por Maurício Thuswohl, na RBA
O economista e professor Carlos Lessa é figura sem par no pensamento político e econômico brasileiro. Conhecido por seu perfil nacionalista, ele faz sobre o atual momento do país uma análise que ultrapassa os limites do embate ideológico, ao se posicionar de forma crítica em relação à política econômica do governo interino de Michel Temer e ao que classifica como “falta de rumo” do Brasil nos últimos anos, incluindo a era Lula e Dilma, quando o país não teria sabido definir o caminho para garantir seu crescimento econômico.
Lessa lamenta que, no governo interino, o BNDES, uma das principais ferramentas de promoção do setor produtivo e do desenvolvimento, tenha voltado à “era tucana” e se tornado um “instrumento de corretagem para facilitar a venda dos ativos brasileiros”. Presidente da instituição em 2003, ele diz se orgulhar de ter sido demitido por ter “brigado” com o então presidente do Banco Central do governo Lula, Henrique Meirelles, hoje ministro da Fazenda. “Eu sou inimigo do Meirelles.”
A receita econômica de Michel Temer e Henrique Meirelles, que inclui aumento de impostos e venda de ativos, é o melhor caminho para que se estabilize a economia brasileira?
Há uma discussão – do meu ponto de vista quase que histérica – sobre o corta ou o não corta, sobre põe imposto ou não põe imposto. No Brasil, a taxa de inflação não é o horror, o horror é a taxa de desemprego.
Quais medidas seriam necessárias para a retomada?
A grande discussão a ser feita é: crescer em que direção? Eu, por exemplo, acho que deve crescer pela construção da casa própria. Eu acho o programa Minha Casa, Minha Vida uma ideia absolutamente correta. Para construir uma casa você usa um terreno, usa materiais locais, como areia e pedra, usa a mão de obra local e ao mesmo tempo usa cimento e ferro de construção, que são produtos nacionais. Então, você tem a cadeia produtiva virada para dentro da economia. Se você constrói casa, todos esses fornecimentos são ativados.
Como o senhor avalia a proposta do governo de estabelecer um teto para os gastos públicos pelos próximos 20 anos?
Isso é uma bobagem, é uma besteira. Não existe essa coisa de teto. Quer dizer: você está com sua perna arrebentada, mas não pode consertá-la porque há teto de gastos? A questão é saber se o gasto público é relevante e se está sendo produzido de uma maneira correta. O problema não é o que você gasta, mas como você gasta.
O sistema de exploração do pré-sal a partir do regime de partilha e com participação mínima de 30% da Petrobras em cada campo está em vias de ser desmontado pelo Congresso e pelo governo interino. O que o senhor acha dessa mudança?
Eu acho que a questão do petróleo está sendo mal discutida no Brasil por uma razão muito simples. Na verdade, tem muita gente que diz que o Brasil tem de retirar o petróleo com a maior rapidez possível. Isso significa converter o Brasil em um exportador de petróleo. Ser mero exportador de petróleo no mundo é uma maldição. Eu só conheço um país onde a exportação de petróleo gerou uma vida social sofisticada, organizada e correta, que é a Noruega. O resto dos grandes países exportadores são Arábia Saudita, Irã, Indonésia… A Indonésia é impressionante: foi fundadora da Opep e hoje importa petróleo.
O que eu quero dizer é que ter petróleo é uma vantagem colossal para um país, mas ser exportador de periferia é sempre uma situação muito vulnerável. Eu não quero ser uma Arábia Saudita, um Qatar, não me inspiro em Abu Dhabi. Para o Brasil, eu quero que cada família viva direito, tendo a energia necessária para viver direito.
Com o anúncio de iniciativas para incentivar concessões e privatizações, o perfil do BNDES no governo Temer é diferente daquilo que o banco vinha representando nos últimos anos. Para o senhor, qual o papel ideal do BNDES na economia?
A descaracterização do BNDES é mortal para o Brasil. Essa moça que está lá (Maria Silvia Bastos Marques) voltou a fazer o discurso da era tucana, a pior de todas. Agora, vamos entender bem. Eu não quero fazer esse tipo de julgamento, mas, infelizmente, sou obrigado a fazer. O BNDES veio se aproximando muito dessa atual orientação tucana porque, ao priorizar o mercado de capitais, se desviou de sua função que é dar prioridade ao sonho brasileiro de crescimento. O Brasil está crescendo em que direção? Para onde? Para ser celeiro do mundo ou para ser uma pátria sem fome? O Brasil está dando prioridade para quê? Para que cada família tenha um poder de compra mínimo para sua dignidade? Isso significa gerar empregos para os brasileiros. Eu não sei qual é a prioridade do crescimento brasileiro pelo simples fato de que ele não está explicitado, o que leva o BNDES a uma situação muito difícil.
Hoje, o projeto que o BNDES tem para o país é privatizar o Brasil. O BNDES é um instrumento de corretagem para facilitar a venda dos ativos brasileiros. Como os ativos brasileiros estão muito baratos, nós vamos cometer um crime contra a brasilidade. Vender barato o que custou o sangue e o suor dos brasileiros. Para quê? Para virar celeiro do mundo e manter a fome no Brasil? É esse o projeto nacional brasileiro? Eu faria essa pergunta à presidente interditada, Dilma Rousseff, e ao presidente em exercício, Michel Temer. Nenhum dos dois vai responder. Tente fazer essa pergunta ao ministro Henrique Meirelles e aos ex-ministros Guido Mantega e Antonio Palocci. Singelamente. Na verdade, eu acho que essa pergunta cada brasileiro deve fazer para si mesmo. Você quer deixar seu vizinho desempregado? O morador do seu bairro passando fome?
Por que o senhor saiu do BNDES?
Eu sou suspeito porque fui presidente do BNDES e fui demitido pelo presidente Lula. Isso é uma coisa da qual eu me orgulho porque naquela ocasião eu briguei com o Henrique Meirelles. Eu sou inimigo do Meirelles, que na época já era uma figura promovida pelo PT, infelizmente. Eu acho que o BNDES tem que ser o antigo BNDES, ligado à industrialização brasileira, para empurrar para frente a economia brasileira, para gerar emprego para os brasileiros. É esse o BNDES que eu acho importante. Esse BNDES, por exemplo, não deveria fazer campanha publicitária nos grandes jornais, porque todo mundo conhece a instituição. Tem que gastar dinheiro nos pequenos jornais do interior, aí sim a propaganda poderá atingir pessoas que não saibam o que é o BNDES.
O BNDES é a grande invenção que a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos deu para o Brasil. É uma história muito curiosa, porque o Brasil, mesmo tendo participado da Segunda Guerra Mundial, não recebeu nenhum apoio do Plano Marshall. Mas criou-se a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos porque os americanos diziam que queriam nos ajudar. Eles não ajudaram, mas propuseram a criação de um banco de fomento. Esse banco de fomento chama-se BNDES, que foi a melhor sugestão que os americanos fizeram para o Brasil até hoje.
O Brasil tem saída no futuro imediato?
Antes de o Brasil ser celeiro do mundo não pode mais haver fome no país. Antes de o Brasil imaginar exportar energia tem que usar a energia para melhorar a vida dos brasileiros. Usar a energia com a tecnologia de utilização dessa energia. Uma das coisas que os vendedores de petróleo ficam falando é que se eles não venderem, a era do petróleo vai acabar. E daí? A era do carvão, na 1ª Revolução Industrial, acabou, mas quem ainda tem carvão tem uma vantagem espetacular. O Brasil tem muito petróleo potencial, tem muita energia elétrica potencial, mas estão privatizando a parte de energia elétrica e despedaçando a rede de energia brasileira. É isso o que quer a sociedade brasileira? Precisamos crescer e afastar a maldição das famílias desempregadas, precisamos dar comida para o povo brasileiro.
É possível um realinhamento das forças progressistas em torno de um projeto para o país?
O Brasil está sem um projeto nacional explícito e organizado há muito tempo. Não é de hoje. Eu não gosto muito da divisão esquerda-direita porque ela se refere a um cenário histórico mundial completamente diferente do cenário atual. Sobre isso, eu volto a perguntar, em bom português: qual é o projeto brasileiro. É o projeto de globalização? Então, qual é a nossa referência na globalização? É claro que nós precisamos estar ligados à economia mundial e devemos fazer uma política para fortalecer essas ligações. Porém, essa política é uma política nacional, não é adotar internamente diretivas enunciadas abstratamente pelo país líder. Não é adotar o Consenso de Washington.
Como o senhor se define politicamente?
Quando me perguntam o que eu sou, eu digo: sou nacionalista. E digo outra coisa: sou populista. O progresso social na América Latina se dá por figuras que são execradas como populistas porque avançam. Mas a tragédia do populismo é que nunca consegue fazer o sucessor. É sempre um processo complicado, porém as conquistas sociais que os populistas introduziram ficam. O peronismo existe até hoje porque Perón avançou socialmente a Argentina. O getulismo ainda existe no Brasil porque houve Getúlio Vargas. Eu acho que, dadas as condições latino-americanas e ibéricas, com uma organização partidária fraca, são figuras que empurram a sociedade, e isso é chamado pela ciência política de populismo. Mas eu prefiro as figuras que empurram a sociedade às figuras que desarticulam a sociedade e nos jogam em uma situação subordinada e periférica.
O nacionalismo está fora de moda?
Eu sou inteiramente favorável à ideia de um projeto nacional, à democracia como forma básica de organização da sociedade, a partidos que se alternem no poder com respeito a uma regra para não eliminar o outro. Essas regras são singelas, porém são tornadas obscuras para discussão. As pessoas agora têm vergonha de dizer que são nacionalistas porque se criou uma espécie de execração do nacionalismo. Mas, meu amigo, fora da nação não há solução. Eu até adoraria ver o mundo todo preocupado com os problemas do mundo, mas isso é um sonho da humanidade. Eu tenho, em primeiro lugar, que me preocupar com o meu país, me preocupar com os meus vizinhos. Isso significa melhorar a qualidade de vida dos povos sul-americanos, que é muito ruim. Ser nacionalista é dar prioridade ao desenvolvimento e à qualidade de vida do seu povo.