Por: ELEONORA DE LUCENA
Publicado na Folha de São Paulo em 6/4/2014
Documentário ‘Um Sonho Intenso’, do É tudo Verdade, explica por meio de intelectuais de esquerda crises e avanços do país a partir da Revolução de 1930
1. A elite econômica conservadora e os militares não aceitaram que o país fizesse mudanças para melhorar a distribuição de renda e ampliar o mercado interno. As reformas de base de João Goulart tinham o sentido de aprofundar o capitalismo; nada tinham de revolução socialista.
2. Os militares acabaram com o controle de capitais, que nunca mais voltou. Isso é perturbador porque turbulências internacionais geram sistematicamente uma crise no balanço de pagamentos.
3. O “milagre econômico” da ditadura foi perverso, pois concentrou renda, estimulando o consumo da classe média e das elites. O desenvolvimentismo dos militares foi também resposta à derrota que o regime sofreu nas eleições ao Senado em 1974.
4. A enorme estatização promovida pelos militares provocou reação dos empresários, que passaram a defender a volta da democracia e a procurar os economistas de esquerda da Unicamp.
5. A propriedade não foi desconcentrada. No processo de desenvolvimento não houve rupturas sociais que permitissem forjar uma sociedade mais igualitária.
Esses são pontos de análise expostos em “Um Sonho Intenso”, documentário de José Mariani que será exibido no festival É Tudo Verdade. O filme percorre a história brasileira a partir da Revolução de 1930, ouvindo economistas, sociólogos, historiadores.
Parte da agonia da economia cafeeira e vai até o governo Lula. Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, Luiz Gonzaga Belluzzo, João Manuel Cardoso de Mello, Francisco de Oliveira, Celso Amorim, José Murilo de Carvalho, Adalberto Cardoso, Lena Lavinas e José Augusto Ribeiro são entrevistados.
“Quis fazer uma história comentada, uma reflexão”, diz Mariani à Folha. Por isso, conta que evitou depoimentos de empresários, ministros ou protagonistas do processo, construindo a narrativa com visões mais abrangentes de intelectuais. Teve a consultoria do economista Ricardo Bielschowsky, autor de “Pensamento Econômico Brasileiro”, também ouvido.
Numa dinâmica colagem, encadeando imagens históricas e entrevistas, Mariani, 62, faz uma leitura articulada do Brasil, destacando as explicações para as crises e os avanços de um sonhado projeto nacional. Didático, consegue concentrar visões densas, sem cair em monotonia ou academicismos.
Carlos Lessa, por exemplo, lembra que o complexo cafeeiro da República Velha era inteiramente de capital nacional, da semente à exportação. Já o da soja de hoje só tem de nacional o agricultor e o caminhoneiro. “Isso é inquietante”, afirma.
Tratando da Revolução de 1930, Francisco de Oliveira observa: “Getúlio Vargas é o grande construtor do Estado brasileiro. Não há nenhuma instituição –salvo o Banco Central, que é uma construção da ditadura militar– que não tenha o toque varguista”. Foi a partir dessa época que o país passou a construir um projeto de desenvolvimento, deslanchando as bases da industrialização, trazendo os trabalhadores à cena.
O suicídio de Vargas, em 1954, adia o golpe conservador, que tenta se corporificar em 1961 e é bem-sucedido em 1964. Conceição Tavares argumenta que o desenvolvimento foi voltado para as classes médias. “Incorporar a massa pobre ao consumo é um fenômeno muito recente.”
Para ela, tanto os governos militares como os neoliberais nos anos 1990 são “conservadores e nada deram às classes subordinadas”. “O programa desenvolvimentista brasileiro foi uma modernização conservadora, ponto final, parágrafo”, define.
As privatizações e a política econômica dos anos 1990 desmantelaram o projeto nacional e a industrialização das décadas anteriores, avaliam os entrevistados. Tavares condena o fim da taxação das remessas de lucros, estabelecida por Fernando Henrique Cardoso, e enxerga a globalização atual parecida com a economia do século 19 –diferente da do século 20, em que vigoraram os capitalismos nacionais.
Lessa defende que o aumento do salário mínimo foi o maior feito de Lula, mas critica os altos juros. “O lucro dos bancos cresce sem parar, mais do que a economia e do que o salário mínimo.”
Já Oliveira ataca os petistas: “São nacionalistas do grande empresariado”.
Professor de documentário da PUC-RJ, Mariani gravou a maior parte das entrevistas em 2012. Levou um ano para montar o filme, idealizado no fim dos anos 1990. “Foi como fazer uma tapeçaria”, diz ele, que dirigiu “O Longo Amanhecer, Cinebiografia de Celso Furtado” (menção honrosa no É Tudo Verdade de 2007).
Sobre a escolha dos entrevistados, que são mais ligados à esquerda, o cineasta responde: “O filme é uma reflexão a partir de uma visão de mundo e se posiciona com clareza. Não tem essa pretensa neutralidade. A arte não é neutra. O contraditório deve ser buscado nas mídias que têm ofertas múltiplas”.
Sem apontar muitas previsões ou saídas, a fita é uma narrativa contundente de macromovimentos do passado. Sobre o futuro, deixa perguntas. Como a de João Manuel:
“Queremos virar uma caricatura dos Estados Unidos? Um individualismo de massas? Ou queremos construir uma sociedade fundada em valores humanistas?”.