por: Leonardo Padura
De forma casual, como frequentemente me acontece, chegou às minhas mãos um pequeno folheto fotocopiado das páginas finais de um livro sobre o qual eu não tinha referências: “Asistencia obligada (Un testimonio de las reuniones de la Unión de Escritores de la URSS)”, obra de B. Yampolski e I. Konstantinovski.
As páginas reproduzidas contam um episódio especialmente doloroso, incluído como apêndice do livro: os dias finais da vida do escritor soviético Vassili Grossman, autor de “Vida e Destino”, um dos maiores romances do século 20.
“Um Último Encontro com Vassili Grossman”, escrito por Yampolski, conta em primeira pessoa as vicissitudes dos últimos anos de vida desse escritor, quando seu romance foi “represaliado”, como se dizia naquele país e época (anos 1960), depois de a polícia ter feito uma revista minuciosa de sua casa, de onde foram confiscados todos os papéis e até mesmo a fita gasta de sua velha máquina de escrever.
Desde então até sua morte, pouco depois, Grossman viveu em total estado de marginalização, convertido em pária unicamente por fazer literatura e querer fazê-la com honestidade.
Por isso, ademais, ele morreu sozinho e foi sepultado como se sepultam os suicidas. Com razão: pois, como diz o autor de “Um último Encontro…”, Grossman “foi um suicida, escreveu o que quis e como quis e não sentiu desejo de confluir na turva corrente principal”.
Mas Vassili Grossman seria salvo do esquecimento por um manuscrito milagrosamente sobrevivente de “Vida e Destino”, que, quando finalmente foi publicado, gerou nos leitores a comoção que não podia deixar de provocar.
A literatura mostrou-se dessa vez mais forte que a política e, como costuma acontecer, mais permanente que ela.
O curioso é que para ler essas comoventes páginas fotocopiadas tive que suspender outra leitura inquietante e reveladora: a do livro (também chegado às minhas mãos de forma inesperada) “O Fim do Homem Soviético”, possivelmente a mais importante obra da Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch.
Essa grande reportagem, armada com as vozes de dezenas de soviéticos de todas as idades, tendências e experiências, conta as causas e consequências do desaparecimento da União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, em 1991, e relata acontecimentos anteriores e posteriores que acompanharam o processo de implosão do grande império.
A convulsão social provocada pela perestroika e a glasnost de Gorbatchov, a desintegração da URSS proclamada em 26 de dezembro de 1991 e a entrada em um novo momento histórico pós-soviético é vista e narrada por suas testemunhas próximas, cada uma das quais arrasta uma história que muitas vezes remete aos tempos da portadora de esperança Revolução de Outubro de 1917 e percorre, entre outras, as experiências da Segunda Guerra Mundial e dos campos de trabalho, os chamados gulags patenteados por Stálin, pelos quais passaram milhares de soviéticos.
Os campos dos quais o “represaliado” Grossman só se salvou por ter escrito seu romance quando Stálin já havia morrido.
O que pode ser visto como uma espécie de “conjunção cósmica” é que esses dois testemunhos, reveladores sobre o que podia ser a vida de um grande escritor na URSS e como viveram seus cidadãos os dias finais daquele Estado que começou sendo um sonho que parecia possível concretizar-se na realidade (a sociedade de iguais), chegaram a mim justamente quando estava a ponto de completar-se um quarto de século daquela que já era a inevitável e mais que previsível desintegração daquele que foi o maior país do mundo, um dos impérios mais poderosos que jamais existiram e o Estado moderno que criou os mecanismos se não mais refinados, pelo menos mais drásticos de controle do indivíduo e da sociedade.
Um colapso total para o qual não foi efetuado um único disparo: a URSS morreu matada por ela mesma, por sua negação do que deveria ter sido, e, por isso, seu suicídio foi menos glorioso que o de Grossman.
Um e outro texto me serviram para entender melhor as causas do fracasso daquela utopia, concretizado nos dias finais de dezembro de 1991, um fato considerado por alguns como “a maior tragédia histórica do século 20”.
Mas o próprio Vassili Grossman, em “Vida e Destino”, me deu uma pista importante quando refletiu sobre como os totalitarismos afetam a relação do homem e a liberdade.
Em seu romance ele escreveu:
“… o instinto de liberdade do homem é invencível.
Havia sido reprimido, mas existia.
O homem condenado à escravidão se torna escravo por necessidade, mas não por natureza. (…)
A aspiração do homem à liberdade é invencível; pode ser esmagada, mas não aniquilada.
O totalitarismo não pode renunciar à violência (…), direta ou mascarada (…).
O homem não renuncia à liberdade por vontade própria.
Nessa conclusão se encontra a luz de nossos tempos, a luz do futuro.”
Há ocasiões em que a história e a literatura são úteis para algo mais que nos informar, ilustrar e provocar prazer estético.
Às vezes servem também para nos ensinar lições.
Depende de nós mesmos se somos capazes de tirar alguma utilidade dessa aprendizagem possível e, desde nossos tempos, tão necessitados de uma utopia libertadora e justiceira, recordar qual é a luz do futuro em que acreditava Vassili Grossman.