por: Ailton Benedito de Sousa

*Seguindo o mesmo modo de exposição, o  brainstorm ou roda de idéias, o objetivo desta segunda parte é: a)  mostrar que constituímos uma formação social desarmônica, senão disfuncional, tendo em vista que já antes da sua formação como ente político autônomo,  o pequeno segmento detentor de todas as prerrogativas do poder, exerce sobre a maioria da população inequívoca relação de dominação colonial,  a qual  não rompida até nossos dias cria as bases de uma impossibilidade estrutural de união entre  os componentes dessa formação social, melhor se diria, entre seus donos e  seus agregados; b) explicar as causas, as raízes profundas dessa disfuncionalidade;  c) discutir aspectos dessa disfuncionalidade, que  aos olhos das elites só podem ser superados através de políticas de exceção, de apartheid, como se comprova observando a pauta de ações do  golpe em curso; d) iluminar  trilhas que levem a um Pacto cuja principal tarefa seja: Descolonização.

LEIA: OS GOLPES (64 e 2016) E A SOCIEDADE BRASILEIRA (parte 1)

  1. O golpe nos pede visita às causas de nossos impasses

Num momento crítico em termos da geopolítica internacional, já que aparentemente “tudo o que era sólido se desmancha no ar…”(K.Marx, Manifesto do Partido Comunista) eis que começamos a percorrer a trilha de novo ponto de inflexão em nossa história: golpe de 2016, mais uma afirmação unilateral pela força, da inutilidade entre nós de respeito a qualquer tipo de acordo na relação mandar-obedecer: herança do regime colonial. Reconheçamos algumas de nossas antinomias ou absurdidades: Formação social tropical oriunda de um império colonial português  prematuro, senão natimorto,  pois que despovoado, império vazio de povo. (Parêntesis: ninguém questiona o fato de Portugal ter tão diminuta população, diante do exageradamente anormal comportamento sexual do macho lusitano na Colônia. Caramuru, diz-se, teve mais de 140 filhos!, v. Ubaldo Osório, A ilha de Itaparica).  Estranha ou esquisita formação social que tem a base da população majoritariamente composta por povos saídos de imensos contingentes humanos ditos de cor, os nativos ameríndios e os negros africanos, todos, porém, desde o primeiro contato, de humanidade contestada justamente pelos mesmos que hoje protestam terem-nos “descoberto”, “civilizado” e “organizado como nação (sem consulta, advirta-se). Se o objetivo declarado do primeiro contato foi colonizar (subjugação do corpo e da mente) por escravização, isto é, assumindo-se a coisidade ou animalidade do outro, de que modo,  pergunta-se aqui, sem que haja uma revolução descolonizadora, tirar dessa massa de ex-escravos uma nação onde todos, entre si desiguais, sejam iguais frente à lei, ao patrimônio e às oportunidades?

Descendentes de índios de todos os meridianos, de brancos pobres em degredo, e de negros escravizados da Diáspora africana, puros e em todos os graus de miscigenação, somos experiência social desarmônica, disfuncional,  a partir da origem condenada a não dar ce0rto, mas que, nada obstante, até aqui tem existido, mas a um elevadíssimo custo em termos de desnecessários sacrifícios cobrados à sua população pobre, de cor. Com a aprovação da Pec dos gastos, fica contábil, política e até “legalmente” justificada a re-instauração das políticas do Apartheid no país.

Perdure ou seja abortado, consideramos o golpe em curso como um ponto de inflexão, uma vez que, frente ao contexto internacional, as medidas já tomadas no que se referem à alienação de parte significativa do patrimônio estatal, ao mesmo tempo em que  modificam as pautas daqueles gastos públicos, em todas as áreas,  que diretamente respondem pela coesão social – seguridade social (destaque para as normas da aposentadoria) saúde e educação etc., não mais poderá o país trilhar sendas que procurem reduzir nossa secular dívida social (disfuncionalidade)  como pretendeu a administração do PT, herdeira de objetivos nacionalistas dos anos 30 do século 20.  A expectativa de transformações de ordem geopolítica, ainda impossíveis de serem configuradas, mais caracterizam o movimento como instaurador de ponto de inflexão.

A manutenção, inalterável por 500 anos, de muitas das formas de dominação colonial, por sua vez herdeiras da tradição escravocrata romana, explica a condição de vetusta e sedimentada subalternidade, pobreza e exclusão dos povos ditos de cor frente às chamadas elites brancas, até hoje não naturalmente extintas graças às permanentes e sucessivas vagas de novos imigrantes da Europa, Eurásia e Ásia,  logo elites exógenas, como se vê pelos nomes dos protagonistas do golpe. Essas precisões se fazem necessárias para que analisemos criticamente nosso processo de formação e deixemos de nos assumir como povo cordial, mestiço, tornado íntegro pela espontânea aceitação de sua diversidade étnica, de sua  multiculturalidade etc.  A assunção dessas qualificações nos tem valido até aqui no caso de  uns como tática de sobrevivência, no de outros como mais um  estratagema de dominação.

  1. As Capitanias Hereditárias, Hobbes e nosso bárbaro pavor à barbárie

Ponto de inflexão em certos aspectos comparável a este terá sido o ano de 1532 quando, a partir de formatação semifeudal modelada pelas Capitanias Hereditárias, o império despovoado assume a posse efetiva de um Continente, partilhando-o entre poucos para que ele mesmo não se despovoasse ainda mais. A partir desse momento, escravos africanos seqüestrados,  diante de nativos perplexos  começam (ou começamos) a aqui chegar em quantidade e freqüência notáveis (seqüestro na ordem dos 100 milhões, em lapso de 300 e poucos anos?) homens, mulheres e crianças, todos sem futuro como seres humanos, uma vez que objetos de estatuto definido – o de coisas pretas, tanto por sermos pretos, negros, quanto por sermos considerados escravo, signo verbal para referente de contorno e conteúdo (material e psíquico) ambíguos – escravo, signo cujo universo de significados remete a uma série  sinonímica cujos termos jazem  em colisão de valores, ora positivos, ora negativos, ora inqualificáveis pelas restrições do tabu, ora sacralizados pela religião.  Esse universo de significados encontra paralelo nos signos que,  nas sociedades ditas modernas, se referem ao sexo  especificamente aos órgãos da reprodução: – por um lado strictu sensu esses signos podem receber positividade, pois vetor e receptor de vida; noutro, porém, de prevalência geral, tornam-se índices da repulsividade essencial, uma vez excretores  de ‘excrementos’(ressalvo o pleonasmo, para dizer que no caso do escravo o excremento, o estrume,  por um lado seria o trabalho degradado pelas sociedades de classes, por outro é a barbárie, o medo essencial “de voltar a ser homem natural?”). Escravo (em nosso caso, o/a negro/a, por um lado abjeto, repulsivo, destituído de qualquer valor em determinadas relações, pactuadas entre os membros de uma casta e imitadas pelos demais segmentos; por outro, numa relação objetiva que diga respeito à sociedade como ser vivo, que  diga respeito à produção e reprodução social,  esse escravo passa a ser “coisa” valiosíssima (mercadoria especial) pois que produz coisas mais valiosas ainda: o excremento passa a ser visto como adubo.

A comparação entre ambos os universos de significação – escravo, escravidão x sexo, órgãos genitais, quer simplesmente mostrar as limitações dos instrumentos (palavras, conceitos) de que dispomos para referir aquilo que temos como realidade, principalmente a social, de onde emana o sentido ou a falta de sentido para a vida. Comunicamo-nos necessariamente no campo das ambigüidades, campo ao mesmo tempo permeado por razão e emoção. Portanto, não é de admirar que ainda hoje todas as relações do quadro de nossa sociabilidade sejam marcadas pelos entrechoques das supra-referidas indefinições, antinomias ou dicotomias. Não é de admirar que todos possamos ser ou mesmo sejamos racistas (vítimas ou algozes) e que muitos cheguemos a jurar que não somos.  Em cada cabeça e em cada coração, resconstruir é preciso. Ressignificar é preciso.

E já que todos os negros, índios, mestiços e pobres herdamos “a forma e o conteúdo e a ‘cor’ do escravo”, quando estamos em nosso lugar, somos excelentes “peças” ou  “criaturas”; quando fora de lugar (como no momento de discussão e assinatura de um pacto para a formação nacional),  símbolo de tudo que não presta e não tem valor.  Para que a exceção não deixe de confirmar a regra, no Segundo Reinado o país teve um barão negrohttp://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1215291806_ARQUIVO_TEXTOREFEITOANPUH.pdf. Nesta República de 2016, um ministro do Superior Tribunal Federal. Em coerência com o pensamento racista de nossa sociedade, ambos fora de lugar.

Repudiados ou incensados, neste início do século 21 continuamos todos sem lugar, sem futuro como seres humanos plenos, uma vez que permanecemos com status político, econômico e social de valor ou valência relativizada,  algo como uma moeda sabida falsa que em certos momentos se finge aceitar,  condição que pode se tornar daqui para frente eterna, definitiva, na medida em que por via desse golpe seja para sempre perdida a oportunidade de se construir um país diverso e justo, em que todos cheguem à mesa de negociação de um novo Contrato Social como seres humanos diversos, tão diversos como fomos e somos naturalmente feitos,  mas únicos na posse de um mundo espiritual palpável, trazendo às mãos a mesma oferta de sacrifícios feitos à Vida, ao Planeta, no presente e nas dezenas de milhares de séculos passados e, mais do que  esperança, certeza quanto à justa gratificação material e espiritual no presente e futuro, pois o único ponto que nos une em nossa essencial diferença é sermos todos dotados da faculdade de conceber e viver conscientemente um futuro melhor, mesmo como uma possibilidade impossível, como agora se costuma classificar.

A aderência absoluta a asserções não criticadas do pensamento colonial – refiro-me à sempre gulosa deglutição da academia às idéias de Hobbes quanto à existência de uma barbárie (o estado de natureza) como justificador do Leviatã, ou seja, o colonialismo,  tem de encontrar um crítico-coveiro da envergadura de um Foucault. Seguramente, estamos todos diante de uma imbecilidade. Pois, se eliminado o Leviatã, ou seja, as formas de mando de essência colonial, caminhamos para a barbárie, quem sabe se a barbárie não possa ser mil vezes melhor do que isso que nos empurram goela abaixo como civilização-greco-romana-judaico-cristã num irreversível momento em que se acelera a produção de riqueza não para dividi-la, mas para ainda mais concentrá-la; em que se acelera o desenvolvimento científico e tecnológico com dois objetivos: a) como um meio de o próprio colonizador aumentar seu poder persuasório sobre uma humanidade colonizada; b) para, pela permanente degradação do valor do trabalho humano, tornar descartáveis e inúteis em nível planetário,  imensos contingentes de seres humanos,  com vista à sua extinção justificada.

Cumpre criticar Hobbes e ter como hipótese que da mesma maneira que há os axiomas da comunicação, cujo primeiro da série de cinco diz:  – “é impossível não se comunicar”, (https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Watzlawick), quem sabe não haverá também  axiomas no campo das ditas ciências sociais: você é condenado a ser homem e é homem mesmo quando pensa ser um animal. Deixando para outra ocasião a questão de uma crítica mais profunda à base epistemológica do pensamento ocidental hegemônico, que se tenha como exemplo as colocações de Robert Ardrey, especificamente seu The social contract (http://www.goodreads.com/book/show/993562.The_Social_Contract) onde alinha algumas das ainda festejadas falácias das ciências sociais post-Hobbes (com destaque para as ciências políticas, minha opinião):  – a) crença hilária (até porque circunscrita ao “voto”) na igualdade dos seres humanos e, pior, b) crença “com viseiras”, sem possibilidade de crítica, num a priori inerente ao que  comumente se tem como “método científico”,  pelo qual  o “homem” estaria fora da natureza e em vias de dominá-la.  Antes de qualquer outra providência, já é hora de tê-la, a ciência do capitalismo neoliberal, como atividade muitas vezes criminosa porque através de instituições-quadrilhas, certos cientistas-capitalistas seqüestram os arquivos do saber de ponta, coagindo essa “ciência seqüestrada”  a  uma produção, orientada por critérios de raça e de classe (por exemplo, a desenfreada procura do lucro numa economia competitiva e de renda concentrada num Planeta (de recursos finitos) onde a pobreza tem cor). Ciência que se diz cega à esfera de valores espirituais (pejorativamente referidos agora como morais), mas abertamente orientada, a partir de “valores”,  não só para a extinção de imensos e determinados segmentos humanos (a “invenção” do HIV e da medicação para seu combate), como também para a vulnerabilização alimentar  de imensas parcelas das populações do Planeta – os transgênicos, os agrotóxicos, as patentes sobre espécies vegetais). Levante o dedo quem acredita na existência e descoberta do HIV!  Levante o dedo quem acredita na ida do “homem” (o norte-americano, é claro) à Lua! Levante o dedo quem diz não ter pavor da ciência hoje! Ciência e tecnologia que, repita-se,  sofisticam-se quanto ao desenvolvimento de máquinas ditas cibernéticas única e exclusivamente para embrutecer imensos contingentes humanos, tornando-os obsoletos, desnecessários, descartáveis para que  justificadamente possam ser dizimados.

 

  1. A descolonização – razões para o pessimismo

Sim, cabe-nos ser pessimistas quanto ao futuro da sociedade brasileira, tendo em vista que nem a autonomia política em 1822, nem o 13 de maio de 1888, nem as repúblicas, suas revoluções, contra-revoluções e seus golpes, nenhum desses eventos muda numa só vírgula as “disposições (explícitas e implícitas) de natureza colonial que  regem nossas instituições sócio-políticas e culturais  há 500 anos, logo instituições  racistas, pois que sem disfarces tendem à submissão e extermínio de índios, de negros e de pobres em geral. Governar para as auto-assumidas elites brasileiras, vê-se com o golpe,  é lançar mão de toda espécie de malabarismos para justificar como privado, particular,  tudo o que devia ser coisa pública, assim cumprindo um dos objetivos de toda política colonialista: exaurir o colonizado.

Assim, cegos por uma espécie de neblina ideológica – crença nas narrativas do colonizador, que nos censuram de ingratidão se não reconhecemos seus magnânimos esforços em nos conduzir à civilização,  crença na objetividade dos instrumentos com que descrevemos o que aceitamos como “nossa realidade social”, a fé  absoluta no progresso, na evolução natural induzida pelo monstro Leviatã, ou seja, crença de que pela mão do Estado de viés colonizador  saímos da barbárie, da anarquia e estamos em marcha rumo à civilização, enfim, tornados cegos por tudo isso,  ninguém vê ou pode ver os 500 anos de desrespeito (e denegação absoluta)  do valor da contribuição trazida pelos seres humanos africanos e ameríndios não só para formação  da sociedade brasileira, aqui e agora, mas para a Vida, para esta experiência referida como mundialização, que, para o bem ou para o mal,  só se justificaria se fosse considerada obra de todos os seres humanos, obra da Espécie…Mas não, essa experiência cega tem dono e tem cor.

 Aqui no Brasil, estamos perfazendo hoje, considerando-se o marco 1532, 484 anos de uma série ininterrupta de ações genocidas tipificáveis como de racismo institucional contra específicos segmentos da humanidade – os povos de cor, crimes em série  ao mesmo tempo que impiedosamente praticados, displicentemente  impronunciados, isto é, desqualificados como crime,  pela sociedade e aparelho estatal, sob justificativas inerentes ao  quadro epistemológico de essência colonial  que como brasileiros compartimos… Por exemplo, nosso modo de ser, de viver  e de ver nossa sociedade  tem excluído do campo de estudo crítico essa esdrúxula peça de “tecnologia” social chamada colonialismo. Prova: em função da prevalência absoluta de valores de estratificação social baseados na cor e na raça, próprios do período colonial, o único projeto de nação geral e secularmente implementado por todos os governos até hoje no Brasil tem sido o do “embranquecimento” (ressalvo a palavra, porque é ela que é usada), projeto cuja  implementação independe de qualquer determinação jurídica, constitucional ou não, haja vista (e muita vista) as  políticas de atração e recepção de imigrantes brancos, executadas principalmente após a autonomia, ou seja, 1822. Que se levante toda a documentação sobre a doação e transferência de terras, implementos, reserva de mercado, garantias trabalhistas e constitucionais,  a imigrantes europeus, euro-asiáticos, asiáticos, mas jamais para imigrante (ou nacional) negro. Se considerarmos as constituições republicanas como uma espécie de “convenção” da população brasileira frente a si mesma com o objetivo de se auto-gerir, políticas como a do embranquecimento necessariamente têm de ser tipificadas como crime: racismo institucional.  Desmintam-me. Quanto à política de distribuição de terras no país, estou me baseando em livro de Antonio da Silva Mello, Nordeste brasileiro, Livraria José Olímpio editora, Rio de Janeiro, 1964.

  1. Como definir e explicar o termo colonialismo

É tecnologia social de domínio e de escravização que vem da chamada  Antiguidade (parêntesis: período assim chamado por quem subsumiu seu presumido passado como se estivesse subsumindo o passado da Espécie). Entenda-se  subsumir, termo muito usado no direito romano, como “ver, tomar para si algo, dar-lhe nome, origem, causa, fim, função,  passando a vigiar, observar esse algo, a ver se ele confirma os termos da subsunção”. No continente americano o termo colonialismo (e sua prática)  ressurgem  com marcas específicas após 1492.  Mas note-se que na hoje chamada América do Norte, a Federação a partir de 1776 exerce o colonialismo contra a população nativa, negros e brancos pobres sem a intermediação da Europa, no caso a coroa inglesa. Na África, já antes dessa data ele ressurgia  perfunctoriamente aqui e ali (Angola, Moçambique) iniciando dispersão em escala no século 18, a qual se intensifica  no fim do século 19, completando-se no seguinte: que se veja a ação da Itália na Abissínia, entre outras. Nem sempre a presença européia no continente africano pode ser tachada de colonialista, muitas vezes “balcões” para a recepção de escravos, postos de suprimento ao tráfego marítimo etc. Definição de minha lavra: “Colonialismo é um movimento próprio a certas  culturas ou etnias  de (ou para)  expansão de  “poder” no sentido de tomada de posse de grandes porções do  Planeta pela força ou violência, para fins de exploração,  de dispersão de uma religião ou outra qualquer instituição cultural (lato senso), com a dispersão das linhas mestras  de um sistema de produção a si vantajoso e de que sejam tributárias todas as anteriores ou coetâneas  formas de viver e imaginar o viver. É o viver a partir da exploração sistemática do outro em todas as dimensões da vida desse outro: seu ambiente biofísico e social total.  Aos olhos do colonizado (e também do colonizador) é tornar justo e moral o crimeNotar que o colonizador de hoje pode ser o colonizado amanhã – povos dos Califados árabes, em relação aos turcos.  Esbocemos algumas das mais importantes características do regime colonial europeu (com que aliás a toda hora topamos em nossa vida diária aqui e agora):

1.O fato de os traficantes-colonizadores, no percurso marítimo Europa–América ou Europa–África–Ásia  saberem a priori que no caminho “de ida e volta” não iriam  encontrar nenhum  outro “inimigo-opositor” senão os elementos naturais – o  oceano e condições climáticas adversas, fato que se alia à circunstância de serem eles (em relação aos povos americanos e à maioria dos africanos da costa atlântica)  detentores exclusivos das técnicas de navegação transoceânica, esse fato, repita-se, vai tornar  os atos praticados na colônia impossíveis de serem apreciados ou julgados segundo outra ordem de valores senão aquela estabelecida pelo próprio traficante-colonizador ou colono/colonial, empresa, armador ou nação de origem. Para o imaginário do homem europeu, o Eldorado nada mais era que isso: viver num mundo sem lei, ou dito de outro modo, onde ele fosse aquele que trouxesse a lei e fosse, ele mesmo, a lei:  “o estado sou Eu”. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Gaspar_Barl%C3%A9u). Segundo os termos da empresa colonizadora moderna não há, não pode haver, pecado,  crime, abaixo do Equador!

2.Veja como era diferente a situação do caravaneiro africano ou chinês, ou mesmo do general romano à frente de seu exército invasor: o percurso de casa até o ponto de comércio, trocas, captura de escravos ou invasão-colonização,  implicava longas marchas  terrestres de ida e volta,  necessariamente atravessando o território de diferentes grupamentos humanos, em diferentes níveis quanto à capacidade militar, com os quais cumpria combater visando à destruição ou o estabelecimento de pactos visando ao suprimento logístico, às trocas e, principalmente,  a volta, quando se trazia o produto do butim e a tropa de defesa podia estar fisicamente esgotada. No caso dos romanos, exemplo  que atesta a existência de uma cobertura legal para todo o empreendimento,  o general nem mesmo podia entrar em Roma à frente de seus exércitos – o fato seria considerado ameaça à sede imperial. Vencedor, aquartelava sua tropa a quilômetros da cidade, e ia ao senado prestar contas dos feitos a fim de fazer jus ou não ao triunfo.   Daí os compromissos celebrados na ida e na volta,  os acordos diplomáticos não só implicando reconhecimento mútuo (humano pactua com humano), o aprendizado das respectivas línguas e culturas (que se leia De bello gallico, https://fr.wikipedia.org/wiki/Commentaires_sur_la_Guerre_des_Gaules)  como também exigindo a interveniência de algo como uma jurisprudência ou mesmo um arcabouço de direito internacional, senão mesmo a interveniência pura e simples de  aliança com o sobrenatural, o sagrado. Os romanos passavam a cultuar os deuses dos povos vencidos, lembre-se. Humano combatendo e escravizando humano. Não será esse tratamento que os europeus darão aos “outros povos” depois do século XV.

  1. Já o colonialismo europeu do século XVI até nossos dias, é forma de exploração, de desapossamento absoluto das vítimas (desde o primeiro momento do contato coisificadas ou animalizadas) e de mando tirânico,  marcada pela absoluta impunidade do agente colonizador frente a ordem jurídica de onde saiu, e principalmente frente a toda e qualquer norma social do lugar em que chegou. Aqui está a essência, o cerne do ato “colonizar” desde o século XV até hoje (vide existência da Otan, corsários da contemporaneidade).  Pior, a prepotência do colonizador tem justificação indiscutível, imediata, na medida em que ele a priori considera  esse “hospedeiro feito à força” um animal…Daí a cultura do colonizador ser de chofre considerada superior, paradigmática contra um “produzido” vácuo cultural, um vácuo em termos de mundo simbólico.  Não é pecado matar bicho, era e é até hoje a conclusão, vide outra vez a existência da Otan, a potência corsa dos nossos dias,v. HeregesNosMaresDeDeus-4807304%20(1).pdf4. O

 colonialismo, seja na forma original do século XVI, seja na forma atual,  subsume o mundo espiritual dos povos colonizados, isto é, ele dá às construções de sua própria cultura o status de superiores, “universais”, enquanto nomeia geralmente sem estudar, ou seja, dá apelido, às construções culturais dos colonizados, desclassificando-as como chulas ou destruindo-as imediatamente para que não deixem vestígios. A Tasmânia é exemplo emblemático. Expliquemos: certo postulado da antropologia colonial diz não haver sociedade humana que não saiba produzir o fogo (há outros postulados mais exóticos). O povo da Tasmânia, talvez por voto de natureza religiosa, não o produzia, conservava-o, isto é, mantinha certa fonte de chamas permanentemente acesa. Razão suficiente para que “colonos” europeus, ao assumirem  a posse dessa imensa ilha ao sul da Austrália, passassem a organizar imensas expedições de extermínio, operação consumada em curto período, entre 1803 e 1873, ver: https://combatgenocide.org/?page_id=146. Imagine o empobrecimento do Planeta em termos de pensamento e prática  religiosos  depois das Inquisições, das fogueiras e autos de fé do “Renascimento”, da Reforma e Contra-Reforma!.. Outro exemplo: Proprietário exclusivo do Congo, proprietário em caráter pessoal, frise-se,  um famigerado rei belga através de agentes terceirizados cria uma lei por nós copiada como “lei da vadiagem”. Explicada rapidamente, a lei dizia que o nativo tinha que provar através de uma papeleta ter trabalhado como peão (podia tratar-se de um príncipe) por um mínimo de seis meses e de graça para o monarca. Caso contrário, cadeia ou castigos (perda de braço, lábios,  mãos, mutilações horríveis), (https://comptoir.org/2014/10/08/le-congo-belge-de-leopold-ii-les-origines-du-massacre/). Farta matéria iconográfica encontra-se à disposição na Internet, principalmente a questão dos “zôos humanos” nas grandes cidades européias. Sobre a nossa Lei da Vadiagem,  que teve longa vigência, só foi revogada depois da Constituição de 1988.

5.A política cultural do colonialismo trabalha com as idiossincrasias das culturas subjugadas como instrumento de dominação,  ou seja, para jogar os membros de uma contra os de outra. Assim, é norma cooptar-se  para  serviço da metrópole colonizadora, geralmente como força policial ou militar, membros de uma cultura específica, ou seja, guerreira, caso dos Tutsis pelos belgas, e até mesmo se praticantes de certas modalidades de antropofagia, os Jaga, por exemplo, http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/memoria-dos-quilombos-africa-diaspora-cabo-verde-e-brasil  tudo isso como meio persuasório nas intermináveis guerras coloniais. Outra prática generalizada consiste na hierarquização da população a partir dos critérios “assimilado” e “não assimilado” (leia-se cristão/evangélico x bárbaro/pagão/animista[mesma raiz de animal]), classificação em total desrespeito às vigentes  linhas de estratificação social dos povos colonizados, premiando uns, punindo outros, prática que está na base dos horrendos e recentes massacres em  Ruanda e Burumdi (https://etudesafricaines.revues.org/156).

  1. O colonialismo, tecnologia social eminentemente patriarcal, machista, vê o gênero feminino em sua totalidade como um imenso serralho, harém. Ao primeiro contato com uma comunidade tradicional, nela destrói para sempre as sacras e milenares normas de contato afetivo e reprodutivo. Na África, seguramente em sua maioria as comunidades eram matriarcais ou fixavam descendência matrilinearmente. Aos olhos das sociedades africanas , a mulher violentada é repudiada por todos sem perdão. Vale dizer: estuprou a mulher, destruiu a unidade tribal…É o que se faz até hoje nas áreas de mineração.  Que nossas feministas procurem ler ou refletir sobre o regime colonialista a partir de fatos escondidos nos interstícios da nossa história. Caramuru teve mais de 140 filhos…É por essas e outras que o feminismo das mulheres européias e brancas não pode ser o mesmo feminismo das mulheres índias e negras. Vide Gloria Anzaldua, escritora negra  norte-america http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000300014.

 

 

5.Como é que jamais vi o colonialismo assim?

Não fosse o atual movimento de crítica à velha história orientada pela visão européia, vale dizer, movimento de reação ao saber das academias ocidentalizadas, jamais outra maneira de ver o passado e o presente, como a que tentamos introduzir neste artigo, poderia aspirar a ser considerada e julgada no âmbito da consciência de cada um de nós. O regime de exploração colonial que aqui se instala em 1532 a partir da assunção oficial pela coroa portuguesa do território continental hoje brasileiro, em linhas gerais coincide com o esboço por nós elaborado acima. Entenda-se que em 1822 é a estrutura colonial em toda sua inteireza que funda, inaugura “nova”  unidade colonial autônoma em relação a Portugal,   agora chamada de nação brasileira, a qual herda e vai dinamizar em proveito exclusivo de poucos agentes colonizadores e seus prepostos,  um “ente político” chamado estado nacional brasileiro, mas até nossos dias de essência colonial (oficialmente escravocrata até 1888). A República de 1889 desconhece o que houve no território de 1532 a 1888, ela não move uma palha quer de condenação ao colonialismo, quer na criação de políticas de recepção e reparação dos cativos visando sua inclusão menos traumática no seio de uma comunidade de que não eram parte integrante.  Aliás, a Guerra de Canudos cujas causas se reportam à nossa forma displicente de fazer a abolição,  é mais outro conspícuo brazilian serial crime, invisível ante a cortina de fumaça ideológica em que vivemos inseridos, uma de cujas características é a aversão à leitura  http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000091.pdf.

  1. Nossa dor e mágoa, nossa culpa

E é a partir daí, dessa constatação, que se abre em nossa alma, negros e índios e sua descendência, uma fenda ou ferida para dentro da qual recalcamos nossa mágoa, desesperança ou ódio, e de onde nasce o “Outro”, o ser alienado, o ofendido e humilhado, de que falam Franz Fanon e Sartre. É esse Outro (geralmente vítima,  mas também algoz mesquinho) que nos cumpre reconhecer a partir do estudo, da reflexão sobre nossa história, e de muita luta, vale dizer, uma práxis revolucionária. É esse Outro  que nos cumpre também  a todos, negros e negras, índios e índias não só expulsar para fora de nós mesmos, como também matar… para que renasçamos. Em outros termos, cinde-se o olhar de nossa alma frente ao quadro da realidade de 500 anos, palco e origem do nosso medo, desconforto, fraqueza, ambigüidade, repulsão pelo outro dentro de nós e fora de nós. São os tropeços de nossa claudicante humanidade. A começar pelas perguntas: Somos aceitos aqui, nessa terra que ajudamos a construir já desde antes de 1500, ou não somos? Local e planetariamente, temos história própria, respeitada, em concerto e complementaridade  com a dos demais povos e nações, ou não mais temos história, porque  no-la roubaram, destruindo documentos ou mudando a cor e a face dos monumentos erigidos em África, ou  destruindo os arquivos caros aos nossos ancestrais? Hoje exilados como parasitas no seio de uma cultura universal que em comum criamos, isolados no mundo das linguagens – dança, música, teatro, arquitetura, desenho, literatura, tudo é linguagem! – de que fomos os criadores e cultores, pioneiros, mas hoje ainda considerados como retardatários, população sem teto no mundo pensamento, da filosofia que com outro nome criamos. Então  perguntamos aqui e agora,  nesse momento da  mundialização, atual e virtual: pactuamos  com os demais  povos nossa existência no Planeta, ou vivemos de favor como a toda hora nos diz o supremacista nazifascista branco? (Para nós, o nazifascismo, cria do novo colonialismo, também ainda não acabou).

Sem respostas que encaminhem respostas,  adaptamo-nos à vida que nos deram, mesmo quando nos “empoderamos” (com perdão da má palavra) individualmente (na relação 1/109 ) e “enriquecemos”, ou continuamos nossa saga pelo reconhecimento da nossa humanidade plena, reconhecimento que faça jus a uma justa parcela do patrimônio material e espiritual que ajudamos a construir local e planetariamente. (Parêntesis, opinião pessoal: é triste ver a imensa maioria negra e paupérrima nas favelas e periferias, mas é mais triste ainda ver o negro/negra “empoderado” que enriquece, exilando-se num mundo que nunca será “o seu”).

  1. O golpe visa fragilizar e exterminar o povo de cor, e sua pauta de ações já pode ser tipificada como crime contra a humanidade: racismo institucional

Mais um golpe e como sempre, o povo pobre, índio, negro e branco pobre, culturalmente  miscigenado ou não, somos a massa contra a qual  ele se faz. Os recentes indicadores de retrocesso (ou invariância?) nas relações envolvendo diferenças de renda, logo étnicas ou de cor: –  anulação de avanços nas políticas de demarcação de terras indígenas e quilombolas, desfiguração das leis trabalhistas, alteração dos institutos jurídicos de seguridade social,  intensificação da mortandade absurda de jovens negros pelas forças policiais, linchamento de crianças negras amarradas a postes nas vias públicas, repúdio ao projeto e sabotagem na execução da lei de cotas, entre outros, enfim, as passeatas do “fora Dilma” em que 99% das mulheres eram louras (tremendo mau gosto) – tudo isso   mostra  às claras que o poder foi assaltado por figuras como Serra-Temer-Cunha-Bolsonaro para que jamais venhamos a configurar uma sociedade em harmonia com o preâmbulo da Constituição de 1988.  

  1. Sob a cobertura da legislação vigente, não há como anular as ações dos golpistas

Há poucos meses no poder, a camarilha  já leiloou  ou está dando de graça os mais valiosos ativos da estrutura econômica do país (por acaso construídos com o trabalho e poupança da massa trabalhadora), entre os quais o complexo Petrobrás e seu Pré-sal, empresas e sítios de exploração minerais raros, estaleiros e hidrelétricas, os oceanos de água fóssil, a plataforma industrial de base. Os pobres trabalhando para aumento da riqueza dos ricos. É o que se diz: 70% da receita de impostos da União procede dos que ganham até 5 salários mínimos. http://economia.uol.com.br/noticias/infomoney/2014/08/14/injusto-quem-recebe-ate-tres-salarios-minimos-e-quem-mais-paga-impostos-no-brasil.htm

 Logo, essa riqueza pertence aos trabalhadores.  A partir da ação impatriótica dos meios de comunicação, justifica-se como economicamente correta a transferência de titularidade sobre o patrimônio da nação. Em sua grande maioria, o povo abre-se à luta num impulso por organizar-se e guerrear, querendo constituir-se povo, até mesmo porfiando por consertar o inaplicável e esdrúxulo projeto das elites em curso na era Lula, o qual pelo menos procurava preservar em mãos de nacionais o que é nacional.

Chegados aqui, todos já podemos entender por que nos vemos despreparados diante da magnitude da tarefa “Descolonizar” nossas mentes.  Como esboçar as linhas estruturais de um Pacto Nacional multi-étnico e multicultural, que exalte a igualdade na diferença, onde conforme Robert Ardrey, haja suficiente ordem para proteger seus membros, qualquer que seja sua dotação natural, e suficiente desordem para proporcionar a cada indivíduo plena oportunidade de desenvolver  seus dotes genéticos, quaisquer que estes sejam? (op.cit, p.3). Entenda-se “desordem” aí como ausência do milenar comando e controle estatal de viés colonizador. Entenda-se ordem como a aceitação, tão consensual quanto possível, da humanidade plena de todos. Que todos aprendamos com as populações pobres que, à margem do quadro normativo estatal, justamente por não terem a capacitação econômica exigida, inventam inusitadas maneiras de se relacionar, de viver. A crença quanto a uma eterna ameaça de volta à barbárie, ao temido “estado de natureza” pode ser  mais uma das balelas do pensamento ocidental para que suportemos seus tiranos, suas bárbaras formas de organização social como se fossem definitivas, insubstituíveis.  Chega de preâmbulos e objetivos constitucionais garantidores de direitos “em abstrato” a um “homem abstrato”, saído dos compêndios do Iluminismo europeu.  O Iluminismo europeu tem significado trevas para a quase totalidade da humanidade. Sim, nós os Deserdados da Terra,  exigimos e vamos conquistar parcela patrimonial (quer material, quer imaterial) que ateste nosso pertencimento de fato a uma ordem social inovadora tanto local quanto planetariamente.

  1. A questão do pagamento das reparações

Há sim, de certo tempo pra cá, alguns militantes do MN que vêm falando em reparação pelo seqüestro, trezentos e tantos anos de escravização e mais cento e tantos anos de vida precária em favelas, periferias e quilombos, condição de precariedade que tem como causa principal  o  racismo institucional.  Lembrando que o que é de justiça em certos momentos pode ser de implementação inviável, como a nosso ver é o caso das reparações sob a égide do capitalismo neoliberal,  onde a sociedade civil não tem nenhum controle sobre a gestão da moeda, sobre a ordem jurídica que venha fazer esse contrato ou sobre uma força armada própria  que possa persuadir as partes ao cumprimento dos termos desse contrato de reparação. Teria ele viabilidade de tramitação, de exeqüibilidade? 

  1. A imprescindibilidade do pacto quanto a um projeto descolonizador

Um novo Pacto ou Contrato Social que por necessidade terá de ser descolonizador,  tem de localmente envolver todo o povo que se assuma brasileiro, pois a partir desse mesmo pacto instaurar-se-á  uma nova nação em que cor (e/ou raça para os que quiserem), sejam vistas como inexistente, uma; e dotação natural para a adaptação ao meio físico, outra;  donde, continuando,  seja a cor negra  amplamente valorizada pela nova base epistemológica da nova nação…tropical.  Vejam a contradição hoje quando vivemos sob colonialismo pós-1822: enquanto os membros da bancada ruralista atuam para levar à extinção nossas frágeis comunidades índias e quilombolas tradicionais, as agências internacionais de organização e privatização do saber sob a bandeira do capitalismo hegemônico,  competem por recuperar e privatizar o conhecimento que esses índios e quilombolas têm sobre a biosfera do entorno em que vivem em quase simbiose. Outra contradição que mexe diretamente com nossas “estratégias de segurança nacional” é o esforço das bancadas do agronegócio para expulsar os pequenos lavradores de suas próprias terras, exacerbando o secular fenômeno do êxodo rural em regiões como o Norte e o Nordeste, em direção às periferias das grandes Regiões Metropolitanas do Sul-Sudeste. Com esse despovoamento as elites exógenas “arrumam a casa” para um novo ocupante, o invasor dito árabe ou saxão, quem sabe?

Para o pensamento colonizador  as sociedades  tradicionais aqui ou em qualquer lugar do Planeta são exemplos de sociedades disfuncionais, logo caminham para a própria extinção, sendo um favor apressar-lhes esse fim. E dadas as bases e premissas epistemológicas sob as quais vivemos (aceitação acrítica do evolucionismo em história e em biologia – a questão da raça superior) esse marchar para o auto-extermínio parece justificar-se por si mesmo.  E para onde caminham as ditas sociedades funcionais?, cabe perguntar. Veja, é sério: tendo por objetivo a moeda (o dólar do medo) por um lado e, por outro, a pureza racial da dita raça superior (credo dos supremacistas), perguntamos a que tipo de civilização nos está conduzindo o capitalismo?  Como jamais o pensamento acadêmico de viés colonialista  voltou-se para estudar seu pupilo, o regime colonial, procurando defini-lo, avaliá-lo como vetusta e retrógada tecnologia social, esquecem-se seus defensores de que “a política de exploração colonial”,  nesses 500 anos levada à prática pelo invasor não tem outro objetivo senão esse, de interromper ou esclerosar a vida no interior das sociedades colonizadas, vendo-as como disfuncionais  em relação à prática genocida sistemática das sociedades colonizadoras, prática que se inaugura na África e nas Américas  sob o nome de civilização…greco-romana-judaico..o quê, mesmo?

Às portas dos duzentos anos de vida dita independente, não há a mais tênue visão crítica do colonialismo europeu como a mais crua e animalesca  experiência de exploração e extermínio de povos, modelo ímpar de ação genocida trans-secular. O país em que vivemos  se  assume herdeiro, com muito orgulho, do colonialismo português (“nossos” avós). A fase colonial seria, para esses monarquistas retrógados,  o período em que de bichos, passamos a ser gente, portanto etapa a ser cultuada como heróica, de recepção dos valores da civilização européia, gesta  de onde saem nossos heróis: os Braganças,  os Mens de Sá, os Bonifácios e Benevides etc.

E é essa visão colorida e açucarada do regime colonial que nos tem até aqui impedido de elaborar um projeto de nação que vise “descolonizar”não só as relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas, como também as nossas  mentes, que vise promover espaço ao surgimento de um imaginário comum entre segmentos sociais de aspirações, interesses e experiências tão díspares: de um lado, os descendentes e herdeiros (do ponto de vista material e cultural) da empresa e patrimônio coloniais; do outro, descendentes  de suas presas e vítimas, que continuam a ser presas e vítimas nessa sua forma atual, dita sucedânea. O argumento elucida-se por si mesmo:  se o colonialismo é visto como etapa introdutória de nossa fase civilizada, que serventia teria um a priori “desnecessário” projeto de nação, senão de confirmarmo-nos em marcha civilizatória de acordo com o estatuído no projeto colonial de origem? Destruir, inovar, superar o quê?  Para as elites insubordinadas da Colônia em 1822, com referência ao povo explorado, é um nada sonoro a divisa do século 18 – Liberté, Egalité, Fraternité, síntese das idéias iluministas que segundo os historiadores brasileiros pretendem justificar a ruptura com o Portugal  da Revolução do Porto, essa sim, reverberação,  na Península Ibérica, dos ecos da Revolução Francesa.

  1. A descolonização como tarefa comum

Sem a desconstrução do velho conceito de colonialismo não há por que descolonizar, logo não há por que repactuar novos termos de convivência, ao contrário, cumpre dar continuidade à formação social que bem ou mal vem funcionando desde 1532. O ideário que até hoje tem dado base ao trabalho de elaboração constitucional nos repetitivos momentos de crise política, procede intacto de nosso lastro colonial, donde “esse branco” em nossas mentes, quando momentos de inflexão, como o atual,  exigem “apresentação de propostas de novo pacto social”. As Constituições até aqui promulgadas silenciam ou negam aquela premissa básica, inerente a um verdadeiro projeto nacional, algo que se ponha acima e subjugue a violência ou atrofia colonial, superponha-se à Europa colonizadora,  à tribo, ao clã, à classe, à raça, à cor, evidenciando o objetivo  a ser a priori alcançado: constituir  uma nação, nem tanto a partir de um passado comum, uma história ou língua comuns, mas a partir de uma vontade incoercível de viver junto, defender e construir um patrimônio, constituir-se num conjunto de produtores e usufrutuários iguais, diante de um patrimônio (expressiva parcela do Planeta [parte material], e ainda mais expressiva massa de cultura [parte espiritual] comum). Esta última palavra “comum” não cabe, não pode caber, jamais coube no corpo da premissa básica de um projeto de índole colonial como os que até aqui temos tido.

          Itaparica, dezembro de 2016