Não sei dizer o que acontecerá com o Brasil no mês que vem, ou em outubro deste ano, ou daqui a um ano.
Mas a partir do julgamento em que o Supremo Tribunal Federal, por sua medíocre maioria, transformou Lula num mito nacional, posso dizer, com toda certeza, parte do que acontecerá no futuro.
Mito, por exemplo, é o advogado negro Esmeraldo Tarquínio, que eleito prefeito de Santos, foi impedido de tomar posse pela ditadura militar.
Mito, por exemplo, é o advogado negro Nelson Mandela, que obrigado, pelo governo racista da África do Sul, a passar grande parte de sua vida na prisão, dela saiu para liderar a luta contra a discriminação, e para ser eleito presidente daquele país.
Mito, por exemplo, é o pastor negro Martin Luther King, prêmio Nobel da Paz em 1964, que liderando a luta não violenta pelos direitos civis dos negros norte-americanos, foi assassinado em 1968.
Mito é o nosso alferes, iluminista e patriota que, julgado e condenado pela coroa lusitana, em processo regular, foi enforcado e esquartejado.
O que se dirá de Lula no futuro? Que foi um menino pobre, que para sobreviver vendia amendoim e engraxava sapatos; que, tendo feito um curso de torneiro mecânico, virou operário; que perdeu um dedo em acidente de trabalho; que se tornou líder sindical durante a ditadura militar, sendo preso por ela; que, por insuficiência de instrução, tinha a princípio um português claudicante; que era dono de inteligência e personalidade invulgares; que foi fundador e o maior líder do Partido dos Trabalhadores; que se elegeu deputado federal, e foi constituinte. Que na sua quarta tentativa foi eleito presidente da República; que fez um governo conciliador, segundo o seu temperamento. Que não guardava ressentimentos, mágoas e rancores. Que levou água, energia, saúde e alimento para o nordeste. Que lutou pela independência do Brasil no plano internacional. Que, reeleito para um segundo mandato, ao seu término recusou propostas para se reeleger por uma segunda vez. Que deixou o governo com 87% de aprovação. Que fez sua sucessora, contra a qual se sublevou a oligarquia. Que foi o único presidente do Brasil a olhar pelos pobres. E, coisa difícil na política brasileira, que era honesto. Que a plutocracia nacional, sua inimiga, vasculhou sua vida pública e privada buscando incriminá-lo. E que, nada encontrando, inventou acusações mentirosas. Que foi julgado por juiz que não era o natural, mediante uma denúncia inepta, e foi condenado sem provas. Que sua apelação, distribuída em segunda instância a julgadores que não eram os naturais, foi rejeitada sem que se tivessem analisado devidamente as suas razões. Que também foi ré nesse processo sua esposa, que veio a morrer de desgosto antes do seu término. Que seus filhos foram vítimas de calúnias e perseguições. Que o Supremo Tribunal Federal negou-lhe o habeas corpus a que tinha direito nos termos da Constituição e da lei. Que manteve sua dignidade, na prisão como fora dela. Que o local do seu confinamento virou ponto de peregrinação. Que depois de seu confinamento, tal como Mandela ele liderou a insurgência contra a injustiça social. E que depois de extravasarem seu ódio, seus linchadores nada mais tiveram a dizer senão algo que já tinha sido dito antes: que seu sofrimento caia sobre nossas cabeças e a de nossos filhos.
O mito de Lula fará parte da saga do povo brasileiro; fará parte dela como capítulo indispensável, que precisava ser escrito antes de soar, para os milhões de oprimidos, a hora da libertação. Porque, como dizia o alferes, libertas quae sera tamen.
Sérgio Sérvulo da Cunha