Folha de São Paulo – em 21/10/2013
TENDÊNCIAS/DEBATES
Por: Leonardo Padura Fuentes
Lenta, mas inexoravelmente, o país está se tornando um lugar onde uns (a minoria dramática) têm mais do que outros (a trágica maioria)
Há um país no mundo onde um porteiro de hotel, ou um manobrista, ou até um vendedor de abacates ganha mais dinheiro do que um médico, um engenheiro, um professor universitário. Esse país, é claro, tem que ser extremamente singular, atípico. Para obter uma vida mais digna, os engenheiros tornam-se porteiros ou motoristas de táxi, os professores passam parte do seu tempo revendo a matéria com os alunos para que seu salário oficial triplique, e há médicos que criam porcos ou que dependem de doações de pacientes ou de remessas enviadas de fora do país por um parente.
É um país onde as mudanças têm sido tomadas para restaurar a “normalidade” alterada pela deformação da singularidade, em um processo lento, mas necessário, cujos objetivos e formas (mais um caso de singularidade) são pouco conhecidos por seus habitantes. Nós, que vivemos nesse país.
Desde o início da revolução de Fidel Castro, muito prontamente anunciada como um processo político e econômico socialista, Cuba começou a se tornar esse país singular. Enquanto o governo estava empenhado em praticar uma política internacional de caráter marcadamente terceiromundista (com ênfase na solidariedade internacional, o espírito latino-americano etc.), no interior da sociedade, aplicava benefícios próprios ao Primeiro Mundo, que iam desde o acesso gratuito à medicina, à educação e à prática esportiva de qualidade até o pleno emprego, a ascensão social e intelectual das mulheres e muitos outros.
Para que os cubanos vivêssemos no Primeiro Mundo, sempre faltou, no entanto, a possibilidade de satisfazer certas preferências materiais, ou a possibilidade de viver em uma sociedade aberta para o mundo, para a troca de ideias, a opção de discordar. A combinação de um e outro extremo desse diapasão de possibilidades e impossibilidades colocou-nos em uma espécie de “Segundo Mundo”, que teria elementos de ambos, mas ao qual faltariam outros aspectos quase em igual proporção. O resultado –ou um deles– estava revestido de nossa peculiaridade política e social, mãe da singularidade visível nas vidas e escolhas dos indivíduos.
Nos últimos 20, quase 25 anos, que se sucederam desde o desaparecimento da União Soviética e de seu apoio econômico, a singularidade cubana aumentou: no meio de tanto desabamento, o governo persistiu no modelo socialista já estabelecido, manteve sua projeção internacional terceiromundista, mas dos benefícios de Primeiro Mundo poucos sobreviveram.
Uma educação pública que perdeu qualidade, uma saúde gratuita dispensada em hospitais às vezes em ruínas, uma prática esportiva que, sem se dizer às claras, arriou a bandeira do orgulho do amadorismo, o reconhecimento de que o Estado/governo não pode contratar e pagar salários a todos os cubanos, o renascimento da prostituição e a necessidade de o engenheiro trabalhar como taxista.
Com o processo de mudança empreendido nos últimos cinco, seis anos, a singularidade cubana começa a desvanecer-se em um movimento que nos cerca cada vez mais, e de forma dramática para a maioria da população, com modos de vida mais próximos aos do Terceiro Mundo com os quais comungamos do que com os do Primeiro Mundo com os quais tentamos competir… Ao menos em determinadas áreas.
Embora seja verdade que a mortalidade infantil cubana é menor que a norte-americana, que Cuba forma quantidade suficiente de médicos para enviar à Venezuela, ao Brasil e a dezenas de outros países ao redor do mundo sem que seu sistema de saúde entre em colapso, também é verdade que, lenta, mas inexoravelmente, o país esteja se tornando um lugar onde uns (a minoria dramática) têm mais do que outros (a trágica maioria), e que, para manter seu controle político, o governo teve que empreender uma cruzada contra a corrupção, e que lenta, mas visivelmente, faz renascer a iniciativa privada… Porque tanta singularidade resultava insustentável, mesmo para continuar a fazer parte do Terceiro Mundo.
LEONARDO PADURA FUENTES, 58, é escritor e jornalista de Havana, vencedor do Prêmio Nacional de Literatura 2012 de Cuba
Tradução de ARTURO RIVAS
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