Manuel Domingos Neto
(Professor aposentado)

Andei assistindo a debates na tevê e conversando sobre eleições. Sonhei sonhos esquisitos: eu não era eu, era a Dilma!

Nos sonhos apareceriam amigos de infância, familiares, colegas, porteiros de meu prédio, todos conversando com Dilma, aliás, comigo.

Registrei aleatoriamente passagens da conversa, digo, do sonho.

No sonho, não surgiam estatísticas, siglas de programas governamentais e referências à Lei. Apareciam ambientes: um jardim de Paquetá, uma praça em Parnaíba e o alpendre da casa de meu avô, em Maranguape.

– Como eu me sinto? O coração aperta quando lembro do que eu deixei de fazer e acelera quando imagino o que me espera. Meu humor varia. Bate tristeza, bate alegria. Às vezes vem a sensação de impotência; de não fazer o que desejo.

– Motivo de tristeza? Não haver acabado com os confinamentos de índios. Aqueles, em Dourados, no Mato Grosso do Sul… Uma vergonha: se embriagam, servem de mulas; muitos querem morrer, não sabem mais quem são. O governo brasileiro devia ser condenado por crime de lesa-humanidade. Os tucanos não exploram o caso porque não ligam para os índios. Muitos brasileiros veem as tribos sobreviventes como estorvos.

– Em Paquetá, um antropólogo me disse: ninguém pode provar que o “civilizado” seja mais feliz e harmonizado do que o “primitivo”. Uma ambientalista emendou: a mercantilização da natureza não é coisa boa. O “primitivo” é uma invenção do “civilizado” que quer se valorizar a qualquer custo.

– Os editoriais de jornais, a literatura acadêmica, as conversas do dia-a-dia mostram a persistência da mentalidade colonial-escravagista. A herança do passado aparece a todo instante. O que mais revela a sobrevida da colonização é a situação dos índios. Não me deixam falar disso no horário eleitoral. Precisamos mudar a percepção em relação aos índios. Ficaria mais fácil superar as discriminações, a homofobia, o racismo… Ajudaria a aceitar melhor as diferenças.

– Quem se autoproclama “evoluído” é um metido a besta. “Civilizados” cometeram e cometem as piores baixarias; matam em massa a troco de mesquinharias. Os “antigos” não queimavam gente viva em fogueiras nem eliminavam instantaneamente centenas de milhares; matavam seletivamente, na luta pela sobrevivência.

– Uns dizem que a reforma agrária teria essencialmente efeitos distributivo e assistencialista, já que o Brasil é grande produtor agrícola sem ter mudado o sistema fundiário; propiciar tecnologia seria mais importante que repartir a terra. Mas a produção açucareira colonial-escravista só disputava em sofisticação tecnológica e em investimento de capital com as indústrias metalúrgica, naval e têxtil! Significa dizer que o uso de escravos não caracterizava “atraso”. Há ainda quem considere que a reforma agrária ampliaria a produção.

– O fato é temos muita terra ociosa e ilegalmente apropriada. Muitos morrem lutando por um pedaço de chão. Fiz pouco nesse quesito. Eu devia ter impulsionado a reforma agrária e ampliado muito mais o apoio técnico ao pequeno agricultor.

– Desapropriar latifúndios improdutivos e tomar terra de grileiros é difícil. Os ânimos se exaltam, a legislação não ajuda. Os juízes, muito menos. Nem os militares, com o poder que detiveram, apresentaram resultados minimamente razoáveis.

– A reforma agrária deve estar conjugada ao planejamento da ocupação do espaço. Hoje falamos de mobilidade urbana e procuramos alternativas para aliviar o trânsito. Como limitar o crescimento das cidades, senão oferecendo condições de fixar populações no interior?

– Aglomerações urbanas bem distribuídas no território e bem equipadas requerem, além da ação do governo, uma mudança de mentalidade. O planejamento urbano precisa rever seus fundamentos. Como disse um economista norte-americano: não é o Estado que planeja o capitalismo, é o capital que planeja a Estado. Sem restringir a especulação imobiliária, não faz sentido falar em organizar as cidades em benefício do coletivo; jamais será possível o acesso à boa moradia e ao transporte decente para todos.

– Falando em reduzir as desigualdades, penso em muita coisa, inclusive no imposto sobre as grandes fortunas e na reforma tributária. Preciso de muitos votos e muito apoio popular para tocar estas propostas. Nada pode ser feito sem o Parlamento. A pressão popular sobre os congressistas é decisiva. Preciso também do apoio do Judiciário. Mas preciso, sobretudo, sair fortalecida das eleições e contar com apoio da maioria dos brasileiros no próximo mandato.
– O Judiciário é elitista e distante do povo. É mais fácil meter um deputado num ônibus do que um juiz. O espírito corporativo dos parlamentares é menos fechado que o dos magistrados. O juiz é protegido da pressão popular, não depende do voto, não é tão fiscalizado pela imprensa.

– Aquela linguagem cifrada dos juízes e advogados irrita. Obviamente, a terminologia própria é necessária, mas há muito exagero. A ritualística dos tribunais é medieval.

– O Judiciário não tem escrúpulos na hora de aumentar a própria remuneração e privilégios. Nenhum dos poderes da República é tão insensível com a desigualdade de renda. Com esse Poder, não será fácil construir um pais mais justo.

– O bolsa família irrita alguns produtores rurais porque reduz o contingente que trabalha em troco de comida. Elimina também a vida doméstica à moda antiga. A classe média já não encontra serviçais a preço vil e diz que o governo “alimenta a preguiça”. Perdi votos da classe média tradicional que quer copiar o senhorio colonial. Tem dona de casa que fica nervosa quando se fala em bolsa família.

– A classe média indócil é mais concentrada no Sudeste. Daí o FHC e os jornais acharem que o PT é o partido dos grotões. Se pensarmos nos “grotões” como redutos do arcaísmo político, os mais teimosos estão nos bairros chiques. A tese de FHC é falsa. Ao pé letra, o prolongamento de sua falsidade resultaria numa conclusão absurda: o sudestino seria mais desinformado que o nordestino. O problema é de classe, não de cultura regional.

– Devia ter conversado mais com a classe média que aprende a tomar vinho, comer queijos diferentes e degustar variedades de cafés; que viaja mais e aceita que as filhas transem antes de casar. Ganha tinta cosmopolita, mas sente saudade da escravidão. Não se indigna com as cadeias cheias de jovens negros e se incomoda com a inclusão social; sente-se diminuída viajando de avião ao lado de pedreiros e motoristas de ônibus.

– Uma curiosidade: o “grotão” guarda o telúrico. É meio sacrossanto, remete às origens. “Ai que saudade do luar do sertão…”. Mas também é percebido como a parte do Brasil que não presta. Temos aí a nova face do velho conflito campo-cidade, muito discutido quando a maioria da população era rural. Marx ajudou a caracterizar os camponeses como seres politicamente inferiores. Escorregou. Alimentou o preconceito contra os interioranos.

– Não tive tempo de pactuar com prefeitos e governadores a melhoria do ensino público fundamental. Devemos melhorá-lo de tal forma que ninguém queira ter filho fora da escola pública. Isso permitiria um salto no desenvolvimento da ciência, da cultura e da tecnologia, além de atenuar a fratura social. Quando há escola de rico e escola de pobre, é forçoso que as crianças sejam iniciadas na discriminação. A grande oportunidade de convivência entre brasileiros de todas as classes sociais começa na creche e na escola fundamental.

– A oferta de escola pública gratuita, laica e de qualidade, eliminaria, em duas ou três gerações, a necessidade de cotas visando à inclusão social. Quando digo “de qualidade”, não me refiro apenas aos prédios e equipamentos, mas também, e sobretudo, aos professores.

– Uma historiadora da arte me disse que queria fazer um doutorado, mas não queria dar aulas na universidade. Queria dar aulas para crianças. Ensinar crianças não é mais fácil do que dar aulas para jovens ou adultos na universidade. Nem exige menor preparo intelectual. Demanda, sim, sensibilidade e treinamento diferenciados. Um professor universitário não deve ganhar dez vezes mais do que um professor do ensino fundamental. Não há motivos para que ele ganhe muito menos do que médicos, juízes e militares.

– Uma tarefa gigantesca é preparar milhões de professores para o ensino fundamental. Demanda investimentos astronômicos. Manter escolas públicas de qualidade envolve dispêndios superiores aos do ensino superior. Ainda bem que temos o pré-sal.

– Foi um erro não acelerar a produção autônoma de satélites e de veículos lançadores. Contingenciar recursos de programas estratégicos da Defesa dá prejuízo financeiro e político. Esperar tanto tempo para ter um submarino nuclear e para fabricar veículos não tripulados não combina com a pretensão de ter política externa soberana. A capacidade de dizer não é corolário da diplomacia, que pressupõe capacidade militar.

– Uns falam em “desordem internacional”, em anarquia. Não acredito nisso. Há uma ordem ditada por quem detém a força. Esta ordem é mal expressa nas “leis internacionais”.

– Não entendo de Forças Armadas. Os ministros da Defesa também não: são reféns das corporações militares. Mas estou sabendo agora que é preciso reduzir o número de generais, redistribuir a tropa no território brasileiro, cuidar da formação dos futuros comandantes e conter os ímpetos corporativistas. O Exército não pode ser confundido com polícia de fronteira ou como força auxiliar da segurança urbana. O militar é preparado para situações extremas.

– Errei ao não renovar os comandos militares, o que, inclusive, contraria a cultura corporativa. Quis discutir isso na televisão, mas não me sinto segura.

– Fui torturada num quartel, mas nunca me empenhei em colocar meus torturadores na cadeia. Eles não agiam por vontade própria: estavam autorizados pelo Estado de exceção, que por sua vez era endossado por grandes empresários e pela grande imprensa. Não cabe individualizar culpas nesta matéria. Não haveria cadeia para tantos culpados. Presidentes, comandantes e ministros sabiam que se praticava tortura. Empresários formavam caixa dois para a repressão. Juízes, policiais civis estaduais e federais, médicos e alcaguetas integravam o sistema do terror. Os que sabiam da ocorrência de tortura e silenciaram foram cúmplices. Dá para botar todos na cadeia?

– A conciliação pós-ditadura não foi concluída. Há feridas abertas. Precisamos dar um jeito nisso. Cabe generosidade e grandeza. Não dá para pensar o Brasil sem Forças Armadas respeitadas.

– Chico Buarque gosta de nossa política externa, mas não sei se ele compreende que, sem bala na agulha, a política externa não vai longe. Somos a maior potência do Hemisfério Sul. Mas sem militares preparados, equipados e bem comandados, teremos menos peso. A sociedade precisa compreender isso.

– O Brasil hoje é ator global, não apenas por seu crescimento econômico. Pesou a diplomacia voltada para a América do Sul e para a África, assim como pesou nossa posição contrária ao colonialismo estadunidense e europeu. Contou também o diálogo alternativo representado pelos BRICS.

– No próximo mandato, farei com que diplomatas dialoguem amiúde com os militares e que os militares convivam regularmente com universitários.

– A mentalidade colonizada da elite brasileira, visível nos grandes jornais, não suporta nossa política externa. O que temos a nosso favor é o amor-próprio dos brasileiros. A sociedade fica contente quando sabe que o governo não baixa a cabeça diante dos poderosos. Lula é muito mais corajoso do que FHC. Pensa com mais largueza e profundidade; tem intuição superior.

– O conservadorismo está em ascensão. Em época de crise alongada e profunda, a direita toma a dianteira política em muitos países. As velhas raposas coloniais aguçam o faro e espalham a guerra. Vivemos tempos instáveis. Precisamos unir cada vez mais a América Latina e nos aproximarmos crescentemente dos africanos.

– Quando falo de soberania, falo também de desenvolvimento científico, tecnológico e industrial. Nessa matéria, a criação e ampliação das universidades, o aumento dos programas de bolsa, a massificação do ensino profissionalizante e os programas de financiamento público para a inovação tecnológica foram passos importantes. Mas há muitos ajustes pendentes.

– No desenvolvimento científico, a qualidade da pesquisa é fundamental e nosso sistema de avaliação é discutível: segue o modelo dos países desenvolvidos e busca um tal “padrão internacional” sem considerar muito nossas especificidades.

– Criamos universidades e escolas, mas temos que cuidar da qualidade do ensino em todos os níveis, incluindo o profissionalizante. Há tese de doutorado que envergonha. Não cabe o mero preparo da mão de obra para o mercado: cumpre formar cidadãos cultos, sensíveis e criativos.

– Não adianta termos o dinheiro do pré-sal para a educação se não discutirmos a educação a ser oferecida. As políticas nacionais precisam ser permanentemente debatidas. Uma lástima não tocarmos nesses assuntos durante a campanha. Os recursos públicos descerão pelo ralo se não encararmos a qualidade do ensino.

– Uma das pragas da universidade é a formação de grupos que perdem a noção da finalidade do serviço público. É preciso encontrar um jeito de apor limites às brigas dos professores doutores. Não imagino que eles parem de brigar. O que precisamos é inibir a criação de feudos que tolham o confronto de ideias. Alguns mandões agem como se fossem donos daquilo que é público. Isso é corrupção.

– Um dos aspectos da saúde pública permanece intocado: o espírito dos profissionais médicos. Eu perderia muitos votos se dissesse que a maioria dos médicos não se forma para cuidar de pessoas, mas para ganhar dinheiro e projeção social, tal como no tempo de Tchekov, um escritor russo que sofreu com o tzarismo.

– É preciso ampliar os cursos de medicina sem evitar o debate sobre os médicos que estamos formando. Há profissionais de grande qualidade técnica zerados no entendimento de sua função social. Aliás, isso ocorre com todas as especialidades profissionais. São raros os que atentam para o resultado sociopolítico de seu trabalho. A avaliação qualitativa do ensino superior é, na verdade, quantitativa. O resultado da função social não entra em conta. Absurdo.

– O clientelismo é um entrave para uma saúde pública de qualidade. O atendimento médico é visto como um meio para ganhar votos. O coitado do médico que trabalha numa pequena cidade é limitado pela ausência de auxiliares qualificados e de recursos médico-hospitalares.

– Não dá pra aceitar que alguém que publique uma besteira numa revista acadêmica de Harvard ganhe mais pontos curriculares do que outro que descubra uma maneira excepcional de preparar agricultores para evitar práticas nocivas à sua saúde e à sua produção. Meu próximo ministro da educação vai ter que discutir com a comunidade acadêmica os fundamentos da avaliação da qualidade científica.

– Não sei se a sociedade entende a essência e as limitações do “Ciência sem Fronteira”. Um de seus perigos é o de alimentar o velho deslumbramento brasileiro com o saber produzido e disseminado nos países desenvolvidos. Há parvos com diplomas de universidades famosas.

– Um momento especial da campanha foi quando o Aécio me chamou de leviana, mentirosa e prevaricadora, sempre me pedindo para elevar o nível do debate. Na hora, me perturbei; depois, pensei: o povo, em especial as mulheres, conhece esse tipo valentão.

– O mais triste foi quando não rebati Aécio, que minimizou o fato de ser flagrado dirigindo irregularmente. Não se submeter ao bafômetro é quase um ato de confissão de delito. Inadmissível, em particular tratando-se de homem público. Eu pensei nos que perderam entes queridos por irresponsabilidades de motoristas embriagados. Devia ter me dirigido à câmera, prestado solidariedade aos parentes das vítimas e prometido ampliar o rigor na vigilância do trânsito. Fiquei revoltada com jornalistas que acharam que eu dei um “golpe baixo” ao puxar o assunto. Isso não é de interesse público? Então, revoguemos a Lei Seca!

– Muitos brasileiros querem saber se eu estou envolvida em corrupção. Todos tem o direito de saber. Falo abertamente: não compactuo com ilicitudes e faço questão que todas as suspeitas sejam passadas a limpo.

– Muitos brasileiros querem saber se Aécio é usuário de cocaína. Todos tem o direito de saber. Caso ele tenha sido viciado e tenha vencido a dependência, merece aplauso. O inadmissível é não dar explicações. Um suspeito de dependência não teria credibilidade para conduzir ações contra o tráfico de drogas e de apoio aos dependentes químicos.

Meu sonho esquisito foi longo e atrapalhado. Nos sonhos, as ideias aparecem aos borbotões e sua descrição é problemática.

Da missa eu não rezei um terço, mas vou ficando por aqui. O dia da eleição está chegando. Tenho que ir para rua pedir votos para a Dilma.

Quando peço votos, me sinto cuidando do meu neto e das crianças do mundo.

Niterói, 21 de outubro de 2014.