por: José Viegas
A situação na Síria continua sendo dura, mortífera e complexa. A intervenção da Rússia parece ter alterado o rumo da guerra, não só em favor de Assad, mas também no sentido de umareestruturação política do Oriente Médio e do seu próprio status global. Isso coloca os EUA em uma encruzilhada.
Até aqui, o Governo americano procuramanter-se fiel a uma estratégia que tem comoprimeira premissa não aceitar a permanência deAssad na presidência do país. Para isso já havia decidido ajudar com recursos e armas os rebeldes sírios, mesmo sabendo que vários deles têm vinculações com organizações terroristas como a al qaeda e o estado islâmico. Os grupos rebeldes, e há centenas deles na Síria, nuncaforam nem são coerentes entre si. Ao contrário, por terem diferentes lealdades por vezes chegam a lutar uns com os outros. Em consequênciadessas infindáveis confusões, na prática o esforçomilitar norte-americano foi menor e menoseficiente do que se esperava.
Quando a Rússia decidiu intervir militarmente na guerra, suas forças já estavam reaparelhadas e puderam mostrar na fase atual uma sólidasuperioridade aérea, ao ponto de que hoje é ela quem controla os ceus da região Norte da Síria. Nem os EUA nem Israel objetaram a ação da Rússia e estabeleceram acordos e entendimentoscom ela, para evitar fricções acidentais.
O principal cenário de combate é a regiãoNorte-Noroeste da Síria, até a fronteira com aTurquia, e tem como epicentro a cidade de Aleppo, a maior do país, com mais de trêsmilhões de habitantes e que está nas mãos dos rebeldes há três anos. Com o apoio dos caças e bombardeiros russos e seus moderníssimosmísseis S-400, as tropas reanimadas de Assad sitiaram Aleppo, que pode cair em um futuro nãomuito distante, retomaram diversas cidades menores e mais próximas da fronteira sírio-turca e ameaçam cortar as linhas de suprimento dos rebeldes, operadas por diversas facções, sobretudo o estado islâmico e al nusra, grupo ligado a al qaeda, por onde passam armas, petróleo (sobretudo do ISIS) e refugiados.
A possibilidade da queda de Aleppo e do fim das linhas de conexão entre os rebeldes e a Turquia poderá marcar o início do fim da guerra. Nesta última semana, um oficial superioramericano disse, ao contrário do que vinha dizendo o Governo de Washington, que “podehaver uma solução militar… só que não é a nossa: É a de Pútin.” (New York Times de 11/2) O principal negociador americano, o próprioSecretário de Estado John Kerry, também falou, na terça-feira: “Todos nós estamos muito, muitoconscientes de como o momento atual é crítico” (idem).
É nesta situação que foi negociado em Munique um acordo de cessação de hostilidades, esforço capitaneado em conjunto pela Rússia e pelos EUA; acordo parcial e complexo, queenvolve a participação, ainda que não muitoconfiável, de numerosos grupos rebeldes, mas exclui explicitamente o estado islâmico e alnusra.
Faz parte desse entendimento que uma força-tarefa conduzida pelos EUA e pela Rússiadecidirá quais serão os alvos permitidos paraoperações militares. O chanceler russo, Serguei Lavrov, disse perceber uma “mudança qualitativana política militar dos EUA para cooperar com aRússia”, acrescentando que “a chave é a cooperação entre os nossos militares.” De suaparte, Kerry assinalou que “não há mudança na política (dos EUA).”
O acordo pode propiciar um tempoimportante para fazer chegar ajuda humanitáriaàs populações atingidas e cercadas por tropas hostis e também para aprofundar negociaçõesem busca de um entendimento mais duradouro.
O papel de Moscou nesse contexto é crucial. As ações bélicas das últimas semanas colocarama Rússia, o governo de Assad e seus aliados em posição de força, mas ainda não garantiram o controle militar da região Norte e o corte das comunicações através da fronteira sírio-turca.
Na percepção de muitos, a posição russa permanece forte. O enviado especial da ONU, Staffan de Mistura disse a respeito: “Eu não posso parar Pútin.” E, referindo-se aos EUA e seus aliados, acrescentou : “Vocês têm como dizer não a Pútin?”(New York Times, 13/2/016)
Por seu lado, o Ministro da Defesa da Rússia afirmou que seu país não cederá ante ações do Ocidente que visem a impedir o esforço que deu a Assad um poderoso impulso no campo de batalha (idem).
Rearrumação geral
Embora seja sempre muito difícil, e maisainda neste momento de fluidez, fazerespeculações a respeito de desdobramentosfuturos, atrevo-me a fazer algumas cogitações.
Rússia.
• A jogada político-estratégica de Pútin com a intervenção na Síria foi brilhante e bem executada. Com esse ato de “atrevimento” e com o êxito, até aqui obtido, ele mostrou que a ação russa não tem nada de atrevida, pois apenas recoloca o país entre as potências principais, exerce prerrogativas que os próprios EUA e seus aliados da OTAN já vinham exercendo na própria Síria, e mostram que quem arma os vizinhos da Rússia contra ela pode esperar uma reação no campo estratégico-militar.
• Não se pode saber agora se o cessar-fogo terá duração curta ou longa, mas é evidente que a Rússia nãodeseja perder a vantagem estratégicaque alcançou na Síria. Em resumo, dependendo ainda da reação dos EUA aos seus movimentos mais recentes, a perspectiva para a Rússia é bastante favorável.
• A se confirmar no Norte da Síria uma derrota do estado islâmico e dos grupos terroristas sunitas (que se articulam com os muculmanos da Chechênia e outras áreas do Cáucaso, nas fronteiras do país), a Rússiareforçará sua própria segurança.
• Obrigando a Turquia a manter-se dentro de suas fronteiras, tornará possível um avanço dos curdos desde o limite oriental da fronteira com a Síria até o mar.
• Poderá formar uma nova aliança no Oriente Médio com Irã, curdos, hezbollah e talvez mesmo o Iraque.
EUA.
• Se a Rússia efetivamente conseguirdesarticular a rede rebelde e manter Assad no poder, os EUA correrão o risco de sofrer uma forte perda de influência na região e no Oriente Médio como um todo.
• Por outro lado, os EUA poderão, em princípio, ampliar suas açõesmilitares, possivelmente em conjuntocom a OTAN, para forçar uma soluçãofinal menos desfavorável, mas essa é uma alternativa improvável pois um conflito total é algo impensável e a manutenção de um conflito de baixaintensidade é onerosa e perigosa.
• A este respeito, o Presidente Obama, neste seu último ano de governo, certamente não desejará liderar uma escalada militar no Oriente Médio, coisa que tem buscado evitar com prudência e bom senso ao longo dos últimos anos. Por outro lado deve-seadmitir que ele não tem planocontrole das decisões estratégicas do establishment americano e nessecontexto será curioso observar as implicações da situação sobre as eleições de novembro e a atitude queo novo Presidente tomará.
• O perigo de uma confrontação entre a OTAN e a Rússia só existe na hipótese de Donald Trump ser o novoPresidente dos EUA.
• Os EUA deverão reestudar e talveztentar reforçar suas alianças com Israel, Turquia e Arábia Saudita, do que lhe poderão decorrer ônus e dívidas políticas.
• Poderão ainda convocar uma reuniãointernacional para alcançar a paz no Oriente Médio, mas tal reunião só poderia interessar aos EUA se tivesseparticipação limitada a paísesescolhidos (sem a presença da Chinae dos países do Sul, por exemplo), o que diminuiria sua legitimidade.
Turquia.
• A Turquia pode estar diante de uma situação complicada. Invadir o Norte da Síria “para evitar o influxo de novos refugiados” será iniciativa de enorme risco, uma vez que a OTAN não está obrigada a apoiar seus países membros em ações ofensivas e seus membros europeus pensarão muito antes de decidir enfrentar-se com a Rússia, contrariando toda a estratégia dos últimos setenta anos.
• Por outro lado, a unificação do Norte da Síria sob domínio curdo será vista em Ânkara como uma derrota nacional que deverá custar o poder a Erdogan.
Curdos.
• Poderão ter uma boa oportunidade para fazer reviver a luta em prol da independência do Curdistão, mas terão que negociar também com o Irã e o Iraque que têm dentro de seus territórios significativas populações curdas.
• A Rússia apoia os curdos na Síria(assim como os EUA, pelo menos até agora) e talvez Assad não tenha condições de pleitear mais do que um acordo “equilibrado” com os curdos, que, inclusive, proporcionarão a Damasco um escudo contra ofensivas turcas.
• A partir das base aqui discutidas, um Curdistão independente poderia alinhar-se com os aliados regionais da Rússia.
Arábia Saudita.
• Além de enfrentar uma transição relativamente difícil para o governo do Príncipe Salman, os sauditas têm sua imagem desgastada pelo apoio cada vez menos velado que prestam a grupos terroristas sunitas e por sua pouca tradição militar.
• É difícil avaliar hoje a eficácia das Forçosa Armadas sauditas mas elas não chegam a inspirar temor reverencial. No passado recente não se pode dizer que esse país tenha aumentado seu prestígio.
Europa.
• A manter-se o cenário aqui esboçado, é possível que a Europa evolua para uma posição mais defensiva, inclusive explorandopossibilidades que a livrem de uma nova ampliação do movimento de refugiados em direção a seus países.
• Existe sempre a possibilidade de que, se os EUA recuarem de sua posição de inflexibilidadecom relação a Assad, a Síria possa, afinal, encontrar a paz. A solução poderia passar pelarealização de eleições gerais no país, das quais o partido de Assad poderia participar, em igualdade de condições com os futuros movimentospacíficos e desarmados da oposição.