por: Tarso Genro
Hannah Arendt, judia não sionista, em fevereiro de 1933 quando os nazistas incendiaram o “Reichstag”, resolve não ser mais simplesmente espectadora da ascensão do nazismo e passa à militância política.
O presidente da Organização Sionista, Kurt Blumensfeld, em 1935, procura Hannah e lhe propõe -para combater a fera cada vez mais ameaçadora- que ela use os seus dotes intelectuais “para organizar uma coletânea de todos os depoimentos antissemitas, de baixo nível”, que figurassem em quaisquer publicações que circulassem na Alemanha, naquele momento. Tratava-se de organizar uma ação “criminosa” de contrapropaganda, aos olhos do regime, que não poderia ser feita diretamente pela Organização, pois ela certamente receberia, por parte do Estado -se assim o fizesse- violenta repressão.
Era o momento em que a direita radical preparava a comunidade judia, como bode expiatório da crise e abria o caminho para o poder total de Hitler. Presa por cumprir esta tarefa da Organização Sionista, logo após a sua libertação, Hannah sai do país, clandestinamente, e parte para o exílio.
Hannah Arendt tentou – nas condições de asfixia de um Estado que se tornava mais e mais totalitário e preparava a “solução final”- enfrentar a mídia de mão única, comum no fascismo e em qualquer ditadura. Esta, já localizava na comunidade judia – como profetizava Hitler – o ele mais fraco para unir o povo alemão contra os inimigos comuns: a democracia cosmopolita, a cultura decadente do ocidente, os “capitalistas judeus” sem pátria, os comunistas russófilos, os sociais-democratas universalistas.
Por ocupar espaços em toda a estrutura de classes da Alemanha e ter uma comunidade intelectual muito próxima das ideias libertárias que ensejaram a República de Weimar -quem sabe uma revolução “francesa” tardia-, os nazistas localizam nos judeus o seu alvo prioritário. Ao lado das organizações de luta dos operários, da intelectualidade esquerdista e dos partidos republicanos e democráticos, os judeus foram apontados como inimigos da nação e do destino especial do povo alemão.
Os ressentimentos da Primeira Guerra, disseminados em todas as classes, ajudou esta estratégia política diabólica, pois à medida que Hitler conseguiu convencer que os judeus eram estranhos à comunidade alemã e não tinham sentimentos “patrióticos”, ele unificou os ressentidos, os marginalizados e desclassificados, os prejudicados pela Guerra, os desempregados, com os “junkers” (latifundiários predominante prussianos) e com parte da própria burguesia alemã, que queria tomar conta de negócios comerciais e industriais, até então nas mãos de empresários judeus.
Os judeus não foram escolhidos, portanto, como vítimas prioritárias, principalmente pela sua “raça”, pela sua religião ou por alguns dos seus líderes entenderem que eles eram “o povo eleito”. Nem foram escolhidos pela sua cultura, nem pela sua capacidade de manter – na maior parte da sua comunidade – aquela pretensão de destino comum, que a diáspora judaica não conseguiu eliminar. Estas características serviram, é verdade, de argumentos para a “unidade da nação” alemã contra eles, repetidos à exaustão pelos nazistas. Se alguém supostamente considerava-se fora do destino especial alemão e tinha pretensões de um destino próprio, este alguém não poderia compartilhar do futuro desejado para a Alemanha.
Hobsbawn assinala, de maneira magistral, esta peculiaridade judaica, que dá suporte “aos movimentos políticos específicos” destinados a hostilizar os judeus: “Eles podiam servir como símbolos do odiado capitalista-financista; do agitador revolucionário; da corrosiva influência dos intelectuais sem raízes e dos novos meios de comunicação; (…) do estrangeiro e do forasteiro como tal”. A hipnose fascista contra os judeus, portanto, só foi possível, porque esta comunidade estava -mesmo mantendo os seus traços culturais fundamentais- totalmente integrada na estrutura de classes do país.
Os judeus estavam na burocracia estatal, nas Forças Armadas, nas finanças, na indústria, no movimento operário e sua “desapropriação” material e cultural tornava-se , assim, para Hitler, um apelo à unidade para redenção de um povo, com uma “missão especial” que deveria durar, no mínimo, mil anos. A calúnia, a difamação, as mentiras contra os judeus eram calúnias, difamações e mentiras, programadas politicamente contra todos os oponentes do nazi-fascismo, visando minar toda a resistência moral e política aos seus objetivos totalitários.
Numa entrevista concedida a Gunter Gauss em outubro de 64, no Canal 2 da TV alemã, depois de ter feito a cobertura do julgamento de Eichmann em Jerusalém e ter se manifestado por artigos, ensaios e conferências, sobre aquele evento histórico, Hannah Arendt passou a sofrer uma campanha de destruição do seu prestígio acadêmico e intelectual, por parte da direita da comunidade judaica.
Segundo estas pessoas, Hannah teria imputado a alguns “Conselhos de Anciãos”, da comunidade judaico-alemã, uma colaboração com as autoridades nazistas ou, pelo menos, uma contribuição à presumida falta de resistência dos judeus contra Hitler. Nesta entrevista, ela responde: “Em nenhum ponto desse livro eu acusei o povo judeu por sua falta de resistência. Foi outra pessoa que fez isso, o senhor Haussner, Procurador israelense, durante o processo contra Eichmann. Eu qualifiquei as perguntas que ele fez às testemunhas, em Jerusalém, de insensatas e cruéis.”
O livro polêmico desta grande humanista tinha sido publicado em 1963, em Nova Iorque, sob o nome de “Eichmamn em Jerusalém, a banalidade do mal”. Como se vê, a direita intolerante é igual, nas suas técnicas políticas -na sua visão linear da vida- no seu desejo de monopolizar a verdade pelo sectarismo, em todas as confissões religiosas e em todas as comunidades étnicas.
Neste sentido há uma identidade bastante significativa entre as técnicas dos Processos de Moscou e o controle da informação, que visa agrupar de maneira irracional, pela manipulação e pela meia-verdade, na democracia atual. Nos Processos de Moscou, as verdades obtidas com a tortura eram publicitadas de maneira “livre” e uniforme, pelos próprios torturados; na mídia manipulada, em qualquer circunstância, ela torna-se verdade pela reiteração neurótica, pelos meios de comunicação, daquilo que ela quer divulgar, ao gosto dos que controlam estes meios.
É possível discordar da fundamentação de Hannah, quando ela coloca Eichmann, praticamente, como um bufão: um homem “comum”, submetido a uma engrenagem burocrática que tinha a capacidade de extrair das pessoas todas as suas possibilidades negativas, sem que elas deixassem, processualmente, de serem pessoas comuns. Imputar a Hannah, todavia, uma posição crítica sobre a capacidade de resistência dos judeus, que ela não expressou, omitindo que o próprio Procurador do Estado de Israel -no caso- é que tinha aventado esta hipótese, é usar os mesmos métodos sórdidos do inimigo. Trata-se de liquidar, moralmente, a pessoa dotada de um pensamento alternativo, para que os seus argumentos – que vem de “fora” da comunidade vitimada- não sejam avaliados pelas vítimas.
A ascensão de Hitler tem várias causas remotas e também contemporâneas a sua a sua ascensão ao poder de Estado e elas não podem ser procuradas, na maior ou menor capacidade de resistência de uma das comunidades mais brutalizadas, na Alemanha à época, os judeus. A tragédia foi uma tragédia alemã e mundial, que envolveu não só uma ruptura no campo democrático em defesa da República de Weimar, internamente, mas também, externamente à Alemanha, a omissão e a colaboração de pessoas e grupos de distintas religiões, culturas, condições sociais e partidos políticos, que se omitiram dolosamente ou foram indiferentes ao perigo que o nazi-fascismo representava.
Carl Herz, jurista judeu socialdemocrata de esquerda, que conseguiu fugir para a Inglaterra, depois de ser retirado da Prefeitura de Kreusberg e torturado pelas SA, publicou em Londres um ensaio, que não tem tradução nem para o português nem para o espanhol (“Ther straight line – from soldier king to soldier dictator”, Hutchinson Co.1942, pg.53), onde ele sustenta o seguinte: a ideia de que alguns povos tem uma missão especial no mundo é comum, assim como é normal que o homem que carrega essas ideias, ou esforce-se por elas, se sinta um herói. A partir do momento que um líder, um partido, um Estado, convencem o seu povo que ele é redentor da Humanidade ou o “povo escolhido”, fica bem próximo da imaginação deste povo que ele tem uma missão especial, E que, quem impede esta missão, é inimigo deste povo, do seu destino e da sua pátria presente ou futura.
Independentemente do juízo que tenhamos do que foi feito pelo Juiz Moro, até agora, em relação aos processos nos quais ele se avocou dono de uma jurisdição nacional, não é irrelevante a sua manifestação pública de que o vazamento do novo inquérito contra o ex-Presidente Lula, não deveria ter ocorrido e que o mesmo foi ilegal. Não é irrelevante, independentemente da sua sinceridade (que é muito difícil de avaliar), mas sim pelo que ele manifesta de sensato a respeito da exceção não declarada, que está em andamento no país.
Uma exceção que tem Lula como alvo -não por erros que ele tenha cometido, comuns a todos os governantes numa sistema político arcaico e oligárquico- mas pelo que ele significou para a maioria do povo brasileiro, para sair da subalternidade e da miséria. Neste sentido é que Lula é o “judeu da vez”: ele condensa, se for destruído politicamente, a possibilidade de retrocesso da nossa democracia social, duramente conquistada nos seus governos, que ofende a tradição escravista das nossas classes mais reacionárias, para as quais o povo atrapalha a nação.
O debate sobre a questão judia e o debate sobre todas as opressões, violências, discriminações, explorações e humilhações, não é um debate que deve ser concentrado exclusivamente pelas suas vítimas. Afinal, protagonistas, testemunhas ou autores, somos todos um pedaço da humanidade. Como vítimas, como resistentes ou como carrascos.