A extinção do Ministério da Cultura não foi ocasional. Não foi técnica. Nem é coerente apenas com o nível cultural do grupo que ocupa os postos chamados de “o governo”. Há também uma coerência interna que identifica, uns com os outros, os integrantes desse grupo heterogêneo, caótico e retrógrado. Essa segunda coerência faz, inclusive, uma conexão entre a atualidade e o passado de algumas décadas.

O governo fala muito. Ainda que metade seja para desdizer o que foi dito na outra metade. Atos administrativos, para quem sabia tanto do que devia ser feito pelo governo anterior, nem um só. Há providências, porém.
Todas na mesma linha, das quais seguem-se alguns exemplos.

1) Nas duas dúzias de ministros, há um único indicado por Michel Temer. É o da Justiça, Alexandre Moraes, cuja primeira e solitária medida, divulgada logo ao assumir, é “rever todos os atos deste ano” praticados pelo antecessor, José Eduardo Cardozo.

2) No Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, Osmar Terra comunica a providência de revisar atos e programas do governo Dilma. E uma investigação no Bolsa Família que pode resultar “no desligamento de 10% dos beneficiários”, ou “mais, de 20% a 30%, se cruzados todos os dados”. De que base respeitáveis vêm tais estimativas? O entra-e-sai faz do Bolsa Família uma população flutuante mês a mês. Parece claro que a intenção é cortar o gasto do Bolsa Família com uma alegação oportunista.

3) No Ministério da Educação e Cultura, Mendonça Filho manda rever todas as medidas tomadas nos últimos dias do governo Dilma por Aloizio Mercadante (Educação), Juca Ferreira (Cultura) e respectivos chefes de departamento.

4) Na Casa Civil, Eliseu Padilha comanda a revisão de todos os atos baixados por Dilma desde 1º de abril.

5) Também na Casa Civil, Padilha procede à revisão das demarcações de terras indígenas. Subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat advertiu que a revisão pretendida viola a Constituição. Decisões passadas do Supremo Tribunal Federal foram no mesmo sentido. Mas, desejada por fazendeiros ocupantes de terras indígenas, a revisão continua.

6) Na Advocacia-Geral da União, Fábio Medina Osório chega com a determinação de “apurar” a conduta do antecessor José Eduardo Cardozo na defesa de Dilma. Parece-lhe inadmissível que Cardozo tenha se referido a “golpe”, ao falar do golpe.

7) O próprio Michel Temer desconsidera a garantia legal do mandato de quatro anos do jornalista Ricardo Melo na presidência da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), empossado no início do mês. E o exonera.

As revisões citadas nestes exemplos e os demais casos, que incluem os outros ministérios, compõem um conjunto caracterizadamente persecutório e policialesco. Sua amplitude e prioridade evidenciam tratar-se, não da verificação de eventuais impropriedades, mas de arbitrariedade e prepotência como política de governo. Uma política que expressa a índole do governo e do próprio Temer, no mínimo por se sujeitar, como marionete, a corrompidos, ímprobos e fraudadores à sua volta.

É verdade que um ou outro governo tenta valorizar-se à custa de algumas reais ou alegadas acusações ao antecessor. Fernando Henrique, aliás, devia agradecer a Lula por nada ter investigado, com tantas possibilidades. Mas a busca e a perseguição como política e prática geral, vista agora, só teve um precedente no Brasil: o poder instalado pelo golpe de 1964. Não comparadas as dimensões, a sanha é a mesma. Até a covardia que leva a demitir o garçom do gabinete presidencial, José Catalão, porque considerado petista, iguala essa gente de hoje à lá de trás.

SENTENÇA

Gore Vidal, em “Washington, D.C.” (há edição brasileira da Rocco), sobre o vice: “Pode-se dizer que tem todas as características de um cachorro, menos a lealdade”.