Carta Maior, em 18/10/2013 

Em seminário da ABI, o diretor de Utopia e Barbárie e Os anos JK lamentou a situação do cinema brasileiro: “o filme político voltou ao exílio”.

Paulo Vasconcellos

Silvio Tendler

A democratização é um dilema inevitável para a imprensa brasileira. Ou bem ela supera os ranços que a divorciam da cidadania ou corre o risco de assistir passivamente a ocupação do espaço não mais por pasquins ou jornais alternativos, mas pela mídia de guerrilha liderada pelos videoativistas, que usam câmaras pessoais e celulares para registrar tudo o que acontece e substituem com a vantagem de dispensar a intermediação de repórteres e fotógrafos profissionais.

O cenário atual já teria a primeira vítima: o cinema. “O filme político voltou ao exílio. O pensamento hegemônico tenta fixar a ideia de que o cinema brasileiro se resume a comédias com estrelas de novela, enquanto restringe as salas aos shoppings centers e não leva em conta o que é exibido nas universidades e videoclubes. A lógica é restringir o acesso do público e dos financiamentos públicos e privados à produção que interessa aos grandes grupos”, disse o cineasta Sílvio Tendler, de “Os anos JK” e “Jango”, no 2º Seminário Livre pela Democratização da Mídia, realizado na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro. “O cinema brasileiro enfrenta uma grande tragédia.”

O debate parece quase uma miragem no deserto. O encontro reuniu alguns poucos jornalistas, professores e militantes de movimentos sociais e partidos políticos de esquerda. O palco, a sede da ABI, no Centro do Rio, fica a poucas quadras da Cinelândia, onde um dia antes manifestantes e policiais voltaram a se enfrentar violentamente. O noticiário sobre a batalha, que começou numa passeata pacífica de professores em greve há dois meses, só deu mais munição aos conferencistas. Jornais da grande imprensa e telejornais das grandes redes de televisão foram reprovados pela mesa. A alternativa continua sendo a internet. A rede, afinal, costuma transmitir os acontecimentos ao vivo, do ponto de vista de quem protesta e sem a interferência de comentaristas que só conseguem enxergar um lado dos fatos.

“As manifestações sociais têm um cardápio variado de reivindicações, mas a mídia hegemônica só destaca a violência. Também diz que, com plano de cargos e salários, os professores vão ganhar muito bem – o que não é verdade – e esconde denúncias como o acordo da Prefeitura do Rio para que as escolas municipais usem apostilas produzidas pela Fundação Roberto Marinho,” afirmou Mario Augusto Jakobskind, presidente da Comissão de Defesa da Liberdade e Direitos Humanos da ABI no painel “A ditadura do pensamento único, o prejuízo desse modelo para a sociedade”.

“Qualquer discurso anti-hegemônico é criminalizado”, reforçou o historiador Gílson Moura. “A mentira repetida é uma técnica do nazismo usada pela imprensa uniformizada”, endossou o professor universitário André Moureau. “A verdade não está na grande mídia”, completou Sílvio Tendler, que prepara mais dois filmes para lançamento no ano que vem, “Advogados contra a ditadura” e “Militares pela democracia”, com novos olhares sobre um tema recorrente em sua obra: o golpe de 1964.

O paralelo entre o regime instaurado no Brasil com a deposição do presidente João Goulart e o uso de forças policiais para combater os protestos que desde junho agitam as ruas brasileiras deu mais subsídio ainda aos palestrantes do seminário da ABI. Afinal, se a pauta agora pede muito mais coisas além da liberdade reivindicada há quatro, cinco décadas, em um caso e no outro há pouca ou nenhuma diferença entre a repressão adotada pelos governos estaduais e o tom das notícias de jornais e televisão. O movimento popular de 2013 repete o processo de redemocratização, até que ela se tornasse inevitável e passasse a fazer parte do cardápio de cobertura da grande imprensa, também na falta de capacidade de diálogo das autoridades com os manifestantes.

“A ditadura militar estagnou o pensamento reflexivo. Nas manifestações de rua de agora é possível perceber uma fuga aos grandes dilemas nacionais, desta vez porque o pensamento hegemônico da mídia inviabiliza a reflexão”, disse o ex-secretário nacional de direitos humanos João Luiz Duboc Pinaud. “Não há muita diferença entre 1964 e a força do pensamento hegemônico hoje. Enquanto a população não recuperar sua capacidade de reflexão seremos reféns fáceis das várias formas de ditadura.”

O desafio é fazer um jornalismo compromissado com a cidadania para escapar às amarras impostas pelos compromissos dos jornais e emissoras de televisão com anunciantes e grupos econômicos. O caminho, acreditam os participantes do seminário da ABI, passa pela discussão de um projeto de regulação da imprensa como já existe na Europa e nos Estados Unidos. “É preciso partir da democratização da informação”, diz o professor Gílson Moura. “A democratização precisa chegar à publicidade oficial, que contempla os grandes grupos de mídia e deixa à míngua os jornais do interior do país”, afirma Mario Augusto Jakobskind, da ABI. “A verdade ainda prevalece, não na TV, mas no Facebook ou no Youtube. Existem alternativas além do choro”, ensina Sílvio Tendler.