Eduardo Diatahy B. de Menezes*
«Enfim, esta terra parece já um novo Portugal.»
Fernão CARDIM (1585)
«E por ventura por isto, ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de estado e lhe chamam estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão povoados alguns lugares e, sendo a terra tão grande e fértil como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição. (…) E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberem falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: ‘papagaio real pera Portugal’, porque tudo querem para lá. E isto não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.»
Frei Vicente do SALVADOR (1627)
Preliminares
Nossa condição cognitiva é tal que a apropriação do real pelo ser humano se faz sobretudo por meio de um processo simultaneamente ativo e semiótico. Noutras palavras, é algo que se dá mediante operações de classificação, de comparação, de diferenciação, e de atribuição de sentido e de valor às realidades com que se convive. Dentre estas, destaca-se naturalmente a vida social, os grupos, a coletividade, a nação, enfim, o País.
Bem distante daquilo em que acreditavam as tradições tanto idealistas quanto positivistas e realistas sobre o modo de funcionamento desse processo gnosiológico, o que chamamos dereal é sobretudo, para nós, um construto, uma invenção, ou, antes, uma reinvenção permanente, ao mesmo tempo individual e coletiva, no plano semiótico e conceptual. Com maior razão, isso se dá no caso de uma realidade histórico-cultural de extrema complexidade e mutação incessante como é um país, um povo, uma nação. No caso que nos interessa aqui, queremos referir-nos ao Brasil, obviamente.
Ao contrário de outras nações cujas origens se perdem em tempos imemoriais, o Brasil como atualmente é percebido, resultando da expansão marítima e mercantil de Portugal na disputa pela colonização ou posse de novas terras, possui uma data oficial de seu “descobrimento”, grau zero de sua construção social, econômica e cultural, nos termos da semântica cujas regras nos foram impostas pelos que dominaram esta área da geopolítica do Atlântico a partir de 1500. É óbvio, porém, que possuímos também uma longa pré-história, em particular na sua variada contribuição indígena, freqüentes vezes velada ou minimizada, mas que se projeta pelo período posterior à Conquista, e acrescida da reposição negro-africana no Novo Mundo mediante sua imensa diáspora forçada.
Assim, se o real se compõe de coisas ou sistemas de fatos e eventos, ele só se dá para nossa consciência, como representação coletiva, mediante atos e falas. É do entrecruzamento de um sem-número desses atos e falas, desses jogos discursivos ao longo do tempo histórico e dos diferentes espaços sociais que essa realidade chamada ‘Brasil’ vem sendo inventada e reinventada, e cujo produto mutante vai sendo transformado por nosso imaginário social e condensado como experiência compartilhada em nossos códigos de sensibilidade e de conduta, valores e crenças que a memória coletiva preserva, assegurando a sua singularidade contrastiva entre outros povos e nações.
Teremos uma ilustração significativa desse processo de construção ou invenção se acompanharmos a produção da cartografia do Brasil desde o século XVI: da ilha presumida nos inícios das primeiras expedições exploratórias, pouco a pouco não só as técnicas de elaboração dos mapas e representações geográficas foram sendo refinadas, mas também a ocupação efetiva do espaço e o conhecimento da terra foram sendo retificados e aperfeiçoados. Mas fomos, de começo, a imagem produzida pelo espanto de olhares estrangeiros. E a primeira e saborosa expressão disso está na Carta de Pero Vaz de Caminha, que Capistrano de Abreu dizia ser nossa certidão de nascimento.
Durante os três séculos do nosso período Colonial, foram sobretudo esses olhares estrangeiros que construíram a nossa imagem e produziram a consciência do que somos: portugueses, judeus, mouros, espanhóis, franceses, africanos, italianos, alemães, holandeses, e, ao longo do tempo do Brasil independente, vieram mais: suíços, norte-americanos, russos e outros eslavos, etc., que, aventureiros, colonos, missionários, comerciantes, prostitutas, traficantes, negreiros, degredados, foragidos, escravos, artesãos, naturalistas e homens de ciência, diplomatas, viajantes e visitantes, foram todos construindo essa imagem sempre mutante, única e múltipla.
É interessante observar que, nos inícios, esse olhar de espanto e de deslumbramento face ao Novo Mundo produziu imagens ora paradisíacas, ora negativas, em que se sobressaem a terra, a natureza exuberante e grandiosa, mas também a sua gente e seus costumes. O Padre Anchieta, por exemplo, ao escrever a primeira arte de gramática da língua geral mais falada na costa do Brasil, na frase com que inicia seu texto, afirma que os primitivos habitantes desta terra não possuem em sua linguagem nem f, nem l, nem r, porque eles não têm nem Fé, nem Lei, nem Rei. Ou seja, ele definia nossos ancestrais pela negação, pois em seu viés etnocêntrico não encontrava aqui as mesmas instituições que conhecia no Velho Mundo. E Narciso sempre acha feio tudo que não é espelho…
Com o fim do exclusivo português e do pacto colonial, o Brasil independente ou incipiente abriu-se à curiosidade universal e sobretudo à intensa expansão das ciências naturais de que fomos o principal fornecedor de matéria prima, por nossa imensa diversidade biológica e ecológica. Boa parte do avanço dos conhecimentos científicos nesse domínio e dos acervos das Universidades e Museus de História Natural espalhados pelo mundo se formaram a partir dessas expedições, que duram até os nossos dias. Aliás, isso ocorre de fato desde os sábios trazidos pela administração de Nassau, na primeira metade do século XVII, quando inclusive se instalou o primeiro observatório astronômico em terras do Novo Mundo. Mas provieram também de artistas de todo gênero, que contribuíram significativamente para a construção de nossa imagem: é riquíssima a iconografia do Novo Mundo e a do Brasil em particular.
Paralelamente a essa presença dominante do olhar, da fala e da conduta dos estrangeiros, e em relação dinâmica, ora convergente ora antagônica, com estes, foi se constituindo o nosso povo, com seus sentimentos, normas e valores, códigos e costumes, que se singularizam lentamente e vão pouco a pouco constituindo o nosso perfil peculiar, inclusive pela apropriação dessa realidade por meio de nossa própria fala e nosso próprio olhar, mediante múltiplas linguagens (músicas, ritmos, danças, religiosidades, festas, arquiteturas, decorações, narrativas, poéticas, representações, etc.) que, por simplificação e comodidade, costumamos chamar de cultura brasileira.
Exame de alguns casos
Tomemos para efeito de simples ilustração desse esforço de invenção do Brasil no pensamento brasileiro o exame, sumário embora, de alguns casos exemplares. Deixo de lado, por óbvias razões, diferentes gêneros de trabalhos que também poderiam ser aqui contemplados, mas que, sua natureza diversa do critério adotado, tornaria a tipologia escolhida excessivamente complexa.[1]
I. Em primeiro lugar, em ordem cronológica, tomo a recolha de textos significativos feita por Djacir Menezes, em seu já clássico O Brasil no Pensamento Brasileiro.[2] Trata-se de alentado volume com mais de 800 páginas, contendo um leque variado de 72 autores e 74 textos diversos, sem contar a apresentação de Artur César Ferreira Reis e a introdução de Djacir Menezes.
Mesmo a uma primeira aproximação superficial, ver-se-á que não passa de mera amostra do que tem produzido o pensamento brasileiro que se debruça sobre a ingente tarefa de interpretar e criticar as características daquilo que se costuma chamar de brasilidade. Na verdade, posto que importantes os textos que a compõem e embora produzam uma imagem expressiva das qualidades e defeitos do Brasil, esta se mostra nitidamente parcial e fragmentária. Com efeito, constituem apenas parte da produção ensaística de pensadores, estadistas, economistas, historiadores, juristas, críticos que buscaram interpretar nossa realidade. Como quer que seja, a obra possui valor inegável pela riqueza de textos e variedade de autores contemplados, em especial na sua edição mais recente e ampliada, que introduziu toda uma seção nova (a 4ª), intitulada «Caminhos na Terra e na História», com o intuito de acolher autores excluídos ou ainda não vigentes ao tempo da edição de 1957, quando os escolhidos então foram agrupados sob as seguintes rubricas:
- As Instituições e o Meio Social
- Eleições, Rebeliões e Partidos
- Retratos do Brasil
- O Ensino e as Elites
- A Tese Republicana
- A Crítica Inconformista.
Enfim, com todas as restrições apontadas e que decorrem da inevitável escolha e dos limites do volume, os textos que compõem essa contribuição de Djacir Menezes não estão ordenados por critérios cronológicos, mas sim postos em grupos temáticos, conforme assinalei. Todavia, eles recobrem uma panorâmica do nosso pensamento, indo, de modo expressivo, desde um dos nossos primeiros olhares tipicamente brasileiro, que é o da deliciosa escritura do franciscano baiano, Frei Vicente do Salvador, autor da primeira história do Brasil, até, por exemplo e mui significativamente, o texto de um dos mais competentes especialistas de nossa literatura, justamente aquele em que Afrânio Coutinho forjou a definição do traço característico de nossa produção intelectual: a tradição afortunada. Mas o conjunto dessa amostra opulenta servirá apenas como um aperitivo que fará o seu ofício propedêutico se suscitar o gosto pelo aprofundamento do estudo e compreensão de nossa realidade.
II. Nesse gênero de produções, porém introduzindo uma perspectiva analítica como fulcro do trabalho e não propriamente uma coletânea de textos representativos do pensamento brasileiro, uma segunda obra merece a nossa atenção: refiro-me ao belo esforço de Mariza Veloso, antropóloga, e Angélica Madeira, teórica da literatura, com o título modesto mas mui significativo de Leituras Brasileiras.[3]
Ainda que esta obra, por seus próprios méritos deliberadamente teóricos, possua um caráter polêmico – e o leitor verificará isso facilmente desde o prefácio claramente provocante e dialogal de Rouanet – não é minha intenção aqui proceder a um exame crítico do texto, posto tenha a sua leitura suscitado em mim o desejo de participar do debate com alguns reparos e sugestões. Meu propósito, todavia, restringe-se a uma apresentação sumária da obra como produto ou exemplar da arquitetônica da nossa inteligência no processo de invenção do Brasil.
Assim, as autoras iniciam o livro por um capítulo que busca justamente responder à questão «Por que Leituras Brasileiras?», o que mostra como seu esforço se prendeu ao estudo de temas relacionados à cultura, à política e ao modo como se constituíram as narrativas e imagens que têm dado suporte à representação do Brasil e dos brasileiros. Noutros termos, o exame dos processos históricos que deram corpo a uma sociedade que porta as marcas de seu legado colonial na percepção de si mesma e como configuração multiétnica e multicultural, mostrando no entanto, no presente, uma singularidade que é fruto de trocas contínuas e de conflitos de tradições diversas aqui enraizadas. Configuração, ao mesmo tempo carregada de harmonias e contradições, efetuando-se sob a vigilância e os códigos de uma civilização imperial européia, ou conforme dizem as autoras: «As metrópoles foram as responsáveis pelas narrativas fundadoras da modernidade ocidental e, entre elas, as que dizem respeito à constituição dos paises colonizados; foram também a sede do controle da produção e da difusão dos discursos e das idéias» [p. 27], que, no período colonial, constituíram o conjunto de narrativas de exploração e conquista do Novo Mundo, em relatos de viajantes, em textos missionários, em crônicas da vida urbana, até as narrativas globalizadas de hoje.
Nesse imenso território impunha-se alguma escolha, por isso as autoras procederam a «um mapeamento de textos», que se realiza em múltiplas direções e onde os extratos do tempo e das concepções vão se inscrevendo. Realizam assim uma seleção dos discursos e temas que vão construindo nossa paidéia sociocultural, nosso ethos, enfim, nossa gênese como povo e nação em seu perfil característico por suas manifestações simbólicas e práticas sociais expressivas. Em suma, as narrativas que elas selecionam para exame e ilustração do quadro analítico adotado «se propõem a constituir um corpus expressivo das diversas interpretações do Brasil, (…) um corpus significativo e consistente sobre a cultura brasileira» [p. 29], bebido tanto na ensaística que compõe nosso pensamento social, quanto em nossa literatura. Ao que elas completam com esta intenção de ordem extrateórica: «O conhecimento do que somos e a consciência crítica de nossa formação social e de nossa história devem servir de aliados para o enfrentamento dos desafios contemporâneos» [ibidem].
Nesse processo de constituição de nossa paidéia, as mutações históricas nas “estruturas de referência” metropolitanas não deixaram de acarretar modificações locais no tom de nossas narrativas, nas vozes que diziam o nosso sentimento de colonizados e resultante do encontro, ora conflitante, ora convergente, das diversas tradições e repertórios culturais que moldaram nosso modo de ser, nossa cultura política e estética, nosso imaginário sociocultural. É interessante observar que embora as autoras, no estudo desse processo, não contemplem o nosso período colonial, não obstante, nem por isso deixam de sublinhar com argúcia que é então que se implanta o modelo cultural europeu fundamental para a compreensão da dinâmica sócio-histórica de nossas tradições. Além disso, assinalam ainda que nossa sociedade colonial, desprovida de instituições específicas que assegurassem um desenvolvimento autonômico das práticas culturais, mesmos assim os modelos estéticos e cognitivos para aqui transplantados produziram, contraditoriamente, nossas matrizes estéticas originais que propiciariam nossa diferenciação em face dos modelos metropolitanos. Expressão exemplar dessa criação foi Barroco, como estética e concepção de vida, na sua força de veículo capaz de exprimir o caráter agonístico de nossa condição dominada e periférica: «a tradição estética dobarroco é um marco comum a todos os países da América Latina, e o que temos de mais comum e mais singular em cada uma das expressões nacionais. Tendo se constituído em obras de arquitetura, escultura e música, marcadas por forte religiosidade e exuberância, a arte barroca, na América Latina, não tem cessado de fornecer formas e imagens, alegorias dissonantes e inaugurais, distintas da expressão metropolitana, exemplo de nossa capacidade antropofágica de elaborar respostas criativas e alternativas aos modelos e cânones europeus» [pp. 30-31]. Para completar a lúcida intuição desse processo, só faltou destacar que, no caso do Brasil, essa produção marcante e original foi obra sobretudo de mulatos, cujo poder criativo marcará até hoje os principais domínios de nossas expressões culturais.
Portanto, é mais particularmente ao contexto pós-colonial de nossa cultura, progressivamente mundializado, que as autoras vão buscar seus materiais, orientadas por um rumo que aponta na direção de uma releitura sistemática e crítica dos mecanismos históricos que constituíram nossa modernidade, acentuando que, ao contrário de uma lógica linear e homogeneizadora, é possível observar nesse processo a complexidade e as disjunções nas interfaces das várias instâncias que constituem a sociedade – cultura, economia, política – e ainda as segmentações mais finas no interior dessas esferas. Além disso, nos períodos mais recentes em que se disseminam ideologias globalizantes, essa proposta de uma releitura de nossa tradição servirá de ensinamento para evidenciar como a cultura brasileira foi elaborada «na malha de uma enorme variedade de trocas culturais criadoras de concretudes históricas, narrativas e imagens que desenharam…, por si mesmas, uma fisionomia singular no que concerne às dimensões culturais, políticas e estéticas» [p. 35] e produziram o Brasil como configuração sócio-histórica específica.
Contudo, é mais particularmente no capítulo segundo desta obra – «Itinerários e Molduras»– que as autoras desenvolvem de forma consistente o aparelho conceptual com que tentam dar conta desse seu desiderato de releitura de momentos cruciais de nossa autointerpretação mediante suas práticas sociais e suas narrativas representativas. Recorrem para tanto a consagradas fontes teóricas, tais como Nobert Elias, Mannheim, Gramsci, Foucault, Bakthine, Bourdieu, Deleuze, etc., no intuito de trabalhar categorias analíticas que lhe permitam realizar tal empreendimento crítico: ‘configuração sócio-histórica’, ‘bloco histórico’, intelligentsia, ‘formação discursiva’, ‘campo intelectual’, ‘intertextualidade’, etc., etc. , relacionando isso com os lugares e agenciamentos da enunciação ou moldura institucional das práticas discursivas e simbólicas. Desse aparente emaranhado conceptual habilidosamente operado por elas, uma conclusão se impõe como princípio de leitura: «iremos realizar não apenas um estudo histórico, retrospectivo das interpretações [do Brasil] já elaboradas, mas também descortinar novas perspectivas de investigação» acerca de tais questões concernentes ao repertório de interpretações por elas selecionadas; «tais narrativas serão tomadas como o que verdadeiramente são, isto é, representações construídas e não descrições naturais da realidade. O estatuto de representação não inibe o intercâmbio dos discursos no interior de uma cultura, nem minimiza sua força produtora de sentido. Os discursos não são vistos aqui como reduplicação ou cópia mimética de um real que lhes seja exterior. É preciso sempre ressaltar sua capacidade modeladora e constitutiva do próprio tempo histórico do qual emergem» [p. 53].
Isto posto, pode-se afirmar, resumidamente, que a obra percorre três unidades temáticas. A primeira delas focaliza sumariamente o século XIX, repassando as noções (‘natureza’, ‘território’ e ‘pátria’) com que a geração romântica enfrentou a construção da idéia de nação; passando em seguida para as gerações posteriores até a República, quando essa noção é tematizada sobre os conceitos de ‘raça’ e ‘meio geográfico’, mediante discussões que perdurarão pelas décadas seguintes; para enfim considerar os grupos intelectuais que circularão à volta da Academia Brasileiras de Letras, de onde elas destacam figuras como Machado de Assis, Euclydes da Cunha e Lima Barreto. A unidade seguinte recobre os anos 20, 30 e 40 do nosso século, sob o influxo da estética do Modernismo e dos inícios da institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, examinando tanto a sua esfera mais literária (sobretudo em Mário de Andrade e Oswald de Andrade), como a grande ensaística dos “retratos do Brasil” em figuras como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Por fim, na última unidade temática, dedicada aos «debates intelectuais dos anos 50, 60 e 70: engajamento e contracultura»,conforme afirmam as autoras, são examinadas algumas questões mais contundentes que emergem desse período mais recente e que decorrem do agravamento das desigualdades sociais que se perpetuam, e são analisadas relações mais complexas e densas entre cultura, estética, economia e política, sob o signo dos debates teóricos que compõem o horizonte mental de hoje.
Não gostaria de encerrar essa apresentação sumária da obra em foco, sem manifestar um incômodo intelectual que a mim, pessoalmente, provocou a sua leitura, não obstante encantadora sob muitos aspectos. Quero referir-me a um conceito equivocado que percorre todo o texto e que constitui verdadeiro empecilho para o trabalho de construção de umarationale nesta área: a noção de ‘identidade’ cultural, nacional, etc. Esse termo insidioso invadiu clandestinamente o campo das ciências humanas em período relativamente recente e agora ocupa um espaço tão avassalador que, praticamente, não há um texto contemporâneo sobre qualquer problema de nossas disciplinas que deixe de tomá-lo como algo central da discussão, quase sempre sem se dar conta que esse modismo constitui mero rótulo que serve para dissimular tanto a indigência teórica quanto a inconsistência do argumento. As próprias autoras manifestam por mais de uma vez a sua insatisfação com esse “conceito” dominante no jargão atual de nossas ciências, sem no entanto lograrem dele livrar-se. Isso aparece mais claramente quando são obrigadas a reconhecer que o processo de construção da «identidade nacional» sofre incessante mutação e por isso chegam a falar de «identidades múltiplas», etc., que é, evidentemente, um paradoxo lógico. Por outro lado, algo que se refaz continuamente, como ocorre no processo histórico da formação de uma nação, não pode constituir uma identidade que, por definição, é uma mesmidade, conforme se dá legitimamente no campo das ciências formais, as lógicas e as matemáticas. Um país, uma cultura e um povo constituem umsendo histórico, e não uma essência abstrata e universal: esse conjunto mutante cimenta a sua realidade sobre uma memória coletiva compartilhada, à qual seus agentes prestam uma fidelidade agonística, mas que constitui o tecido de uma rede que permite compor um perfil original, em sua singularidade contrastiva. Eis aí onde reside o problema desse conceito de identidade equivocadamente transplantado para as ciências sociais, cuja validade não foi ainda submetida a uma criteriologia radical.
III. Finalmente, portando o belo título Introdução ao Brasil: Um Banquete no Trópico,[4]examinarei rapidamente a terceira obra que escolhi como parte do conjunto ilustrativo dessa espécie de monomito cuja invenção se recria e se renarra quase que a cada geração. Situado a meio caminho entre as duas primeiras obras aqui apreciadas, este livro nem constitui inteiramente uma ampla coletânea de textos significativos como aquela organizada por Djacir Menezes, nem uma propriamente uma obra com propósitos de elaborar um quadro teórico de leitura crítica relativamente unificada das interpretações do Brasil, como é o caso do trabalho de Mariza Veloso e Angélica Madeira.
Com efeito, a obra em tela pretende, conforme assinala uma nota do editor, tomar o Brasil, em suas instituições, economia, cultura e história, como tema para reunir 19 estudiosos que apresentam sob formato reduzido textos clássicos do pensamento social no país que, «ao pensar a nacionalidade, foram decisivos para compreendê-la», desde os primeiros tempos de sua formação aos nossos dias. O mesmo editor, sublinhando as convergências e discordâncias entre tais “mestres”, acrescenta ainda este comentário: «as obras tratadas, que vão dos Sermões[de Vieira] aos Sertões, de Casa-Grande & Senzala a Formação Econômica do Brasil, aqui se visitam, referem-se uma à outra, realimentando-se, criando elos que iluminam nossos 500 Anos. Lê-las é um modo de participar da viva discussão sobre esse país mestiço localizado no trópico». Da leitura atenta da obra, porém, força é reconhecer que essa piedosa retórica patriótica do editor não chega a constituir mais que uma boa intenção, sem efetiva realização.
Posto que bem elaborado, este livro possui evidentes intuitos propedêuticos. Daí a razão do modesto termo «introdução» em seu título, visto que cada ensaio foi pensado com o propósito de estimular o leitor ao contato direto com os textos originais aqui apresentados. E eis por que, na Introdução elaborada pelo organizador da obra, ele a inicia por esta frase: «Já se disse com humor e verdade que ensinar é fazer cócegas na inteligência» [p. 11]. Portanto, a motivação da obra reside antes de tudo em servir de instrumento de trabalho para professores e alunos de cursos sobre o Brasil. Sublinhe-se no entanto que isso não diminui em nada o valor e a consistência do livro como produto intelectual de bom nível.
Mais significativo do que as palavras com que eu quisesse descrever a urdidura do livro será uma apresentação do seu sumário, com cada autor cuja obra vai apresentada pelos especialistas que escreveram os diversos capítulos:
- Padre Antônio VIEIRA: Sermões (João Adolfo Hansen)
- André João ANTONIL: Cultura e opulência do Brasil (Janice
Theodoro da Silva)
- José BONIFÁCIO: Projetos para o Brasil (Carlos Guilherme Mota)
- Visconde de MAUÁ: Autobiografia (Jorge Caldeira)
- Joaquim NABUCO: Um estadista do império (Luiz Felipe de
Alencastro)
- Eduardo PRADO: A ilusão americana (Lucia Lippi Oliveira)
- Euclydes da CUNHA: Os sertões (Walnice Nogueira Galvão)
- Capistrano de ABREU: Capítulos de história colonial (Ronaldo Vainfas)
- Paulo PRADO: Retrato do Brasil (Marco Aurélio Nogueira)
- Gilberto FREYRE: Casa-grande & senzala (Elide Rugai Bastos)
- Sérgio Buarque de HOLANDA: Raízes do Brasil (Brasílio Sallum Jr.)
- Caio PRADO JR.: Formação do Brasil contemporâneo (José Roberto do
Amaral Lapa)
- Victor Nunes LEAL: Coronelismo, enxada e voto (Bolívar Lamounier)
- Oliveira VIANA: Instituições políticas brasileiras (Mª Hermínia Tavares
de Almeida)
- Celso FURTADO: Formação econômica do Brasil (Francisco de Oliveira)
- Raymundo FAORO: Os donos do poder (Laura de Mello e Souza)
- Antonio CANDIDO: Formação da literatura brasileira (Benjamin
Abdala Júnior)
- José Honório RODRIGUES: Conciliação e reforma no Brasil (Alberto
da Costa e Silva)
- Florestan FERNANDES: A revolução burguesa no Brasil (Gabriel Cohn)
A simples leitura dessa lista já dá uma idéia do conteúdo do livro. Mas faz supor também a existência de uma escolha, cujos critérios não foram expostos claramente. Cabe legitimamente ao leitor indagar por que estes são os selecionados e por que outros foram excluídos. É óbvio que vários dos autores acolhidos como «mestres» do pensamento da brasilidade, de tão aclamados como clássico do gênero, é auto-evidente a razão de sua presença. Todavia, há de perdurar no espírito do leitor mais atento sobretudo certas ausências injustificáveis. Por exemplo, dentre os primevos, não cabe dúvida de que Vieira é importantíssimo e não se discute a sua presença. Mas por que não um Fernão Cardim, um Gabriel Soares de Souza e sobretudo um Frei Vicente do Salvador? Por outro lado, o século XIX inteiro vem representado, praticamente, apenas por José Bonifácio e o Visconde de Mauá: estranha a ausência de inúmeros estudiosos brasileiros do período muito mais significativos do que estes na matéria. Nem adianta argumentar que Nabuco, Eduardo Prado ou Euclydes são homens daquele século, pois na verdade escreveram suas obras sob o influxos da República e das novas idéias. Caberia ainda indagar, já no nosso século, e sem negar sua relativa importância, por que um Victor Nunes Leal aí está quando foram omitidos um Manoel Bomfim, um Alberto Torres, um Nestor Duarte, um Fernando de Azevedo, um Darcy Ribeiro, etc., etc.? Sei, porém, que o organizador dispõe de um argumento de ordem pragmática: a escolha se impunha diante do volume da obra.
Mas passemos aos propósitos e alcance do livro. Aqui, o organizador explicita claramente as suas razões, no seu texto introdutório. Afirma que a via escolhida foi a de apresentar, sob o formato de resenha, um conjunto de obras fundamentais para o conhecimento do Brasil, (e eu acrescentaria mais que várias dessas obras são também fundantes do Brasil na medida em que compõem a imagem e a concepção que foi sendo construída de nossa ontologia sociocultural). Portanto, não se trata de expor ou debater o pensamento de um Gilberto Freyre ou de um Sérgio Buarque de Holanda, visto que isso implicaria estudos mais consistentes que levassem em conta o seu pensamento expresso no conjunto de suas obras. Aquilo que aqui se oferece é uma apresentação reduzida de livros como Casa-grande & senzalaou Raízes do Brasil, em sua urdidura, em sua temática, em suas teses. A saber, nas palavras de Lourenço Dantas Mota, «expor o seu pensamento, sim, mas apenas tal como eles o expressaram em determinados livros. A forma de resenha solicitada aos colaboradores, (…), tem a [intenção] de chamar a atenção para o que esses livros contêm de duradouro, como instrumento de conhecimento do Brasil, para sua atualidade, em suma. (…) Este conjunto de obras mostra como nos vimos e nos julgamos ao longo da história. Levanta as grandes perguntas que nos fizemos – e as várias respostas que lhes demos – sobre o que somos e qual o nosso lugar no mundo, sobre os obstáculos que entravam ou retardam nossa marcha e o que fazer para removê-los» [pp. 11 e 21].
Um último reparo para encerrar a apresentação desta obra. O seu organizador tenta justificar a metáfora do «banquete» e de banquete tropical posto no subtítulo do livro, exprimindo o desejo que isso remeta a algo semelhante ao diálogo platônico, portanto algo que sugere que se apague o tempo e propicie o encontro lado a lado, por exemplo, Vieira, Nabuco, Euclydes, etc. Ora, tal metáfora pode até ser bela como figura literária e pode até tornar aIntrodução da obra mais amena. Contudo, na verdade, esse diálogo não se dá: Vieira, Nabuco e Euclydes, assim como os demais autores, permanecem cada um no seu tempo e no seu lugar. Não há nada na obra que aproxime efetivamente e propicie o diálogo, salvo a hipotética habilidade do leitor em elaborar interiormente o painel ou mosaico com os fragmentos aqui oferecidos. São ensaios autônomos em que cada especialista examina a significação e o alcance do autor objeto de sua escolha, apresentando de forma condensada a sua obra mais conhecida. Eventualmente, um ou outro desses especialistas chega a estabelecer comparações ou a fazer referência a outros autores em torno do escolhido.
À Guisa de Inconclusão
Das reflexões preliminares e sobretudo do percurso feito no exame sumário das três obras escolhidas para ilustrar os caminhos percorridos pelo pensamento brasileiro, pode-se deduzir uma conclusão ainda que provisória: como no mito de Sísifo, a tarefa do historiador e demais estudiosos desse gênero de investigação está condenada a incessante reconstrução, cada geração reescrevendo os relatos segundo seus horizontes de consciência. Ora, se todo conhecimento se faz a partir de um ponto de vista, no território da História e da ensaística em geral isto é ainda mais evidente, visto que aí se entrelaçam episteme e doxa, conhecimento verificado e meras opiniões, para não falar das inúmeras ideologias políticas e paixões pessoais, que tendem a polarizar as interpretações.
Por outro lado, não é difícil notar que nos três tipos obras que apresentei, estão excluídas todas as demais expressões de nossa produção simbólica ou discursiva, tais como a poética, a dramaturgia, a crônica, a prosa de ficção, (sem falar em nossas outras manifestações estéticas como a música, a arquitetura e artes visuais, etc.). Enfim, tudo isso que constitui nossatradição afortunada, a saber, nossa crítica cultural e literária e nossa própria literatura voltadas sempre para a missão de dizer o que somos e que, sob muitos aspectos, é amplamente superior em livre alcance interpretativo e criativo de nossa realidade do que toda a nossa produção em economia, sociologia, ciência política, etc., quase sempre perempta por seus discursos datados e constrangidos aos limites de ideologias políticas mutantes Há, pois, muito mais captação de nossa gênese e de nosso caráter nacional em Gregório de Matos Guerra, nos Inconfidentes, num Antônio José (o Judeu – trucidado pela Inquisição), em Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, J. Lins do Rego, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Antônio Callado, João Ubaldo Ribeiro, etc. do que em nossas exangues ciências sociais, exceção feita, conforme já assinalei, para a ensaística e a história social do início do século e sobretudo do modernismo para cá.
Destaque-se ainda que os textos escolhidos pelos diferentes organizadores das obras examinadas, posto sejam importantes e até indispensáveis, estão restritos aos escritores pertencentes à nossa ilustração, à nossa tradição letrada. Toda a riquíssima produção de nossacultura popular está fora de cogitação nessas escolhas, visto que alguma seleção se impunha, até porque se assim não fora teríamos que propor uma Biblioteca Nacional e não uma antologia básica. Aliás, diga-se, sumariamente, que a desmesurada tarefa de construir um quadro consistente como resposta à nossa aporia ôntica como povo e como cultura implicaria o cometimento de muitos especialistas que explorassem a elaboração da imagem do Brasil pelo menos nos seguintes segmentos discursivos: a) nos que se exprimiram nas diferentes fases de nossa história; b) nas diversas regiões de nosso continente sociocultural; c) nos vários olhares forasteiros que nos estudaram e apreciaram; d) no pensamento de nossa «ilustração» e nas imagens da literatura ficcional e poética, incluindo aí as visões de ufanistas contumazes e as dos críticos pessimistas; e) nas concepções de nossas elites políticas e econômicas e nas das massas e classes subalternas. Para não falar de outras formas de expressão tais como a pintura, a arquitetura, a música, a dança, o carnaval, os esportes, o humor, a caricatura, etc.
Em suma, para encerrar sem conclusão propriamente dita, gostaria de convidar a participar dessa permanente reflexão o poeta Carlos Drummond de Andrade que, usando de refinada ironia, no seu sentido etimológico e socrático,[5] nos propõe uma síntese maravilhosa do Brasil neste poema que transcrevo a seguir:
HINO NACIONAL
PRECISAMOS descobrir o Brasil !
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
O Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonnettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas…
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscinas,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…
os Amazonas inenarráveis…os incríveis João-Pessoas…
Precisamos adorar o Brasil !
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajustaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil !
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer ! Ele está farto de nós !
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?[6]
Fortaleza, 22 de abril de 2000
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* O autor é Doutor em Sociologia pela Université de Tours (França), Pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), membro do Instituto Histórico do Ceará, da Academia Cearense de Letras e membro titular da Association Internationale des Sociologues de Langue Française. Professor Titular de Sociologia da Universidade Fedral do Ceará e da Universidade Estudual do Ceará. Autor deContrapontos – ensaios de crítica, São Paulo: AnaBlume, 1998, etc.
[1] Penso em obras como: A Cultura Brasileira, de Fernando de AZEVEDO; Contribuição à História das Idéias no Brasil, de João Cruz COSTA; História da Inteligência Brasileira, de Wilson MARTINS; Evolução do Pensamento Político Brasileiro, de Vicente BARRETTO e Antonio PAIM, etc.
[2] Publicado inicialmente pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, do MEC-INEP, Rio de Janeiro, 1957, com introdução, organização e notas do mencionado estudioso, este livro foi republicado em 1972 pelo Conselho Federal de Cultura, acrescido de novos textos e com uma apresentação de Artur César Ferreira Reis. Sai, finalmente, em nova edição ampliada e com mais recursos (índice onomástico, etc.), na «Coleção Brasil 500 Anos», publicada pelo Senado Federal, Brasília, 1998.
[3] Cf.: VELOSO, Mariza e MADEIRA, Angélica: Leituras Brasileiras. Itinerários no Pensamento Social e na Literatura. Prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
[4] Cf.: MOTA, Lourenço Dantas (org.): Introdução ao Brasil – Um Banquete nos Trópicos. São Paulo: Editora SENAC, 1999.
[5] No grego, eirwneia, é um tropo pelo qual se diz o contrário do que as palavras significam, ou seja, um recurso de argumentação para levar o interlocutor a uma verdade mais subtil, etc.
[6] De seu livro Brejo das Almas, in Poesia e Prosa. Rio: Nova Aguilar, 1979: 108-109.