por: Celso Furtado – Ex Ministro da Cultura – Nova Republica

Nos momentos de crise, quando todas as referências parecem incertas, cobra plena validade a velha pergunta Que somos? Como se o homem necessitasse de desafio para tomar consciência de que em seu futuro sempre estará embutido um elemento de mistério, algo irredutível à sua experiência vivida. Se perguntarmos “Que somos?” é que estamos em crise de identidade, sentimo-nos incômodos na pele ou dentro da roupa que estamos usando.

Essa consciência de estar representando um papel equivocado na história esteve no centro das preocupações dos intelectuais que promovem o movimento contestador, mal chamado de Semana de Arte Moderna, de 1922. Começava, então, a desmoronar o velho edifício da economia primário-exportadora, quadro formativo de nossa sociedade, que se mantinha de pé graças às muletas da política dita de “valorização” do café.

Assentado o pó desse desmoronamento, um ministro da Educação, Gustavo Capanema, cometeu a Mário de Andrade a tarefa de dar resposta, numa obra coletiva, às perguntas que havia permanecido no ar desde que o país fora acordado de seu sono letárgico pelos estampidos de 22. Mas o tempo já havia o seu trabalho.

Através dos solavancos políticos dos anos 20, da crise econômica de 29 e das rupturas institucionais dos anos 30 o Brasil abrira caminho entre os escombros da velha ordem desmoronada, como um rio que descobre novo leito para correr. Industrialização e urbanização estavam modificando profundamente a velha estrutura social.

Um contexto externo adverso havia imposto a introversão da economia, que se apoiava de forma crescente no mercado interno. Os velhos paradigmas vindo do exterior se esvaeciam.

Nessas fases históricas de robusto otimismo o agir para pensar sobrepõe-se ao pensar para agir, se me permitem uma paráfrase de Goethe. Compreende-se, portanto, que Mário de Andrade haja desenvolvido a missão, confessando a inviabilidade do projeto, certo de que não seria fácil retratar uma personagem em pleno processo de metamorfose, com um perfil ainda não definido. A tarefa que então podia ser realizada, e que foi brilhantemente cumprida por Fernando de Azevedo, não podia ir muito além de uma inventariação do acervo que nos legara o passado. Vivia-se uma época de certezas e nessa fase da vida de um povo as crises de identidade são fenômenos micro-sociais, que encontram espaço no plano da biografia, mas dificilmente no da história. Dava-se como evidente a autenticidade de obras como a de Villa-Lobos, de Portinari, dos novelistas regionais, que eram lidos avidamente de norte ao sul país.

Hoje vivemos uma fase que não é apenas de contestação, mas também de desilusão e ansiedade. A nova mansão construída na euforia da industrialização e da urbanização exibe gretas em todas as suas paredes. Já a ninguém escapa que nossa industrialização tardia foi conduzida no quadro de um desenvolvimento imitativo, que reforçou tendências atávicas de nossa sociedade ao elitismo e á opressão social. Formas mais sutis e mais insidiosas de dependência, infiltradas nos circuitos financeiro e tecnológico, vieram substituir a tutela antes exercida pelos mercados externos na regulação de nossas atividades produtivas. O processo de acumulação foi posto a serviço da modernização desbridada do estilo de vida dos estamentos sociais de rendas médias e altas, desatendendo-se a satisfação das necessidades mais elementares da massa da população.

O autoritarismo político, ao neutralizar todas as formas de resistência dos excluídos, exacerbou as tendências anti – sociais do desenvolvimento mimético. Mas autoritarismo, como Jano, tem duas faces. Se por um lado favoreceu os interesses criados da área econômica, por outro lado propiciou um deslocamento da esfera política, que adquiriu crescente autonomia de decisão sob a forma de poder tecnocrático. Ao autoritarismo devemos à ideologia geopolítica da “potência emergente”, que conduziu ao faraonismo, cuja expressão mais aberrante foi a frustrada construção da via Transamazônica. Também aí tem raízes o processo de endividamento externo, que nos reduziu a uma situação de dependência sem precedente desde a época colonial.

È próprio das situações de crise que aumente o poder de percepção do homem com respeito ás contradições do mundo que ele mesmo cria. Somente uma crise da dimensão da que se produziu na Europa Central na primeira metade deste século poderia aguçar a sensibilidade humana aos extremos que testemunha a obra de um Kafka ou de um Musil. Essa hipertrofia da percepção dos impasses a que a história pode conduzir uma sociedade não é estranha às explosões de criatividade artística que marcaram a vida de certos povos, mas está longe de ser condição suficiente para imprimir sinergia às forças sociais e canalizá-las num sentido construtivo.

A retomada do desenvolvimento, se um processo endógeno, também requer a criatividade no plano político, a qual somente se produz se, à aguda percepção do momento histórico, adiciona-se um elevado ingrediente de vontade coletiva. O afinamento da sensibilidade e o estado de extrema lucidez que se produzem em certos indivíduos nos momentos de crise podem dar excepcional brilho a uma decadência. Mas somente a vontade política é capaz de canalizar as forças criativas para a reconstrução de estruturas sociais avariadas e a conquista de novos avanços na direção de formas superiores de vida.

Pode parecer paradoxal falar de decadência a uma geração que se alimentou de triunfalismo. Mas, que é nosso subdesenvolvimento senão o saldo negativo que nos deixaram repetidos soçobros na decadência? Nos albores de nossa história, no século XVI, ocupávamos posição de vanguarda na tecnologia e desfrutávamos de um nível de vida dos mais altos da época. Foi a longa decadência da economia açucareira, iniciada pela metade do século XVII que produziu rígidas estruturas sociais do Nordeste, esse caso extremo de subdesenvolvimento das Américas. E que dizer desta região mineira, de precoce urbanização, que ocupou no século XVIII eminente na criação artística para em seguida prostrar-se, como enxágüe, em longa letargia?

Temos o dever de nos interrogar sobre a natureza dos problemas que afligem nosso povo despindo-nos das posições doutrinárias correntes que assimilam desenvolvimento a crescimento econômico. Não será que os germes da crise atual já corroíam nosso organismo social na fase de rápido crescimento das forças produtivas do país? Não terá sido o nosso um desses casos de mau desenvolvimento que hoje preocupam os estudiosos da matéria? Com efeito, o que vemos em nosso país após um período de crescimento industrial intenso que se prolongou por meio século?

Três quartas partes da população urbana sofrem de carência alimentar. Uma leitura mesmo superficial de nossos indicadores sociais põe em evidência que enveredamos por um caminho que nos conduz implacavelmente a um impasse histórico.

È certo que a causa imediata da crise que aí está foi o forte desequilíbrio da balança de pagamentos, para o qual concorreram com força de fatores de origem externa. Mas aonde nos levaria um processo de crescimento econômico que derivava seu dinamismo da reprodução indiscriminada de padrões de consumo imitados de sociedades que se beneficiam de níveis de produtividade e renda muitas vezes superiores ao nosso? Como não perceber que os elevados padrões de consumo em que se instalara a chamada classe média tinham como contrapartida a esterilização de parte substancial da poupança e estavam em direita contradição com os ambiciosos planos de investimento do setor público?

As tensões estruturais que daí resultaram estão na origem da proclividade ao endividamento externo e das pressões inflacionárias incontroláveis, essas duas tenazes que hoje imobilizam o governo e asfixiam o sistema produtivo.

Portanto, a crise que agora aflige o nosso povo não decorre apenas de amplo processo de reajustamento que se opera na economia mundial. Em grande medida ela é a manifestação antecipada de um impasse que se pretende reproduzir a cultura material do capitalismo mais avançado privando a grande maioria da população de bens e serviços essenciais. Como não é possível evitar que se difundam de uma ou outra forma, certo padrão de comportamento adotado pelas minorias de altas rendas, surge uma contrafacção de massas em que se acomodam formas sofisticadas de consumo supérfluo com carências essenciais.

A superação desse impasse, somente a criatividade política impulsada pela vontade coletiva poderá produzi-la. Ora, essa vontade coletiva terá de surgi de um reencontro das lideranças políticas com os valores permanentes de nossa cultura. É aqui que se insere a questão inicial: que somos? Uma reflexão sobre nossa própria identidade terá que ser o ponto de partida do processo de reconstrução que temos pela frente, se desejamos que o desenvolvimento futuro se alimente da criatividade de nosso povo e contribua para a satisfação dos anseios mais legítimos deste. Devemos pensar em desenvolvimento a parti de uma visualização dos fins substantivos que desejamos alcançar e não da lógica dos meios que nos é imposto do exterior. A superação do impasse estrutural que está no fundo de nossa crise somente será lograda se o desenvolvimento futuro conduzir a uma crescente homogeneização de nossa sociedade e abrir espaço a essa realização das potencialidades de nossa cultura.

Em um país como o nosso em que os que detêm o poder parecem obsessos pela mais estreita lógica economista ditada pelos interesses de grupos privilegiados e empresas transnacionais, falar de desenvolvimento como reencontro com o gênio criativo de nossa cultura e como realização das potencialidades humanas pode parecer simples fuga na utopia. Mas, que é a utopia se não o fruto da percepção de dimensões secretas da realidade, um afloramento de energias contidas que antecipa a ampliação do horizonte de possibilidade aberto ao homem? Esta ação de vanguarda constitui uma das tarefas mais nobres a serem cumpridas pelos intelectuais nas épocas de crise. Cabe-lhes a aprofundar a percepção da realidade social para evitar que se alastrem as manchas de irracionalidade que alimentam o aventureirismo político; cabe-lhe projetar luz sobre os desvãos da história, onde se ocultamos crimes cometidos pelos que abusam do poder; cabe lhes auscultar e traduzir as ansiedades e aspirações das forças sociais ainda sem meios próprios de expressão.

Um intercâmbio de idéias sobre esses temas que tive com José Aparecido de Oliveira e Darcy Ribeiro, secretários de cultura de dois estados que desempenharam papéis eminentes na formação de nossa nacionalidade, está na origem deste encontro sobre política cultural.

Comprometi-me, então a sugerir alguns temas de discussão para um confronto de idéias sobre as relações entre cultura e desenvolvimento. Meu ponto de vista é que esse debate deve ter como referência imediata a nossa história, sem que em nenhum momento se deixe de ter em conta que esta sempre esteve inscrita num quadro que desborda amplamente de nossas fronteiras. Sou de opinião que a reflexão sobre a cultura brasileira deve ser o ponto de partida para o debate sobre as opções de desenvolvimento. É porque a abordagem da problemática do desenvolvimento não tem beneficiado de prévia reflexão sobre nossa cultura que contentamos com montagens conceptuais sem raízes em nossa história, nos diagnósticos da situação presente em nossos ensaios prospectivos.

Encorajado por esse convite, atrevi-me a esboçar alguns pontos, que chamei de teses sobre a cultura brasileira, as quais passo em seguida a referir-me.

SETE TESES SOBRE A CULTURA BRASILEIRA

I – O Quadro histórico que conduz a mundialização da cultura européia pode ser descrito a partir de dois processos germinativos. O primeiro tem como ponto de partida essa nova leitura da cultura clássica que chamamos de renascimento. Ele conduz à secularização, ao neoplatonismo galileano, que identifica o mundo exterior com estruturas racionais traduzíveis em linguagem matemática, à legitimação do poder pela eficiência, finalmente à ampliação do espaço em que age e pensa o indivíduo. Essa revolução cultural que irradia da Itália, a barca o homem em todas as suas dimensões, estendendo-se dos estudos de anatomia, com Vesalius, aos de arquitetura, com Bramante. O segundo processo germinativo, que assume a forma de avanço da fronteira geográfica, concretiza-se na abertura de linhas de navegação intercontinentais. Graças a ele amplia-se consideravelmente a base do processo de acumulação na Europa e estatelam-se de forma permanente contatos entre as grandes civilizações contemporâneas do ocidente e do oriente. O foco de onde parte esse segundo vetor conducente a mundialização da cultura européia é Portugal.

II – A cultura brasileira é um dos múltiplos desse processo de mutação que assume a forma de desbordamento da cultura Européia a partir dos inícios dos séculos XVI. Mais tem de particular o haver emergido diretamente de um dos pólos do duplo processo germinativo, o que deve ser tido em conta se pretendemos captar suas peculiaridades. O avanço das fronteiras geográficas e econômicas da Europa no século XVI é quiçá a primeira grande vitória política obtida essencialmente com base no uso de recursos técnicos. Durante três quartos de século os portugueses aplicaram-se em acumular conhecimentos teóricos e práticos que os capacitassem para alcançar terras longínquas utilizando meios econômicos escassos. O esforço realizado desdobrou-se em múltiplas frentes, pois se tratava de desenvolver a técnica de construção de barcos para a navegação de longo curso, de formar navegantes e outros especialistas, de elaborar a técnica de navegação de alto-mar, de acumular conhecimentos cartográficos, de abrir novas rotas. Esse projeto ambicioso somente pôde ser concebido e concretizado porque circunstâncias históricas particulares conduziram a uma aliança precoce entre a monarquia portuguesa e a burguesia de Lisboa. Não vem ao caso detalhar esse tema, mas convém assinalar que teve importância na história européia que sentido de continuidade que caracteriza a ação dos governos monárquicos fosse posto a serviço de um ambicioso projeto de expansão comercial, cuja execução somente podia ser assegurado por homens de espírito mercantil. O estado português esteve presente em todas as fases do complexo desdobramento do projeto de descoberta do caminho marítimo das índias e de exploração comercial destas. Pode-se mesmo afirmar que essa experiência serviu de modelo para a criação das companhias de comércio e navegação, que surgiram posteriormente na Holanda e na Inglaterra como instituições de direito privado, mas exercendo funções públicas. Essa articulação íntima entre o Estado e grupos mercantis estará igualmente presente na ocupação, na defesa e na exploração das terras americanas em que se construíra o Brasil. A isso cabe atribuir o sentido de continuidade que caracterizará a ação portuguesa, patente na permanente preocupação de preservar a integridade territorial, a despeito dos altos custos incorridos na defesa de vastas áreas sem perspectiva de valia econômica.

III – Durante todo período colonial os portugueses foram no Brasil uma minoria em face da presença indígena e também da presença da população de origem africana, que logo começa a afluir como força de trabalho.

O peso dessa minoria na formação da cultura brasileira será, contudo, considerável. Não apenas porque os portugueses são os senhores e, os demais, escravos ou quase escravos. Na verdade o número de portugueses que não são proprietários e não exercem funções de mando cresce rapidamente. O que importa é que os portugueses dispunham de técnicas mais avançadas e continuavam a alimentar se de suas fontes culturais européias, com as quais mantinham contato regular. Enquanto os aborígines e os africanos são isolados das matrizes culturais respectivas e privados de memória histórica, os portugueses têm acesso a um fluxo de valores vindos do exterior em permanente renovação.

IV – Durante os três séculos do período colonial desenvolveu no Brasil uma cultura que, sendo portuguesa em sua temática e estilo, incorpora não apenas motivos locais mas também valores das culturas dominadas. É na arquitetura e na escultura que se expressa à força maior dessa cultura, o que não deve surpreender posto que o estado e a igreja ocupavam na sociedade espaço similar ao que haviam ocupado nas sociedades européias pré-renascentes A apropriação e a exploração das terras brasileiras fizeram se no quadro de empresas agrícolas voltadas para exportação. Contudo, as atividades comerciais permaneceram mediatizadas por agentes metropolitanos, razão pela qual emerge no país uma classe mercantil propriamente dita. As estruturas de dominação social estavam constituídas pelos senhores de terras e pelos estamentos burocráticos civil, religioso e militar. Na ausência de uma classe mercantil poderosa, tudo dependia do Estado e da Igreja.

V – O ciclo barroco brasileiro constitui quiçá a ultima síntese cultural no espírito da Europa pré-Renascimento. Sua temática e seu poder morfogenético derivam da mesma visão do mundo que nutriu os pintores flamengos dos quatrocentos e primeira metade dos quinhentos. Com o Renascimento de dissolve-se a síntese cultural que encontrara nos círculos concêntricos de Dante sua expressão mais pura. A eclosão do humanismo abre um processo criativo que somente cristalizará em nova síntese com o Romantismo. O quadro histórico em que forma o Brasil–articulação precoce do Estado com a burguesia em Portugal e total domínio da sociedade colonial pelo Estado e pela Igreja – congela o processo cultural no universo europeu pré-renascente. Daí que se possa dizer com razão ser o Aleijadinho o último grande gênio da Idade Média. Importava assinalar que, à semelhança da síntese medieval européia, o barroco brasileiro era a expressão da sociedade como um todo. Sua mensagem atingia senhores e escravos.

VI – A ruptura cultural brasileira pós-barroco não se explica sem se ter em conta as mudanças no contexto maior em que estava inserido o país. A Revolução Industrial, que irrompe na Europa no último quartel do século XVIII, constitui autêntica mutação no processo acumulativo. Até essa época a acumulação se fizera com relativa lentidão e da preferência fora do sistema produtivo. A mecanização abre a porta a aumentos consideráveis de produtividade do trabalho e ao crescimento do excedente, fatores causantes da intensificação da acumulação. Esse processo engendra elevação e diversificação dos padrões de consumo. Os dois vetores da expansão do sistema são incrementos da produtividade do trabalho e a diversificação do consumo, ou seja, o progresso tecnológico ao nível dos processos produtivos e ao nível da concepção dos bens de consumo final. Ora, o sistema de divisão internacional do trabalho permitiu isolar esses dois vetores. Um país que se especializasse na produção agrícola para a exportação podia ter acesso à moderna tecnologia ao nível dos produtos finais sem ter que modificar seus processos produtivos. O excedente produzido pelas vantagens comparativas e o acesso a um mercado em expansão permitiam pagar os bens sofisticados disponíveis no mercado internacional. Era o processo da modernização dependente, fez que a ruptura da síntese barroca conduzisse ao bovarismo e não a novo ao novo processo cultural criativo, à diferença do ocorrido na Europa com a passagem da visão do mundo medieval para o humanismo. O distanciamento entre elite e povo será traço característico do quadro cultural produzido pela modernização dependente. As elites voltam se, como que hipnotizadas, para os centros da cultura européia. A visita de uma companhia teatral européia a uma cidade do país podia ser o acontecimento cultural marcante na vida de toda uma geração O povo era reduzido a uma referência negativa, símbolo do atraso. Ignorado das elites esse povo segue seu curso próprio, reforçando autonomia criativa e diferenciando-se regionalmente. O indianismo de um Carlos Gomes ou de um Alencar não é mais do que uma rejeição do povo real. E a ironia sutil com que Machado observa este tem sabor de uma escusa em face de um tema proibido.

VII – A descoberta, casual ou buscada, do país real pelas elites é certamente o traço mais saliente do processo cultural brasileiro no século atual. São muitos os fatores que intervêm, tanto de origem externa como interna. De não pouca importância são as grandes guerras, que reduzem o país a relativo isolamento, a ascensão econômica dos Estados Unidos, a crise da economia primário-exportadora conduzindo a uma industrialização tardia apoiada exclusivamente no mercado interno. Com a urbanização a presença do povo faz-se mais visível e sua criatividade cultural mais difícil de ser escamoteada. A emergência, na segunda metade do século, de uma classe média de peso crescente introduz novos elementos na equação do processo cultural. A classe média forma se no quadro da modernização dependente, ainda que mediatizada pela indústria local, mas está demasiado próxima do povo para poder assumir a visão bovarista das antigas elites. Por outro lado, a influência que exerce a cultura de classe média na massa Popular interfere na criatividade desta. O seu encontro com o povo é também a descaracterização deste. Em síntese, neste final do século XX, o processo cultural brasileiro se apresenta como resultante de múltiplos fatores, cabendo assinalar Por seu relevo a forte atuação da indústria da cultura como instrumento da modernização dependente, a incipiente autonomia criativa de uma classe média em que existem raízes populares ainda frescas e a força reativa de uma massa popular ameaçada de descaracterização cultural. A classe média constitui se no locus privilegiado da criação cultural, interagindo entre a modernização dependente. Portanto, uma nova síntese cultural, que recolha a força criativa do povo, pressupõe o aprofundamento do processo de democratização e a redução da heterogeneidade social.

POLÍTICA CULTURAL

Não me escapa que a preocupação dos promotores desse encontro vai mais longe do que um projeto de reflexão sobre a cultura brasileira, seu gênio e figura. No centro da indagação que aqui nos reúne está a interação da cultura como sistema de valores com o processo de desenvolvimento das forças produtivas. A interface entre a lógica dos fins, que reage a cultura, e a dos meios, razão instrumental inerente ao desenvolvimento da capacidade produtiva.

Como preservar o gênio de nossa cultura, em face da necessidade técnicas que, se aumentam nossa capacidade da ação, nossa eficácia, também são vetores de valores que com freqüência mutilam nossa identidade cultural? Simplificando: como apropriar se do hardware da informática sem intoxicar se com o software, os sistemas de símbolos importados que com freqüência ressecam nossas raízes culturais? Esse problema se coloca hoje um pouco por toda parte, na medida em que a produção de bens culturais transformou se em ciclópico negócio e uma das leis que regem esse negócio é a uniformização dos padrões de comportamento, base da criação de grandes mercados.

Problemas desse grau de complexidade não têm solução única nem ótima. Os objetos que presidem o avanço tecnológico são muitas vezes contraditórios. Uns querem matar, outros defender se. O avanço da técnica vem em ajuda a uns e outros. E seria equivocado imaginar que as técnicas são neutras. Elas refletem o contexto cultural em que surgem. As artes militares alimentam os instintos belicosos, mas elas já são o fruto de uma civilização guerreira. Ora, as técnicas se interligam, como um sistema de vasos comunicantes. No mundo atual as técnicas que avançam mais rapidamente são aquelas ligadas às artes militares. Os demais campos da cultura são cada vez mais influenciados pelos avanços que aí se realizam.

Portanto, muitas são as incógnitas do problema a equacionar. Mas se o reduzimos as seus elementos mais simples, comprovamos que a questão se cinge, a saber, se temos ou não possibilidades de preservar nossa identidade cultural, o que pressupõe haver respondido à questão que inicialmente formulei: que somos?

É dessa interrogação que se deve partir para formular uma política cultural, que outra coisa não senão um estímulo organizado às formas de criatividade que enriquece a vida dos membros da coletividade.

Um maior acesso a bens culturais também melhora a qualidade da vida dos membros da coletividade, mas, se fomentado indiscriminadamente, pode frustrar formas de criatividade mutilando a cultura. A política cultural se limita a facilitar o consumo de bens culturais tende a ser inibitória de atividades criativas e a impor barreiras à inovação. Em nossa época de intensa comercialização de todas as dimensões da vida social, o objetivo central de uma política cultural deveria ser a liberação das forças criativas da sociedade. Não se trata de monitorar a atividade criativa e sim de abrir espaço para que floresça.

Necessitamos de instrumentos para remover os obstáculos à atividade criativa, venham eles de instituições veneradas que se dizem guardiãs da herança cultural, de comerciantes travestidos de mecenas ou do poder burocrático. Trata-se, em síntese, de defender a liberdade de criar, certamente a mais vigiada e coatada de todas as formas de liberdade. Portanto, uma verdadeira política cultural terá de ser conquistada e preservada pelo esforço e vigilância daqueles que crêem no gênio criativo de nossa cultura.

Celso furtado, ex-Ministro do Planejamento do governo João Goulart, fundador da SUDENE, ex–professor da Sorbone e da Escola Estudos em Ciências Sociais, ambas na França. O presente texto é o da conferência que o autor pronunciou no Encontro Nacional de Política Cultural, realizado em Belo Horizonte.