por: André Singer
A guilhotina, afiada por 61 votos contra 20, estava quase sobre o pescoço da ex-presidente Dilma Rousseff na última quarta-feira (31), quando a ruralista Katia Abreu, no papel de primeira amiga, gritou: “Parem”!
Bravamente secundada pelos cavaleiros Ricardo Lewandowski e Renan Calheiros, e mais uma tropa de 19 apoiadores do impeachment, conseguiu transmutar a pena de morte numa espécie de prisão perpétua.
A condenada perde o poder, porém, fica viva.
Aplausos e vaias. Desce o pano.
A cena conclusiva do espetáculo senatorial foi digna de um drama shakespeariano, no qual tragédia e farsa se misturam em doses equivalentes. Para efeitos imediatos, pouco muda.
O golpe parlamentar se consumou, encerrando este ciclo do lulismo, com danos à democracia.
Mas, ao garantir, no último minuto, a manutenção dos direitos de Dilma, o Senado mandou um recado à plateia, com uma piscadela: não houve mesmo crime de responsabilidade, a ré é inocente, caiu por razões políticas.
O longo interrogatório a que fora submetida dois dias antes revelou-se decisivo para o desfecho.
Embora não tenha o dom da oratória, Dilma conseguiu evidenciar, perante o tribunal da opinião pública, a fragilidade das acusações que lhe eram imputadas.
Ao levantar-se da cadeira, 14 horas depois de iniciada a sessão com um competente discurso lido, a rainha prestes a perder o cetro tinha conseguido colar as palavras traição e usurpação na imaginária coroa que, sequestrada por Eduardo Cunha, Michel Temer envergaria.
Ao preservar a dignidade da mandatária deposta, os peemedebistas cordiais do Senado, dentre os quais ex-ministros da era lulista, levaram o nosso Ricardo III a começar o mandato na defensiva.
Indignados, os demais partidos da aliança exigiam retaliações contra os traidores do PMDB.
Em lugar da comemoração morna prevista para a noite, o novo monarca foi obrigado a endurecer e ameaçar, instando os descontentes a deixarem o palácio.
Chegou, assim, manco ao trono, manchado de sangue.
Nem por isso menos temível, pois se formou bloco social de grande envergadura disposto a retomar o projeto neoliberal de onde ele havia parado nos anos 1990.
Subestimar o tamanho da onda que vem por aí seria grave erro de avaliação.
A balbúrdia na base parlamentar, as ameaças da Lava Jato, a má avaliação do eleitorado que acometem o novo príncipe serão revertidos se os empregos reaparecerem.
A coalizão vitoriosa está consciente do assunto.
O empenho em viajar à China logo depois da desastrada posse o demonstra. Tem início uma peça diferente.