Em entrevista à Princípios, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo comenta as tendências da crise mundial e faz um diagnóstico de seus efeitos na correlação entre o sistema financeiro e a produção de riquezas. Para ele, o capitalismo está diante de dilemas já vistos no passado. E situa a China na evolução da crise, destacando o fortalecimento de suas empresas como um dado fundamental para o seu sucesso econômico

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Confira, a seguir, a íntegra da entrevista:

Princípios: Recentemente o presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, disse que as injeções trilionárias de dólares para salvar os bancos, bem como a disseminação de taxa de juros negativos, são medidas eficazes para a volta do crescimento econômico nas economias centrais. Para Mohamed el-Erian, economista chefe do megagrupo Alianz, são medidas “potencialmente prejudiciais para o crescimento futuro e a estabilidade financeira”. O que o senhor pensa a respeito?

Belluzzo: Essa questão das políticas monetárias não convencionais, na intensidade e na abrangência com que foram tomadas, revela uma situação muito peculiar do capitalismo e aponta, na minha opinião, para os problemas que foram criados ao longo dos quarenta anos de deslocalização produtiva, liberalização financeira e aumento da competição entre as grandes empresas. A minha opinião é de que esse modelo está dando sinais muito claros de esgotamento. O jornal Valor Econômico publicou um artigo de um economista das Nações Unidas que conheço, chamado Richard Kozul-Wright, mostrando como as transformações que ocorreram ao longo desses quarenta anos, digamos, levaram a uma mudança importante no comportamento das empresas.
Elas desenvolveram estratégias ajustadas a esse novo padrão global de deslocalização da produção, globalização financeira, integração dos mercados financeiros e sua transformação e, finalmente, à necessidade de se adequar às normas da concorrência global. Como esse jogo é disputado num campo em que o movimento dos protagonistas acaba transformando a forma como eles funcionam, uma transformação que podemos chamar — se eu respeitasse os economistas (risos) — de interação entre o micro e o macro — estamos falando, na verdade, de um movimento de transformação do sistema —, as empresas internalizaram a lógica financeira. Então, não é um problema apenas da relação dos bancos com as empresas, mas das empresas com as instituições financeiras.

Quando falo de bancos, falo de fundo hedge, fundos de pensão etc. E isso impõe uma lógica de comportamento. É o que está na raiz da necessidade dos governos, através dos seus bancos centrais, de sustentar esses processos. Primeiro, o crescente aumento da participação dos rendimentos financeiros, do estoque de ativos financeiros, dentro das empresas. Isso se traduz no que alguns economistas chamam de “princípio do valor do acionista”. Mas é uma visão, eu diria, um pouco parcial. É claro que as estruturas de comando mudaram, porque, na verdade, as estratégias das empresas foram se transformando à medida que a financeirização avançava. Por exemplo, a questão do shareholder value, como eles chamam, e a questão do encurtamento do período de avaliação do desempenho das empresas, importante para repercutir na Bolsa de Valores.

As empresas contraíram investimentos; isso está claro nos dados recentes. Eu estava vendo aqui um artigo do Lance Taylor que ilumina apenas um lado da questão: a taxa de juros natural, que caiu porque existe muita poupança. Ele mostra que isso é bobagem. O que acontece é que mudou o comportamento das empresas. Isso está expresso no ingurgitamento da esfera financeira, porque hoje o que dá regra à concorrência entre elas não é mais como antes da crise dos anos 1970, quando a lógica da concorrência era a expansão da empresa. Hoje é o seu protagonismo no mercado financeiro, expresso no valor das suas ações. Então, é preciso que se desenvolvam estratégias que impeçam, por exemplo, que as ações caiam.

Se pegarmos a Apple como exemplo, vemos que a maior parte do seu gasto não vai para pesquisa e desenvolvimento; vai para recompra de ações, pagamentos de dividendos e arbitragens com impostos. Ela está pagando imposto na Irlanda e o setor de marketing e inovação está nos Estados Unidos. A produção está na China. O que ela maximiza? O valor das ações. Até porque seus executivos são remunerados com stock options, o direito de comprar ações. Isso tem a ver com a remuneração deles, e o pagamento de dividendos, que tem a ver com os acionistas. E está provocando um apodrecimento do investimento. Está sufocando o investimento.

Elas desenvolvem a ideia de que é preciso manter as taxas de juros para recuperar o gasto. Só que não é eficaz, porque, à medida que fazem isso, estimulam o mercado de ações, que tem desempenho fantástico. Então, os ganhos de capital estimulam as empresas a manterem essa estratégia. Porque os ganhos de capital não são realizados somente no mercado de ações. São realizados também no mercado de dívidas. Tanto a dívida pública como a dívida privada têm tido bom desempenho, do ponto de vista dos preços. Vamos supor: emite-se a dívida no valor cem e daí a três meses ela está no valor cento e dez.

As taxas de rendimento dos papéis caem. Porque se emitem uma dívida, digamos, a cinco por cento, quando o papel se valoriza, esse valor sobre cem é 5%, sobre 110 é menos. Então, os rendimentos são muito baixos. Por outro lado, está se criando outra bolha financeira. É o que está se fazendo agora, expresso nas hesitações de Janet Yellen, a presidente do Banco Central americano, de subir a taxa de juros. Pouca gente fala disso. E aqui no Brasil nem vou falar, porque aí é o negócio do Jeca Tatu… Não vou falar do Jeca Tatu, não vou falar desses caras, que são deploráveis. Não sabem nada do que estão falando.

Princípios: O senhor se refere a essa equipe econômica atual?

Belluzzo: A ela e ao seu entorno. Isso não dá para falar. É melhor deixar para lá. Eles estão achando que estão no mundo que já passou. Porque é uma coisa que não tem a ver com a racionalidade. A Janet Yellen faz que vai mas não vai, como o ex-jogador de futebol Dadá Maravilha, que dizia que foi mas não foi e acabou “fondo”. Ela acabou não “fondo” (risos). Porque fica com medo de provocar aquilo que é óbvio que vai acontecer: um ajuste no preço dos ativos. E como todo mundo está carregado…

Tem outra questão metida aí. É que esse tipo de política econômica faz com que ao mesmo tempo em que o Banco Central pega o seu balanço e emite dinheiro – porque as pessoas ficam apavoradas, e o sistema monetário contemporâneo funciona assim –, ele bota os papéis podres dentro do seu ativo. E emite passivo monetário. Como as empresas e os bancos podem se manter nesse regime? Acumulando títulos de dívidas, em processos de valorização, sobretudo título de dívida pública. Chega-se ao seguinte fenômeno paradoxal: ao mesmo tempo em que os governos compram e vendem títulos da dívida no open market para regular a taxa de juros, aumentam a dívida porque têm de se colocar mais papéis no mercado, dada a demanda do setor privado.

Isso revela a natureza da dívida pública, que não é apenas um fenômeno fiscal. É fiscal e financeiro. Está ali naquela intersecção entre o fiscal e o financeiro, nas economias modernas. E esses economistas brasileiros não entendem isso, ou não querem entender. Porque, ao contrário do que eles dizem, a dívida pública e a taxa de juros alta revelam o mesmo fenômeno que a gente pode chamar genericamente de rentismo. Só que aqui com juro alto e lá é com juro muito baixo. Lá é pelo ganho de capital e aqui pelo rendimento do papel. Mas é o mesmo fenômeno. O Keynes já tinha detectado isso na Inglaterra, fazendo a diferença entre a Inglaterra da “era eduardiana” e os Estados Unidos.

Princípios: O economista Luciano Coutinho explicou há dias que a riqueza financeira global, calculada em US$ 192 trilhões em 2007, chegou a alcançar US$ 232 trilhões em 2014. Isso ocorreu após as injeções referidas (expansão quantitativa da liquidez) e o mergulho ao negativo das taxas de juros. É evidente o gigantismo da especulação financeira global. Há uma nova crise financeira no horizonte?

Belluzzo: Escrevi com Luciano um texto em 1996 que, sem que soubéssemos, antecipava essas questões da financeirização. A riqueza financeira global naquela época estava em US$ 40 trilhões. No fundo, é uma política monetária que recompõe a tentativa de reanimar as economias com uma bolha de ativos. Marx dizia: não sabem, mas fazem. Eles fazem o que não sabem.

Princípios: No começo de outubro as ações do maior banco alemão, o Deutsche, desabaram, tendo os seus sucessivos abalos origem ainda no acúmulo de hipotecas-títulos subprime. O sistema financeiro italiano vem sendo chamado de “clássico sistema zumbi”. O “Brexit” se dá nesse quadro. Por outro lado, a dívida pública da zona do euro subiu de 64.9% para 90.7% do PIB (dados atualizados); nas economias desenvolvidas o endividamento quase dobrou de 60% para 110% entre 2007 e 2015. O que deve ocorrer?

Belluzzo: O Deutsche Bank é o último caso com problemas criado por esse desequilíbrio. Em algum momento ele vai ser estatizado. De uma maneira ou de outra. Direta ou indiretamente. Não tem mais condição de sobreviver. Lembram do Lehman Brothers? Demora um pouco, mas o próprio mercado começa a cair fora. O Deutsche Bank é um banco de investimento, não é mais comercial. Tem pouco depósito à vista. Para alavancar suas operações ele se abastece no mercado monetário de curto prazo, onde estão as aplicações das famílias e das empresas, aplicações líquidas, que podem ser resgatadas a qualquer momento, mas remuneradas. Aqui no Brasil é o chamado fundo DI.

Com a securitização e financeirização, essa base foi se expandindo. Ela teve uma importância muito grande para o surgimento do chamado shadow bank, o banco que não recebe depósito, porém faz operação de crédito e se abastece nesse mercado. Isso aumentou tremendamente a instabilidade, porque na crise de 2009 esse mercado de curto prazo foi o que secou rapidamente. As famílias e as empresas tiraram o dinheiro. E quem bancou o jogo foi o Federal Reserve e os demais bancos centrais. Se não a crise ia se generalizar. Estamos com uma situação dessa no Deutsche Bank. A Angela Merkel fica driblando na área, vai mas não vai… É outra que vai acabar “fondo” (risos). Porque não tem jeito, vai ter de estatizar.

Princípios: O professor Thomas Piketty, o britânico Anthony Atkinson lista: globalização, mudanças tecnológicas (tecnologia da informação e comunicações), crescimento dos serviços financeiros, mudanças das regras de remuneração, redução do papel dos sindicatos e diminuição da política redistributiva de “impostos e transferências” como os fatores que contribuem para o aumento da desigualdade. Mas não é da natureza do capitalismo neoliberal termos chegado à sociedade do “1%”?

Belluzzo: Acho que o Piketty fez um trabalho magnífico. Querem saber se ele se inspirou n’O Capital, de Karl Marx. Eu brinquei outro dia dizendo que se inspirou, mas não sabe. Ele está falando dessas questões que levantei aqui. Ele diz: vamos observar a evolução da riqueza e da renda ao longo de duzentos anos de capitalismo. E mostra que até a Primeira Guerra Mundial havia uma tremenda concentração da riqueza e da renda. O que tem a ver com a forma que o capitalismo adquiriu, o capitalismo monopolista, dos trustes e cartéis, que culmina na Primeira Guerra Mundial. Culmina no declínio da Inglaterra como potência industrial e no surgimento, em seu lugar, dos Estados Unidos e da Alemanha.

A chamada grande depressão praticamente destruiu a agricultura europeia e criou a periferia produtora de alimentos e matérias-primas. Argentina, Austrália, Canadá, Nova Zelândia… Isso jogou o preço dos alimentos lá para baixo e destruiu a economia europeia, inclusive a inglesa, a irlandesa, a alemã, a italiana… A imigração italiana é fruto desse processo. Então, o Piketty pega esse momento, até a Primeira Guerra Mundial, e mostra a polarização do aumento da desigualdade com a distribuição da riqueza e da renda.

A guerra destrói muita riqueza. Depois, ao longo dos anos 1920 surgem as hiperinflações, a instabilidade permanente, até bater na Grande Depressão. E aí ele mostra como isso vai se reconstruindo a partir dos anos 1970 do século XX. É exatamente o momento em que se começa a abandonar o modelo do Estado de Bem-Estar Social, os Trinta Anos Gloriosos começam a se desmontar. E começa a se fazer a liberalização financeira e comercial, provocando outra vez o mesmo tipo de movimento, em muito maior escala. Quando os Estados Unidos reataram relações com a China abriu-se uma fronteira de expansão do capitalismo. A China é o socialismo de mercado, com seu setor manufatureiro em regime de máxima competição e o sistema financeiro controlado.

Princípios: Isso tem a ver com o fortalecimento das empresas chinesas?

Belluzzo: Sim. Eles fortaleceram suas empresas para entrar na competição global. E estão entrando de forma muito eficiente. Eles não destruíram seu sistema de empresas estatais. Ao contrário, fizeram várias reconfigurações, agregações e consolidações. Combinaram a relação entre Estado e mercado de uma maneira muito inteligente e muito eficiente. Fizeram o contrário do Brasil. Eles vieram aqui nos anos 1970 olhar nosso modelo entre o BNDES, empresas estatais e setor privado. Isso foi desmanchado depois da queda do regime militar. Porque temos de ter muito claro o seguinte: uma coisa era a ditadura e outra a visão que os militares tinham da estratégia de desenvolvimento do país.

Os militares mantiveram essa estratégia, mesmo cometendo enganos, como, por exemplo, o financiamento externo. Mas tinham uma estratégia de desenvolvimento nacional. Pode-se falar o que quiser. A nossa crítica em relação a eles nunca foi essa. A crítica foi em relação à desigualdade que produziram. Mantiveram a estratégia, no sentido de fazer a industrialização brasileira avançar, com todos os inconvenientes da repressão e da tentativa de segurar os salários. Podem ter cometido erros de avaliação quanto aos setores que foram promovidos, mas o desmanche desse arranjo se deu após a redemocratização.

Confundiram a ditadura com o papel do Estado. Sobretudo os tucanos e adjacências. E o PT também. Eles não falavam que pretendiam acabar com a “era Vargas”?

Acabaram com o arranjo empresa estatal-setor privado, que era virtuoso do ponto de vista da taxa de investimento. As empresas estatais, as “bras”, quando definiam o programa de investimento chamavam o setor privado. O setor de bens de capital brasileiro, sobretudo por encomenda, é produto disso. Destruíram esse arranjo, porque, quando se concentra na macroeconomia, é uma praga. Não se dá conta da dinâmica das estruturas, como elas funcionam. 

Ao contrário do Brasil, a China aprofundou esse modelo. Suas empresas estatais funcionam exatamente assim. Eles fizeram uma coisa muito inteligente. Quando se olha a situação fiscal da China se vê que ela é ótima. Porém, há uma situação parafiscal: os bancos públicos financiaram os investimentos em infraestrutura, que tiveram papel enorme no avanço da industrialização chinesa.

Agora, aqui no Brasil, eles dizem que vão mudar o sistema de encomenda à indústria nacional, que faz com que a demanda gerada pelo Estado, direta e indiretamente, seja encaminhada para a empresa nacional. Isso era política industrial. O que a Petrobras vai fazer? Está querendo atenuar isso, com a ideia de que é importante abrir a economia. É importante abrir a economia, desde que se saiba fazer isso. Ver se os ganhos serão maiores do que as perdas. Como eles estão fazendo vai haver outro solavanco na indústria brasileira.

Então, voltando ao Piketty, ele falou do que está acontecendo desde os anos 1970. É que se tem um crescimento desproporcional da riqueza financeira. O estoque de ativos cresce desproporcionalmente em relação ao crescimento da renda. Isso tem como consequência o aumento da desigualdade de riqueza e renda entre as pessoas. Os que têm mais riquezas são os que poupam mais e se habilitam a acumular mais riqueza financeira nesse regime que descrevi.

O Piketty pegou uma coisa que o Marx fala no terceiro volume d’O Capital. Alguns marxistas dizem que ele não falou da mais-valia. Não falou porque ele trata do capitalismo na sua forma final, que Marx genialmente capturou no volume terceiro d’O Capital. E nos Grundrisse, quando ele fala do capital fixo e da relação com a finança. É uma coisa premonitória, impressionante. Então, o Piketty, sem saber, repetiu a trajetória que Marx fez n’O Capital para mostrar a questão do ângulo da distribuição. Marx tratou só no final da distribuição, para ele uma consequência. Ele fez uma trajetória do capital, mesmo. Foi o que também fez o Piketty.

A. Sérgio Barroso, médico, doutorando em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), diretor de Estudos e Pesquisas da Fundação Maurício Grabois e Osvaldo Bertolino, jornalista e escritor, editor do portal Grabois e colaborador da revista Princípios entrevistaram o professor Luiz Gonzaga Belluzzo no dia 11 de outubro de 2016 no escritório do professor em São Paulo.