismo e a responsabilidade às Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), definindo a ditadura instaurada como estritamente militar. Mas, recentemente, jornalistas e historiadores têm descrito um quadro muito mais complexo de organização do golpe, que coloca em relevo uma extensa participação de setores da sociedade civil no processo de construção e legitimação da tomada de poder pelos militares”, informa o portal.
Em entrevista após o evento, Ivo Herzog disse:
— A questão do Marin é bastante particular. Ele contou uma série de mentiras que levaram aos acontecimentos do meu pai. Independentemente de ter sido punido ou não, trouxe pelo menos para as pessoas de um modo geral um outro lado do futebol, que de vez em quando se fala, mas pouco se fala. Esse outro lado perverso, que tem um passado terrível. Ele não foi punido, mas houve uma vitória maior, que é a questão da conscientização.
O evento também contou com a participação dos ministros José Henrique Paim (Educação) e Luiza Helena de Bairros (Secretaria de Promoção da Igualdade Racial), além da ministra interina da Cultura, Ana Cristina Wanzeler. O lançamento do portal faz parte da “Quinzena pelos Direitos Humanos”, promovida pela Secretaria de Direitos Humanos por ocasião do Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado em 10 de dezembro.
— Vamos articular toda a rede, fazendo com que nossos educadores, diretores de escola tenham conhecimento desse projeto — afirmou o ministro da Educação, José Henrique Paim.
Fonte: O GLOBO