Carta Maior – 27/03/2014
Em entrevista à Carta Maior, o historiador Moniz Bandeira fala sobre a crise na Ucrânia, suas implicações geopolíticas e possibilidades de escalada.
Marco Aurélio Weissheimer
“A crise na Ucrânia evidencia e confirma a análise da política internacional, consubstanciada em no meu livro A Segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensões estratégicas dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia às África do Norte e ao Oriente Médio). Moscou não vai tolerar que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) estenda sua máquina de guerra às fronteiras da Rússia, nem que posicione um escudo antimísseis nos territórios da Polônia e da República Tcheca”. A avaliação é do cientista político e historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, em entrevista à Carta Maior. A presença da OTAN na Ucrânia, comparou o historiador, representa, para a Rússia, a mesma ameaça que os mísseis em Cuba representavam para os EUA em 1962.
Carta Maior: Qual a sua avaliação sobre os fatos que se sucederam ao plebiscito na Crimeia que decidiu pela anexação dessa região à Rússia?
Moniz Bandeira: Não houve propriamente anexação, mas, de fato e de direito, uma reincorporação da República Autônoma da Crimeia à Rússia, aprovada por 96,77% dos 83,10% dos votantes, uma participação massiva, no referendum convocado pelo Parlamento regional. Essa península permaneceu virtualmente sob a soberania da Rússia, desde o Tratado de Küçük Kaynarca, firmado com o Império Otomano, em 1774, durante do reinado da imperatriz Catarina II, a Grande (1729 –1796). Como lembrou o presidente Vladimir Putin foram os bolcheviques que, após a revolução de 1917, cederam, sem consideração étnica, territórios russos que formam atualmente o sudeste da Ucrânia, para a qual, em 1954, Nikita Khrushiov, secretário-geral do Partido Comunista da URSS, transferiu, por iniciativa pessoal, a Crimeia, juntamente com Sevastópol.
A iniciativa de reintegrar-se à Federação Russa constituiu uma reação ao golpe perpetrado pelas storm-troopers, grupos treinados, armados e organizados, militarmente, na Lituânia e na Polônia, com fardas da antiga divisão SS Galitzia (Waffen-Grenadier-Division der SS/galizische SS-Division Nr. 1), formada pelos ucranianos que se aliaram às forças da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. Foram essas milícias do Setor de Direita (Pravyi Sektor) e do Svoboda do (Partido Liberdade), que, em fevereiro, conquistaram o poder em Kiev.
O politólogo húngaro-americano, George Friedman, presidente da Stratfor, companhia especializada em global intelligence, embora escrevesse que “não sabe o que ocorreu em Kiev”, referindo-se hipocritamente ao putsch contra o presidente Viktor Yanukovych, reconheceu que “houve certamente muitas organizações financiadas com dinheiro americano e europeu que estavam comprometidas com a reforma do governo” (Geopolitical Weekly – March 18, 2014).
Foram essas ONGs que promoveram as demonstrações – com dois senadores americanos à frente – John McCain (Partido Republicano) e Christopher Murphy (Partido Democrata) – e possibilitaram a captura do poder pelos neonazistas do Setor de Direita e do Svodoba, discípulos ideológicos de Stepan Andrijowytsch Bandera (1909-1959), anti-semita e anti-russo, aliado de Hitler na Segunda Guerra Mundial. O banqueiro Arseniy “Yats” Yatsenyuk, candidato de Victória Nulands (famosa pela frase “Fuck the EU”), autoproclamou-se primeiro-ministro e colocou os neonazistas em postos chaves do governo.
O almirante Ihor Yosypovych Tenyukh, ministro interino de Defesa da Ucrânia é alto dirigente do Svoboda; Dmytro Yarosh, fundador do Setor de Direito, outro partido neonazista, é o vice-presidente do Conselho de Defesa e Segurança Nacional. O poder em Kiev está, de fato, nas mãos de Oleh Yaroslavovych Tyahnybok, o líder neonazista do Svoboda, inimigo declarado do que chama de “máfia judaico-russa”. Com esse governo ilegal, sem legitimidade, oriundo de putsch, foi que a União Europeia firmou no dia 21 de março um tratado de livre comércio.
Carta Maior: Qual sua avaliação sobre o atual estágio da crise na Ucrânia?
Moniz Bandeira: Um conhecido meu, que vive em Kiev, relatou, por e-mail, que esses grupos neonazistas, que deram o golpe de Estado, a pretexto de integração com a União Europeia, gritando “democracia” e “liberdade”, continuam a aterrorizar os russos e os e os ucranianos de língua materna russa, bem como os fiéis da Igreja Ortodoxa Russa. Se o governo de Viktor Yanukovych era ruim, corrupto – disse ele – os neonazistas que assumiram o poder são muito piores. São lumpens armados, bandidos, terroristas, e a situação em Kiev continua muito perigosa.
A cidade está fervilhando, com milhares da gangs nazistas, de diferentes movimentos locais, absolutamente ensandecidos e estúpidos. E o banditismo e o terror, que atormentam Kiev, atingem quase todas as regiões da Ucrânia. Nas cidades do leste, principalmente em Donetsk e Lugansk, onde predominam os russos e pró-Rússia, os conflitos com as gangs neonazistas não cessam porque a maior parte da população não aceita e não reconhece o governo instalado em Kiev. A Crimeia é a única região onde a situação é boa, calma, não há banditismo nem terrorismo, porque está sob o controle das tropas da Federação Russa.
Carta Maior: Quais as consequências para a Ucrânia e o Ocidente (Estados Unidos e União Europeia) da reincorporação da Crimeia pela Rússia?
Moniz Bandeira: As consequências são várias e complexas e daí a histeria dos Estados Unidos e da União Europeia. A Crimeia é uma das maiores regiões no Mar Negro para a exploração da gás e petróleo. A produção de gás aumentou, em 2013, cerca de 40%, com a abertura dos campos de Odessa e Stormovoe na Bacia do Mar Negro. A extração atingiu o nível de 1,5 bcm por ano. Um dos maiores depósitos de óleo e gás está na área do estreito de Kerch, que liga o Mar Negro ao Mar de Azov. O governo da Crimeia logo anunciou a nacionalização dos gasodutos e campos operados pelas companhias estatais da Ucrânia – ChornomorNaftogaz e Ukrtransgaz – incluindo o subsolo, no litoral do Mar Negro, e as grandes companhias petrolíferas – Royal Dutch Shell Plc (RDSA), Exxon Mobil Corp. (XOM) Shell e Chevron Corp, Eni Span. (ENI) haviam firmado contratos com o governo de Kiev para a prospecção e exploração de petróleo e gás, nessa região.
Ao reintegrar a Crimeia à Rússia, o presidente Vladimir Putin deu notável golpe nas pretensões dos Estados Unidos e da União Europeia. Bloqueou o acesso físico de Kiev às virtuais fontes de energia no Mar Negro e assustou as empresas petrolíferas que lá estavam dispostas a investir. Um consórcio, que incluía a Exxon e Royal Dutch Shell Plc (RDSA) planejava investir US$735 perfurar dois campos – Skifska e Foroska – a 80km no sudoeste do litoral da Crimeia. Mas sem a Crimeia, Kiev não mais tem jurisdição sobre seu litoral, e também sobre o Mar de Azov, e a Ucrânia perde importante área submarina, cuja produção de petróleo poderia alcançar o montante de 70 milhões de cru por ano, o que a tornaria menos dependente da Rússia em termos de energia.
A Ucrânia consome anualmente cerca 55 bilhões de metros cúbicos (bcm) de gás, dos quais 50 por cento importa da Rússia. E a estimativa é a de que as reservas de gás, na bacia do Mar Negro, possam conter de 4 trilhões a 13 trilhões de metros cúbicos. Com um investimento de US$ 8 bilhões a US$9 bilhões, a produção poderia alcançar um nível de 9,7 milhões de metros cúbicos por ano por volta de 2030. O controle dessa riqueza, que os Estados Unidos pretendiam ganhar através da adesão da Ucrânia à União Europeia, passou, juntamente com a Crimeia, para a Rússia.
As companhias petrolíferas terão certamente de fazer novas negociações e aí com as autoridades de Simferopol e de Moscou. A Gazprom já solicitou permissão às autoridades da Crimeia para explorar as reservas do litoral. E a Ucrânia, com uma economia improdutiva, terá outros grandes prejuízos. Necessita de US$ 25 bilhões, em 2014, para cobrir o enorme déficit da conta corrente e pagar aos credores estrangeira. Somente com Rússia, o débito é de US$16 bilhões, conforme informou ao presidente Putin, o primeiro-ministro Dmitry Medvedev, em reunião do Conselho de Segurança da Rússia. E a dívida com a Gazprom pelo fornecimento de gás alcançou o valor de US$1,8 bilhão em fevereiro de 2014.
Porém, suas reservas monetárias somam apenas US$12 bilhões. A perspectiva é de instabilidade social e volatilidade política, sobretudo quando o governo de Kiev aplicar as medidas de austeridades impostas pelo FMI, Estados Unidos e União Europeia para conceder algum bailout.
Carta Maior: Quais foram os fatores determinantes para o golpe que derrubou o presidente Viktor Yanukovych? Qual foi o peso do recuo na assinatura do acordo de livre comércio com a União Europeia?
Moniz Bandeira: Os fatores foram vários e as ONGs, financiadas por entidades dos Estados Unidos e da União Europeia, e os partidos neonazistas, aproveitaram as péssimas condições domésticas para fomentar as demonstrações na praça Maidan. Porém, um dos principais fatores, foi o fato de que, em 21 de abril de 2010, o presidente Viktor Yanukovych, após ser eleito presidente da Ucrânia contra Yulia Tymoshenko, anunciou um novo acordo, firmado, em Kharkov, com o então presidente da Rússia, Dmitry Medvedev, estendendo o arrendamento da base naval de Sevastópol, no Mar Negro. O acordo, que devia expirar em 2017, foi prorrogado por mais 25 anos, até 2042, com a possibilidade de ser estendido por mais cinco anos.
Em compensação, a Rússia investiria no desenvolvimento econômico e social de Sevastópol, além de reduzir em 30%, abaixo da cotação do mercado, o preço do gás natural fornecido à Ucrânia, estimado em US$40 bilhões. O acordo de Kharkov previa, como no tempo da União Soviética, a realização de projetos conjuntos, em setores estratégicos, tais como, inter alia, energia nuclear e aviação, e permitiria a Ucrânia retomar um ritmo sustentável de crescimento. E, outrossim, o acordo evitava que a Ucrânia aderisse à OTAN, cuja carta impedia que qualquer dos seus membros instalasse bases no seu território, até o fim do arrendamento pela Rússia. A crise, desde então, estava a fermentar, até que a proposta do acordo para a associação da Ucrânia à União Europeia e tratado de livre comércio, por diversos motivos, voltou à agenda em 2013. Esta seria, provavelmente, uma forma de anular o acordo de Kharkov, firmado em 2010.
O presidente Vladimir Putin sempre se manifestou disposto a não tolerar que a OTAN estendesse sua máquina de guerra às fronteiras da Rússia, ameaçando-lhe a posição estratégica, nem o estacionamento do escudo antimísseis nos territórios da Polônia e da República Tcheca.
Ao perceber o objetivo dos Estados Unidos e das demais potências ocidentais, a ameaça implícita nas suas iniciativas militares, visando a assumir o controle do Mediterrâneo e eliminar a influência da Rússia e da China no Oriente Médio e no Magreb, bem como isolar politicamente o Irã, ele restaurou a frota russa, no Atlântico, e expandiu a frota no Mediterrâneo, que passou a contar, a partir de 2012, com onze vasos de guerra – Aleksandr Shabalin, Almirante Nevelskoy, Peresve, Novocherkassk, Minsk, Nikolay Fylchenkov, ademais de um grande navio anti-submarino – Almirante Panteleyev – um navio de escolta – Neustrashimy’ – um navio de patrulha – Smetlivy – e um cruzador anti mísseis – Moskva.
A ampliação do porto de Tartus, na Síria, como base naval para sua frota no Mar Negro, já havia começado. E o que os Estados Unidos e os países da Europa certamente pretendiam era instalar em Damasco um governo que acabasse com essa base naval, interligada com a base naval de Sevastópol, no Mar Negro, impedindo o acesso da Rússia às águas quentes do Mediterrâneo. Daí que o presidente Vladimir Putin, com grande habilidade, conseguiu impedir que o presidente Barack Obama cometesse a insensata aventura de bombardear a Síria e forneceu ao governo de Bashar al-Assad os modernos e eficientes sistemas antimísseis – SS-N-26, para a defesa da costa, e o SA-21 (S-300 PMU2) para defesa aérea – a fim de enfrentar qualquer intervenção estrangeira.
A crise, que voltou a eclodir na Ucrânia, está interligada, de um modo ou de outro, com a situação na Síria, onde o presidente Bashar al-Assad está retomando o controle de todo o país. Inserem-se no mesmo contexto da guerra fria, que recomeçou, após um interregno, uma vez que a política de Washington não se desviou, em nenhum momento, da diretriz traçada pelo general Colin Powell no sentido de impedir a União Europeia de tornar-se uma potência militar, fora da OTAN, e a remilitarização do Japão e da Rússia, e desencorajar qualquer desafio à sua preponderância ou tentativa de reverter a ordem econômica e política internacionalmente estabelecida. (The Military Strategy of the United States – 1991-1992).
Carta Maior: O que o Brasil tem a ver com essa crise? Qual deve ser, na sua opinião, a posição da política eterna brasileira neste caso?
Moniz Bandeira: O Brasil não deve envolver-se na crise da Ucrânia. Seus interesses nacionais e estratégicos não são os mesmos dos Estados Unidos nem da União Europeia. O Brasil tem negócios com a Ucrânia, o projeto da empresa binacional Alcântara Cyclone Space (ACS), firmado em 21 de outubro de 2003. Trata-se de um acordo de cooperação a longo prazo entre os dois países, para entrar no mercado internacional de lançamentos espaciais. O município de Alcântara, no Maranhão, apenas 2° ao sul da Linha do Equador – onde é maior a velocidade de rotação da Terra – permite um impulso natural para o voo do foguete e possibilita a realização de lançamentos para qualquer direção a partir de um único ponto.
A Ucrânia iria fornecer a tecnologia e os equipamentos, que antes fabricava para a União Soviética, nas indústrias situadas no leste, particularmente em Donetsk e Lugansk. Esse projeto, embora sofresse atraso devido aos problemas financeiros da Ucrânia, que não pôde integralizar o capital, havida sido ultimamente retomado.
Os Estados Unidos, porém, sempre foram contra e, se controlam o governo de Kiev, podem inviabilizá-lo. Por outro, o Brasil não pode reconhecer uma governo ilegal, sem legitimidade, e manifestar-se contra a Rússia, que não cometeu nenhuma agressão contra a Ucrânia. A Criméia já era uma República Autônoma, dentro da Ucrânia, e seu Parlamento decidiu, legalmente, convocar um referendum e a maioria esmagadora votou pela reunificação com a Rússia, que não a invadiu. Suas tropas já estavam dentro em Sevastópol, na Crimeia, uma República Autônoma, de conformidade com o acordo de Kharkov.
Carta Maior: O presidente Putin ganhou mais uma disputa do presidente Obama, como ocorreu no caso da Síria? A política externa da Rússia está melhor preparada neste momento?
Moniz Bandeira: Sim. O presidente Vladimir Putin é o maior estadista da atualidade. Ganhou mais um lance no xadrez da política internacional. A Rússia tem uma larga experiência e é mais pragmática. A diplomacia nos Estados Unidos é conduzida, porém, por amadores, embriagados pela ideologia do “excepcionalismo” da América, como “the indispensable nation”. E, embora haja nos Estados Unidos notável elite acadêmica e intelectual, com profundo e claro conhecimento dos outros países, a América profunda ignora o resto do mundo. E é essa América profunda, que elege a maioria do Congresso e, portanto, influi também na política exterior, mais e mais militarizada, com base na crença da invencibilidade do seu poderio militar, conquanto, como reconheceu o próprio ex-presidente Bill Clinton, os Estados Unidos não tenham vencido nenhuma guerra desde 1945.
O fato de que o presidente Barack Obama se afoitou e logo reconheceu o governo instalado em Kiev pelos neonazistas e recebeu na Casa Branca o autoproclamado primeiro-ministro da Ucrânia, o banqueiro Arseniy “Yats” Yatsenyuk, evidenciou sua incapacidade como chefe de governo e de Estado. Esse governo não é legal, não tem legitimidade e, qualquer que seja a evolução da crise, o status quo na Ucrânia inevitavelmente se manterá. A situação na Ucrânia é extremamente volátil. E o que é doloroso é ver que a União Europeia se deixa subordinar pelos Estados Unidos, avassalada por meio da OTAN, convertida em gendarme global, cujos comandantes dão opiniões, fazem ameaças e ditam diretrizes políticas, como se fossem chefes de Estados. As sanções contra a Rússia são inócuas. Não reverterão à Crimeia à Ucrânia. Trata-se de um fato consumado. E, se as sanções forem realmente efetivadas, afetarão, sobretudo, as economias da França e da Alemanha, onde se prevê que a suspensão das encomendas militares da Rússia levará mais de 350.000 trabalhadores ao desemprego.
Carta Maior: Parece haver um lobby se constituinte na imprensa brasileira e ocidental contra a posição da Rússia. Como o senhor vê o comportamento da mídia neste caso?
Moniz Bandeira: Um grande amigo meu escreveu-me que “é muito preocupante notar que a imprensa e TV ocidentais escamoteiam completamente a situação na Ucrânia, que já me fora relatada por outros residentes em Kiev. Esses meios de comunicação, que temos parecem os da Alemanha nazista ou a dos países comunistas! Vivemos como no filme “Farenheit 452″…” Esse filme, dirigido e lançado em 1966, por François Truffaut, constituiu uma adaptação da novela de Ray Bradbury, mostrando o futuro da sociedade americana, onde os livros seriam proibidos e destruídos por autocombustão do papel.
No governo do presidente George W. Bush (2001-2009), Donald Rumsfeld, como secretário de Defesa, criou sigilosamente dentro do Pentágono, o Office of Strategic Influence (OSI), com a tarefa de consistiu em manipular a opinião pública, com falsas informações, e promover psychological operations (PSYOP), o mesmo objetivo do Ministério da Informação Popular e Propaganda do Reich nazista, dirigido por Joseph Goebbels, autor da lição de que “uma mentira deve ser somente muitas vezes repetida e então ela se torna crível” (Eine Lüge muss nur oft genug wiederholt werden. Dann wird sie geglaubt). O MI6 — Secret Intelligence Service (SIS) — do Reino Unido possui igualmente uma para Information Operations (I/Ops) encarregada de planejar as operações de guerra psicológica, como antes faziam a Special Political Action (SPA) e o Information Research Department (IRD). Esses órgão têm como função, inter alia, plantar, na imprensa, falsas estórias, rumores e desinformação, por meio de off-the-record briefing e double-sourcing, i.e., confirmadas por outro agente contratado para essa função. A remuneração era paga a editores, via um offshore bank em acessível paraíso fiscal. Todo esse processo eu demonstro, documentadamente, em meu livro A Segunda Guerra Fria – Geopolítica e Dimensão Estratégica dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio).
Carta Maior: Na sua avaliação, há o risco de uma escalada militar nesta crise?
Moniz Bandeira: Em uma confrontação militar entre a Rússia e os Estados Unidos há sempre o risco de uma escalação da guerra convencional para o uso de armas nucleares. Daí que um confronto militar entre os Estados e a Rússia afigura-me absolutamente impossível, ademais de que, ao que tudo indica, o eleitorado americano não esteja a favor de qualquer envolvimento na Ucrânia. O povo alemão também. De qualquer forma, a instalação de base militar da OTAN na Ucrânia a Rússia não aceitará. A ameaça à segurança da Rússia equivale, na percepção do presidente Vladimir Putin, à mesma que o estabelecimento de plataformas de mísseis em Cuba representava para os Estados Unidos, em 1962.
A Rússia não é nenhuma potência emergente. É uma antiga potência, que derrotou as forças de Napoleão e de Hitler. Herdou, como sucessora jurídica, vasto arsenal estratégico e não-estratégico (tático) de armas nucleares da extinta União Soviética, mais ou menos cerca de 1.800 ogivas nucleares estratégicas operacionais, reservas de 2.700, contra 1.950 operacionais e 2.500 de reserva dos Estados Unidos. Possui atualmente 558 plataformas estratégicas, com capacidade para carregar 2.500 ogivas nucleares, e disparar novos mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs) – seis variantes, entre os quais R-36M2, UR-100NUTTH, Topol-M e Yars. Também dispõe de novos submarinos nucleares estratégicos, com mísseis balísticos (SSBN), o projeto 667BDR Kalmar, baseados na frota do Pacífico, em Rybachiy, e seis projetos 667BDRM Delfin, integrando a frota do Nordeste na baía de Yagelnaya.
O poderio nuclear da Rússia é mais ou menos igual ao dos Estados Unidos. A União Soviética não foi militarmente derrotada. O que esbarrondou foi um regime socialista estatal, autárquico, dentro de uma economia mundial de mercado. E não creio na possibilidade de showdown militar da OTAN com a Rússia, nem mesmo com forças convencionais. Cerca de 60% do abastecimento de gás da União Europeia passa pela Ucrânia e seria, necessariamente, destruído. É provável, entretanto, que ocorram conflitos militares locais.
As províncias do leste da Ucrânias, sobretudo, Donetsk e Lugansk tendem fortemente a realizar plebiscito para reintegrar-se à Rússia com a qual tem estreitos laços não apenas étnicos, mas econômicos. E Moscou pode intervir se o governo de Kiev, que não conta com o apoio de toda a população, e seus partidários intensificarem a repressão contra a os que se manifestam pró-Rússia no leste ou em outras regiões da Ucrânia. De modo geral, a perspectiva não é tranquila em toda a região. É imprevisível.