Publicada na Folha de São Paulo em 2/04/2014
MÔNICA BERGAMO
MARLENE BERGAMO
ENVIADAS ESPECIAIS A CARACAS
Quase dois meses após o início dos protestos que já deixaram 39 mortos na Venezuela, dois deles no sábado (29), o presidente Nicolás Maduro recebeu a Folha para uma entrevista exclusiva em Caracas. Foi a primeira conversa do dirigente com um jornal desde a onda de violência.
A conversa ocorreu na sexta (28), dois dias depois que chanceleres de países da UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) visitaram a Venezuela para se reunir com o governo e com representantes da oposição, que acusaram Maduro de reprimir os protestos com prisões e torturas;coisa que ele nega.
Folha – Uma das recomendações da UNASUL depois de visitar a Venezuela foi a de que se modere a linguagem para viabilizar o diálogo entre governo e oposição. Como o senhor recebeu este conselho?
Nicolás Maduro – A visita da UNASUL foi solicitada por nós. E foi organizada em tempo recorde. A UNASUL está dando a máxima prioridade à defesa da democracia na Venezuela, ao governo constitucional e contra o golpe de Estado. Os chanceleres se reuniram com todos os setores. E puderam constatar as dificuldades que existem para o diálogo político com um setor da direita que, apesar de chamado, não quer dialogar. E que tenta tapar o golpe dizendo que são apenas protestos. Não são. É um golpe que assumiu uma modalidade perversa de violência na rua. Agora, está bem: se ajuda que esse setor se sente numa mesa para falar de paz, baixemos um pouco o tom da linguagem.
Mas o senhor ainda não baixou.
Na Venezuela há um debate muito quente, permanente. E nós, venezuelanos, temos uma virtude: dizemos as coisas como é preciso dizer.
Vocês propõem mudanças profundas no país e uma parte da população é contra. A polarização, portanto, deve seguir.
Em todos os países democráticos há polarização. Na Venezuela, ela é histórica, entre um projeto de pátria e outro, de antipátria. As mudanças que promovemos foram debatidas em 19 eleições, e nós vencemos 18. O nosso socialismo democrático, bolivariano e cristão foi referendado por uma sociedade que baixou a pobreza de 70% para menos de 20%, que reduziu a miséria extrema de 30% para menos de 7%, o desemprego, de 25% para 5,6%. Esse modelo encontrou uma oligarquia, uma direita que se opôs antidemocraticamente, que deu golpes. Que entra no canal eleitoral e constitucional por alguns momentos, mas que sai dele muito rápido. E que agora retornou ao caminho golpista.
Os estudantes de oposição apresentaram à Unasul relatos de repressão e de tortura.
Falso. Mentem descaradamente. A tortura acabou na Venezuela como política de Estado. Ainda há 5.000 desaparecidos no país das décadas de 60 e 70, época em que milhares de estudantes e trabalhadores foram torturados e assassinados e não se dizia nada. A tortura acabou com a vitória da revolução bolivariana.
E as prisões de manifestantes?
Dirigentes da oposição se comunicaram com nosso vice-presidente no início das manifestações violentas para dizer que havia abuso policial e tortura. Eu falei: tragam-me as denúncias. Tem cinco semanas que estou esperando. Se aqui há algum tipo de abuso policial, imediatamente [os agentes de segurança] são capturados e sentenciados. Estão apresentando um mundo ao contrário. Primeiro, há um chamado para derrubar um governo legítimo. Ele é acompanhado de queima de universidades, de ônibus, de metrô, de serviços elétricos, de ataques e de assassinatos violentos.
A oposição diz que 800 mil saíram as ruas e que só uma minoria é violenta. Mas o governo criminaliza a todos.
Por covardia, a oposição se deixou estigmatizar e levar por uma extrema direita golpista. Guardaram silêncio. Quando queimaram ônibus e universidades, disseram que era um protesto justo.
O senhor define a campanha A Saída, que prega que deixe o governo, como tentativa de golpe. No Brasil, o PT fez a campanha Fora FHC no governo de Fernando Henrique Cardoso. Sempre houve o Fora Lula. E os governos nunca falaram de golpe.
Qualquer um pode falar. Mas, na Venezuela, não se trata de uma palavra. É um plano político. Aqui se convocam manifestações violentas que provoquem o caos e a ingovernabilidade para derrubar um governo legítimo. Não conseguiram. Nem vão conseguir.
No Brasil houve protestos violentos em 2013, até com tentativa de invasão do Palácio do Planalto. E o governo não falou de golpe. Não há um exagero de retórica?
É incomparável. Na Venezuela, nós temos uma direita que já deu vários golpes de Estado condenados internacionalmente. E que é ligada aos círculos mais conservadores e de tradição golpista dos EUA. Hoje nós temos provas de que toda a organização e a liderança fundamental da direita venezuelana recebe milhares de dólares para impulsionar saídas não constitucionais na Venezuela.
A deputada Maria Corina Machado foi cassada na semana passada de seu cargo de deputada sem um processo em que pudesse se defender. No Brasil, um deputado condenado chegou a ir algemado ao Congresso e teve direito à defesa, tal a gravidade de se cassar, numa democracia, um parlamentar eleito.
Ela abandonou a Assembleia Nacional. Como deputada, estava proibida, pela Constituição, de aceitar outros cargos públicos. Bem, essa ex-deputada aceitou um cargo público de um governo estrangeiro, o panamenho [ela tentou falar na OEA com credencial do Panamá], que é inclusive um governo hostil à Venezuela.
Não seria necessário um processo em que se defendesse?
Como dizem os constitucionalistas, esses casos não admitem provas contrárias, porque são uma violação expressa da Constituição.
Prefeitos também foram destituídos, condenados e presos porque não evitaram barricadas em suas cidades, com direito a julgamento em uma única instância. Também não foi um pouco violento?
A única violência foi o ataque ao povo que os elegeu. Esses prefeitos, com mentalidade fascista, de direita extrema, encabeçaram ataques, usaram seus cargos para atacar seus próprios eleitores. Um deles foi responsável pelo incêndio de uma universidade, levantou barricadas.
Barricadas são históricas, usadas em diferentes épocas por manifestantes. De novo: não é um exagero falar em golpe?
No caso da Venezuela, não. Porque o plano deles era trancar o país, as cidades principais, enchendo as ruas de barricadas, como na Ucrânia.
É como fizeram com João Goulart [derrubado no golpe de 1964]. Demonizaram João Goulart. Fizeram protestos de família e liberdade. Diziam: são pacíficos. Mas detrás deles havia um plano golpista, dos EUA e da CIA. Isso contra o Brasil, que é um continente. Imagine contra a Venezuela?
E agora, 50 anos depois, sai a CIA pedindo perdão. Documentos provam que o principal plano de ataque dos EUA contra o [presidente chileno Salvador] Allende [que sofreu golpe em 1973] era na economia. Na época, perguntavam ao Goulart e ao Allende:Vocês têm provas de que a CIA planeja um golpe? Diziam:Não, não tenho. Eu, sim, tenho provas de que estiveram por trás do golpe contra Chávez [em 2002] e que estão agora por trás deste golpe.
Que provas tem?
Documentos de todo tipo. De como se conspira. De como se financia.
O senhor fala de guerra econômica. Mas há problemas de administração da economia.
Claro. Há problemas em todos os países.
Há dificuldades na exportação de petróleo, na produtividade, na produção de alimentos, no câmbio. Há intervenções em preços, controle de juros. Isso não prejudica um bom ambiente para os negócios?
Nosso modelo é exitoso. Em 1999, nosso PIB era de US$ 90 bilhões. Hoje é de US$ 400 bilhões. É certo que em algum momento cometemos erros. Enfrentando a guerra econômica, a especulação, o roubo, a corrupção, tomamos medidas às vezes muito severas que paralisaram o trabalho produtivo de alguns setores. Na Comissão de Paz [que reúne governo, setores da oposição e empresários], estamos corrigindo, para liberar as forças produtivas.
Inflação, violência e desabastecimento não são problemas de agora.
São problemas de todos os países. Se agarrarmos um mapa agora mesmo, buscarmos dez países, e estudarmos por uma semana…
A maior inflação será a da Venezuela.
Mas a maior igualdade será a da Venezuela também. Todos os países têm problemas, que surgem por uma conjuntura, por causas naturais, sociais ou por políticas equivocadas. E isso justifica a violência, derrubar governos legítimos e democráticos no mundo? Não. Quem quiser protestar que proteste
O comandante Chávez foi o campeão da crítica e da autocrítica. E era o campeão de chamar o povo aos protestos. Eu também. Eu chamo ao povo venezuelano que proteste.
Se uma pessoa está em uma fila e não encontra leite, não encontra papel higiênico…
Isso é conjuntural.
Se o senhor não fosse presidente, protestaria também?
Totalmente. Totalmente. Para isso há democracia. Para que as pessoas saiam, digam o que querem, o que sentem, e para que os governantes façam o que têm que fazer para resolver os problemas. Agora, que não seja uma coisa de marketing. E por que a Venezuela é o centro de tanto ataque midiático mundial, quando tem menos problemas do que outros povos do mundo? Quando as pessoas aqui não morrem de fome, têm o seu teto, a educação garantida? É porque a Venezuela é o epicentro de uma revolução, de uma mudança de paradigma na América Latina. Querem desprestigiar a revolução para que os povos não vejam que um outro rumo, um outro mundo é possível.