Ailton Benedito de Sousa, militante de esquerda, em 70 ou 71 jubilado, isto é, cassado em seu direito a matricular-se na 5ª.série  do curso de direito da Faculdade do Catete (hoje UERJ)

Saudemos a libertação do compatriota José Dirceu como “início” (talvez) da afirmação bem tardia em nossa terra de justificado princípio utilitarista no âmbito das medidas punitivas,  ou seja, reconhecimento geral de que  prisão, quando se massifica, quando medida condicionada por fatores que possam justificar a delinqüência, envolvendo  o aprisionamento de número descomunal  pessoas,   deixa de ser “castigo” para o preso (que passa à condição de vítima),  tornando-se problema, índice de disfunção, até mesmo ameaça à sociedade que insista na prática. Usada como “o castigo correcional” de maneira generalizada como agora em nosso país, ela é índice de desvio ou deformação de percepção dos fins da convivência social, é desrespeito radical a valores, é idiotia, loucura coletiva, ou mais precisamente, racismo, na medida em que se aceita a aplicação desse castigo como natural, merecida, para uns e não para outros.

Convenhamos,  punir, “reformar” não pode ser o objetivo principal de uma sociedade, isto é, se esta se forma por princípios contrários a qualquer tipo de Apartheid, se esta se forma por consenso em torno de objetivos civilizatórios, periodicamente renovando a aderência de todos a esses objetivos, qualquer que seja a forma de aferição do consenso, eleições, plebiscitos. Nesse contexto,  a transgressão eventual ou permanente, a delinqüência, não pode ser racionalmente esperada senão da parte de minorias, guetos,  a partir de causas objetivas que possam justificar o dissenso, por exemplo, defasagem econômico-cultural de um grupo, a qual implique desvantagem quanto a oportunidades de emprego, fruição de direitos e garantias, distância do fluxo de moedas, tudo isso refletindo-se no aumento de práticas delituosas por parte desse grupo, como furto, roubo, agressão, lesão à vida etc.  Mas então tem-se a atividade política como instrumento para a anulação dessas desvantagens e reintegração desses indivíduos ao grupo, assim se confirmando “os objetivos nacionais”.

Não pode ser tida como natural uma prática que confina e priva das noções mínimas de pertencimento, fruição ou exercício dos mais elementares direitos e garantias, uma população, no caso do Brasil, de quase 600 mil indivíduos, população cujos integrantes são adrede determinados, escolhidos, quer pelo nível de renda, quer pela cor da pele, ou por ambos. Aqui a ordem social exclui para, primeiramente, explorar; depois, para prender e matar.

Imagine-se uma cidade de 500 mil habitantes, de espaço territorial restrito,  numa relação 3 ou 4 indivíduos para cada metro quadrado…E, pasmem, na medida em que se aceita essa situação adequada, conveniente a uns,  essa sociedade, a partir de seu estado,  não se reconhece racista (exceto e à boca pequena entre meia-dúzia de “operadores do direito negros”). Observação:  de modo expedito, prova-se o racismo institucional brasileiro. Não obstante os textos das constituições republicanas consagrando a igualdade de todos perante a “Lei” (proposição iluminista), deu-se terra (passagem, hospedagem e implementos, preferência quanto a emprego, dupla cidadania etc.) a imigrantes brancos, a partir de campanhas “pseudo-cívicas”que aberta e despudoradamente exaltavam o objetivo de “embranquecimento” (sic) do país…Minto? Provem-me… Li há algumas décadas Antonio da Silva Mello, que recomendo a todos… Mais ainda: até bem poucos dias atrás proibia-se a entrada de imigrantes africanos negros no país… Como herança cultural da monarquia, os livros escolares até hoje exaltam a chegada da Missão Francesa de 1816, como positivo exemplo de incentivo à cultura brasileira (sic), sem que jamais seja ela vista como exemplo de confirmação da dominação colonial no campo da produção imaterial, além de  causadora de desemprego,desorganizadora do mercado de trabalho, um crime contra o criador brasileiro de arte.  Para não irmos tão longe, outra prova: a  recente vaga de doação de terras a alemães em Mato Grosso do Sul (chamados de “gaúchos”) quando da criação desse estado – início da ditadura de 1964. A desculpa é que eles “sabiam” plantar soja…E aqui está se falando em coisa de 3 a 4 mil hectares…Isso tudo para que melhor funcionasse o modelo exportador de commodities…

Voltando ao tema encarceramento, há centenas de outras formas mais eficazes de a sociedade haver-se com o transgressor de suas normas, de modo que ambas as partes – sociedade e transgressor tenham confirmados seus níveis de respeito mútuo e dignidade, esferas privativas de ser humano.  Note-se ainda que “se há contrato social”, a sociedade também pode transgredir… e essa que se diz “nossa”  transgride sempre e a toda hora, como agora, perpetrado o GOLPE, nesse caso tornando-se justa, legal, a destituição de seus  autores, acompanhada de medidas penais…punitivas e compensatórias, é claro… A propósito, a prisão provisória do jovem negro Rafael Braga em junho de 2016, e sua recente condenação (maio de 2017) a 19 anos de encarceramento por juíza politicamente orientada,  confirma o que acima afirmamos quanto ao uso da modalidade punitiva como canal de manifestação de racismo… vide https://www.youtube.com/watch?v=lcDb315rC1k.

Atualmente estão encarcerados como sequestrados membros do MST, obviamente negros. Terão que esperar um ano até que se lhes condenem em instância definitiva.  E, progredindo o estado de exceção, que a sociedade civil ponha-se de sobreaviso para longo desfile de barbaridades contra os negros.  Mas por que continuamos a ver a prisão, o cárcere, a reclusão, como ápice de um processo que antes devia ser de indenização,  de compensação, de reequilíbrio, de aceleração da atividade política visando à harmonização da estrutura social? Procuremos a causa de nossa cegueira na insidiosa expansão da metástase do cancro chamado racismo.

Quando o racismo puro  –  esse cáustico derivado do indefinível conceito “raça”, incrusta-se durante cinco séculos no tecido de todas as instituições de uma sociedade, caso do Brasil, assim se tornando RACISMO INSTITUCIONAL, os membros dessa sociedade de modo nenhum  podem percebê-lo…é o caso do peixe de mar na embocadura de grandes rios, acostumado a água doce ou salgada, para quem “água é sempre água”, distinguir suas diferentes espécies lhe sendo impossível. Dir-se-á, ironicamente, que esse peixe não tem padrão de paladar…

Assim, para o brasileiro, sociedade é sempre a “racializada”, é arena para a confirmação da superioridade epidérmica, a hierarquização funcional é a priori determinada pela cor da pela, pela raça.  “É espaço que põe pra viver junto seres (de diferentes espécies) que pela cor se repelem”... Não há nem pode haver outra espécie de sociedade… Já imaginou igual número de almirantes, juízes, pecuaristas etc. negros? “Tá louco, cara, essas instituições – marinha, justiça, agropecuária – são nossas! Nosso país é branco! Além do mais, esses caras são burros!..Se não cagam na entrada, cagam na saída”… No imaginário brasileiro os brancos são o Bem, trouxeram ou inventaram o Bem, o Bom, são naturalmente titulares de tudo. Não é à toa a expansão hiperbólica de seitas enraizadas nas racistas lendas do chamado Velho Testamento, como é o caso da maldição de Cam, que sodomizou o pai, isto é, enrabou o pai.   Logo, o resto, não branco, nada mais que o Mal…”Ora vejam, esses índios e quilombolas preguiçosos quererem ser donos de nossa terra”…que se lhes cortem as mãos!.. – eis seu discurso. A tempo, diga-se que esse tipo de discurso tem aceitação, via opção religiosa ou não, entre imenso número de pessoas negras ou de descendência negro-africana. Alienação.

O fato de hoje haver no Brasil coisa de mais de 500 mil encarcerados, dos quais, de um lado, mais de 60% sem condenação definitivamente passada em julgado (logo, na situação de seqüestrados) e de outro, muito menos de 0,1% , talvez, podendo ser ao mesmo tempo classificados como brancos e ricos, http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/12/121226_presos_brasil_aumento_rw.shtml

constitui  ilustração aberrativa do racismo institucional brasileiro, ou seja, é a água, enquanto algo indiferente à nossa distinção percepção no que tange a  paladar, capacidade perceptiva em nós anulada pelas incrustadas camadas de  cinco séculos de racismo institucional: no Brasil, não há racismo, senão quando o negro protesta e o reafirma, recebendo de volta o anátema: racista é você negro safado, vou te pôr em cana!…

Brasileiros, que podem ser figurativamente peixes de rio, de lagos e de mar, as gazes da alienação fazem com que nos assumamos “ se não todos brancos, pelo menos “não-negros”, logo iguais perante a lei”, ou seja, peixes de mar que sobem rio acima, já que, da mesma maneira que para esses água é sempre água, para nós, por “sermos todos iguais”, sociedade é e deve ser sempre racializada, a punição social deverá ser sempre o cárcere, a prisão,  até porque ficticiamente extensível a todos…

A realidade, porém, principalmente quanto à punição, não faz outra coisa senão negar o discurso da igualdade perante a lei. Se em períodos excepcionais, alguns dos desiguais desde os tempos da colônia – peixes de aquário, de rio, eventualmente são retidos pelas malhas da lei, cumpre flexibilizar essa lei,  reconhecer que ela não pode ser igual para todos, mesmo  quando se quiser humilhar um peixe de aquário ou de água-doce cuja ação tenha sido vergonhosa à sua grei (os brancos da esquerda em geral, do PT em particular etc.). Primeiramente grita-se: “cadeia nele,  com isso querendo-se significar “pena de degradação social a esse traidor”. Mas logo se vê que a lei ao se fazer cumprir, mostra a impossibilidade de o sistema, de água salgada, receber, abrigar, “punindo”, o peixe de aquário, de água-doce. Alguém duvida? Observação: até aqui, fim de maio de 2017, excetuado dois ou três, a maioria  dos “corruptos” da chamada aristocracia não foram encarcerados…

Reconfigurando nosso tema:  dado o fato de o racismo, seja ele pessoal, privado  ou institucional – ser sempre maniqueísta – isto é, separar a realidade social entre dois pólos: O Bom e o Mau -, bastou que alguns brasileiros, “dos bons”, mal comparando, “peixes de água-doce” ou de aquário, começassem a ser encarcerados…para que todos admitissem a necessidade de “instalações especiais, reconhecendo haver diferentes espécies não só de peixes, mas também de água: doce, salgada, salobra, ácida… “Gente, embora água, esta é salgada!..Embora cadeia, esta é muito ruim…Embora a gente toda hora diga o contrário, a lei não pode ser igual para todos...este aqui é peixe de água-doce, já esse é de aquário, branco e evangélico, não podem ser confundidos com aqueles, peixes de mar…poluído, por sinal!..Não dá pra colocar essa gente dentro de nossas cloacas…a lei tem que reconhecer que eles são diferentes”…Nesse sentido concedeu-se privilégio (ir para a companhia dos filhos menores) à determinada “interna”, o qual foi pronta e imediatamente revogado…para não criar isonomia…Com as idas e vindas na justificativa da concessão ou revogação do privilégio, descobre-se o velho racismo, já que antes, quando o negro/mestiço era em absoluto majoritário nos presídios a separação mãe e filho fazia/faz parte do castigo: há duas espécies de mãe.

Povo brasileiro, prisão jamais foi “o castigo”, senão, em determinadas fases e circunstâncias históricas (guerras em geral, epidemias). Em condição de paz relativa, é mais uma plataforma de espera de um castigo. Se  vertiginosamente cresce o setor de segurança interna, se o presídio passa a ser instituição de extrema importância, há algo de muito errado nessa formação social. Porém, qualquer que seja a causa da “peste” punitiva, a  sociedade racista pós-colonial jamais tratará suas castas tidas como superiores da mesma maneira que trata a massa, para ela ignara. O sistema prisional brasileiro foi feito para o índio e o ex-escravo. Adequá-lo aos ricos significaria  torná-lo mil vezes melhor que a favela, o alagado…

Outra observação: a idiotia e barbárie do ser humano não é originária, isto é, não vem desde sua origem, é  deformação recente, muito recente, tendo como alguns marcos neste aspecto o momento em que “um dos piores suplícios da experiência social dos seres humanos – a escravização do semelhante, começa a ser praticada, só e apenas, contra seres humanos de cor, os quais portanto deixam de ser “semelhantes”, passando a ser bichos, coisas. E se não estou muito enganado, isso começa a ser aceito sem contestação a partir de 1492 – façam suas pesquisas e tirem suas ilações…

Pena, castigo (na tradição da humanidade sempre a depender do status do apenado),  eram em geral  a indenização, a compensação, a mutilação corporal, a tortura em toda sua infinita gama, as multas pecuniárias, as violências morais, psicológicas – isto é, na esfera da intersubjetividade (dimensão de vivência deferida exclusivamente aos seres humanos), a exemplo da perda de status,  o degredo, o exílio, as galés, a escravização ou… a morte pura e simples,  direta, imediata…

Afastados contextos específicos (guerras, revoluções) e um ou outro caso isolado,  de vingança familiar, dramas no interior de dinastias, de loucura ou de extrema periculosidade do réu, a prisão, sempre a depender da classe social do apenado, não era a norma, ocorria sim como procedimento instrumental, como etapa provisória entre as ações de um processo de punição… O transgressor assumia a condição de custodiado pela autoridade judicial, não como se estivesse cumprindo pena, mas como aquele que está esperando sua pena…Tomada a Fortaleza da Bastilha, em 1789, decepção geral: nela só havia 7 presos…

A partir do momento em que segmentos da humanidade: a) por um lado, abertamente instauram e fazem por todos ser aceito o conceito e prática do racismo – cisão do seres humanos, agora pela cor  divididos entre Bons (senhores, os iguais, os semelhantes) e Maus (dessemelhantes, escravos, logo negros); e por outro lado, b) depois que esses segmentos (por acaso brancos) roubam, seqüestram os arquivos do resto da humanidade subjugada, alçando-se em demiurgos, superiores em relação aos demais, vide especificamente a apropriação européia de teses do acervo civilizatório da humanidade, com o apagamento da história africana por mais de cinco séculos,  fato a que chamam Renascimento e  Iluminismo, a partir desses momentos… nasce ou  incute-se no imaginário das pessoas, ou seja, na “superestrutura ideológica” das sociedades arrastadas pela voragem chamada ocidentalização do Planeta,  novas noções como a de que o castigo ou melhor, o ápice do castigo seja o encarceramento, a prisão… O ato de prender, encarcerar, com toda a estrutura prisional que o acompanha,  é comparado à imagem de uma decapitação… aliás, por uma questão de “manifestação bizarra do inconsciente coletivo”,  essa decapitação é constantemente reencenada pelos presos em revolta em todas as prisões do Brasil. Paradoxalmente, essa noção “privilegiada” da prisão quer confirmar que a sociedade européia (em relação aos “bárbaros” africanos e asiáticos) é boa, é justa, pois “prende, mas não mata”… (biologização da política, do poder, como diz Foucault?). Eis, porém,  que no fim do século XX o encarceramento sistemático do subjugado volta a ser atividade econômica terceirizada e geradora de fabulosa margem de lucro, os negros (vide EUA e Brasil) e os migrantes (Europa) suas vítimas potenciais numa época em que o capitalismo das nanociências e dos robôs deixa eternamente supérfluos,  inúteis, sem função, bilhões de seres humanos…Olha aí as reformas trabalhista e da previdência urbana e no campo!

De que modo,  pergunta-se, uma sociedade, a brasileira, por exemplo,  vai resolver a questão de fato de que a transgressão das normas sociais ultrapassa os estreitos limites do seu maniqueísmo? Ou seja, os bons, os brancos,  também podem transgredir e transgridem, embora entre nós impunemente?.. Responde-se:  a) impermeabilizando, ou melhor, fechando sua instituição judiciária à penetração de quaisquer outros segmentos sociais que não seja branco…b) sistematicamente atuando para que o “serviço” de distribuição da justiça tenha a contrapartida em moeda…no Brasil, justiça é pra quem tem grana…Racismo exige cada vez mais racismo…Eis o Brasil que nossos olhos insistiam em não ver.

Saudamos a soltura do compatriota José Dirceu, que por certo está sendo vítima de injustiça, dada a gana que por sua prisão, ou seja, por sua decapitação moral, midiática, mostram seus algozes…Deve ter feito alguma coisa errada…para os ricos!..