Deputada federal em seu quinto mandato consecutivo, a ex-prefeita da capital paulista fala de seu isolamento dentro do PSB, das decepções com o momento atual da política e explica um pouco os sonhos que a levaram a participar da criação do Raiz Movimento Cidadanista
por: Leonardo Fuhrmann
Aos 81 anos, completados em novembro do ano passado, e com os cabelos completamente brancos, a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) fala com uma empolgação quase juvenil quando o assunto é a criação do novo partido em que está envolvida, o Raiz Movimento Cidadanista. Antenada com os movimentos fora da esquerda tradicional que ascenderam politicamente nos últimos anos em diversas partes do mundo, mais notadamente na Grécia e na Espanha, Erundina acredita que o Brasil vive o fim do ciclo iniciado com a redemocratização e a formação do PT. Ela admite que não se pode prever o que vem agora, mas acredita no diálogo com os jovens que se manifestam nas ruas, seja contra o reajuste na tarifa de ônibus ou contra o fechamento das escolas estaduais paulistas, para criar um novo movimento, menos hierarquizado que os partidos tradicionais.
Apesar das propostas às vezes guardarem semelhanças com o discurso da líder da Rede, a ex-presidenciável Marina Silva, Erundina faz questão de diferenciar: a Raiz acredita em um ideal socialista. Além de falar do novo partido, a deputada nesta entrevista também faz críticas ao PT – segundo ela, por ter se distanciado de seus ideais –, ao ex-presidente Lula e à presidenta Dilma Rousseff – por “cooptarem os movimentos sociais” e não terem feito “reformas estruturais” – e à gestão do prefeito da capital paulista, Fernando Haddad (faltou conversar mais organicamente com a população e decidir conjuntamente as metas). Leia abaixo a entrevista.
Fórum – Como a senhora tem acompanhado as manifestações em torno do passe livre?
Luiza Erundina – Esse é um fenômeno que não ocorre só no Brasil, está espalhado pelo mundo todo por conta da falência do modelo de economia globalizada e do capitalismo. O caos que está instalado no mundo todo causa uma indignação sobretudo na juventude. Existe uma falta de perspectivas para as pessoas e para o próprio planeta. É uma crise profunda da Terra, da natureza também, muito grave. De outro lado, tem o estímulo ao consumismo desenfreado, a um individualismo radicalizado, não havendo mais um sentido de solidariedade e de construção do bem comum, ou seja, de preservar pelo menos os direitos básicos da grande maioria da população. E isso está suscitando em diferente países, inclusive do chamado Primeiro Mundo, reações massivas de descontentamento e até de indignação. Face inclusive ao esgotamento dos modelos de organização política.
Fórum – E as bandeiras que esses movimentos empunham?
Erundina – São eixos em torno dos quais vão surgindo essa reação e essa busca de alternativas ao que está aí. Esse modelo esgotou. Não se trata apenas da minoria, daquele chamado Primeiro Mundo onde se concentram a riqueza e as oportunidades com as garantias de direitos pelo menos para a maioria da população em detrimento à outra parte do planeta, que não tem vez nesse modelo e nessa lógica que predomina nas relações de produção, consumo e, portanto, nas relações econômica de forma geral. E em detrimento dos direitos humanos e sociais e de uma qualidade de vida justa e necessária para todos. Isso que está provocando esses movimentos, que sentem falta de uma agenda que desse uma concretude a essas demandas. É uma etapa de um processo que vem se dando nos últimos cinco anos ou um pouco mais. É um fenômeno recente, que precisa ser compreendido e analisado pelos cientistas sociais, até para tentar dar uma resposta a eles.
O Brasil não está isento desse momento, que, a meu ver, é o fim de uma fase histórico-social que vinha se construindo nas últimas décadas e séculos em torno do capitalismo e todas as suas fases. A fase do capitalismo financeiro vem agudizando esse caos em todos os países por conta da apropriação da riqueza que esses países geram e acumulam e, no entanto, não ficam com eles em função da dívida pública. Esse é o eixo principal do desequilíbrio das economias nacionais e dessa crise econômica, social e política mundial. É o lucro sobre o capital sem nenhuma referência àquilo que é essencial à sobrevivência de um país, por exemplo, como o nosso. A dívida brasileira é algo que já está além dos R$ 3 trilhões e se sabe o quanto ela é insustentável. E não há limite nas expectativas de juros, lucros e dividendos em detrimento dos direitos sociais, das políticas pública e da igualdade de oportunidades. Isso está se tornando insustentável até do ponto de vista da tolerância, paciência, busca de entendimento e da falência das instituições. O que ocorre no Brasil é mais que um problema moral ou ético, que é um efeito de tudo isso, mas o que é mais grave é a falência do Estado Brasileiro.
Fórum – A falência que a senhora se refere é no sentido econômico?
Erundina – Não só econômico, mas institucional, político e de valores mesmo. É uma questão ética no sentido político do termo e não no moral. É isso que está chegando a um estágio de saturação e de perda de credibilidade nos modelos de organização político-partidária e de projetos de poder do país, seja em que instância for, tira essa energia necessária para renovar a própria política e para projetá-la em uma perspectiva de futuro que aponte para soluções dos problemas graves que essas sociedades enfrentam e, no caso brasileiro, está nessa situação de inadimplência absoluta com tudo aquilo que é dever e responsabilidade do Estado. São direitos sociais iniviabilizados por falta de políticas públicas em função de compromissos com uma dívida que o povo não fez, mas é quem paga.
Daí porque me convenci a partir de um certo momento, muito recentemente, que permanecer com essas tentativas frustradas uma após a outra era estar ao lado do processo de enganação desses mais de 15 anos em que estou no parlamento acenando que se faria uma reforma política e ela nunca veio, a não ser na forma de remendos em um tecido esgarçado e que nem o remendo era novo em si mesmo, mas pequenas soluções, se é que podemos chamar isso de solução, mas que não chegacam nem a ser reformas do sistema eleitoral, muito menos do sistema partidário, uma revisão do pacto federativo e do próprio Estado Brasileiro para colocá-lo num patamar de modernidade e atender as exigências de um novo tempo que está aí e não é de hoje. Permanece preso a modelos ultrapassados e a pequenas soluções para grandes problemas, que são históricos, como a concentração de renda enorme e a exclusão social absurda.
Fórum – Como é estar dentro da Câmara em um momento como esse?
Erundina – Agora, a situação está agravada com a ameaça da perda de conquistas históricas dos trabalhadores, mulheres, negros e dos que estiveram ao longo das últimas décadas engajados em um processo de luta e de conquistas que foram consagradas, parte delas, na Constituição de 1988. E olha que grande parte dessa Carta Magna ainda não foi regulamentada. Capítulos inteiros estão nessa situação. Um exemplo é o capítulo das comunicações sociais, que é um aspecto importante da sociedade do conhecimento. Com toda revolução que houve nessa área, nós ainda estamos com um marco legal de mais de 50 anos atrás, mantendo inclusive dispositivos da época da ditadura militar. E sabemos da importância da comunicação social na divulgação de ideias, cultura e educação. Isso é mantido em detrimento da maioria da população e em favorecimento de um grupo que vem sendo beneficiado sempre e que não abre mão de seus privilégios. E não houve mudança significativa nisso mesmo em governos de partidos ditos de esquerda, surgidos a partir das lutas do povo, e que se construíram e conseguiram poder graças a esse povo. Essa pessoas que foram tratadas como os pobrezinhos que precisam do Bolsa-Família para não morrer de fome e que não são dezenas nem centenas, são milhares de famílias por esse país afora e que o tratamento que é dado por essa política compensatória e assistencial é de perda de emancipação.
Fórum – O que seria essa perda de emancipação do Bolsa-Família?
Erundina – As pessoas vão ficar eternamente a depender dessa esmola do Estado, dessas políticas compensatórias para não tensionar demais, porque aí que os privilégios podem ser ameaçados. Isso em detrimento inclusive do que se acumulou em termos de organização social, mobilização e consciência de direitos. Isso tudo ficou comprometido inclusive com a participação muito determinante dos governos Lula e dos governos Dilma.
Fórum – Qual foi a participação desses governos nisso?
Erundina – Eles domesticaram os movimentos. O Lula – com o carisma, a habilidade e a liderança que tem e a própria origem sindical – fez com que ele acabasse com a autonomia e a independência do movimento sindical. Você não tem mais oposição nesse meio e todos estão irmanados em uma quantidade enorme de centrais sindicais. Antes eram apenas duas e se multiplicaram, enquanto as organizações de base sindical estão absolutamente esvaziadas e fragilizadas. Isso acontece por conta do mecanismo que dá 10% do imposto sindical para as centrais. Tanto que a cada dia surge uma nova central sindical, porque é interessante contar com muito dinheiro desse fundo.
Quando a gente foi criado na luta sindical, e eu sou sindicalista na minha origem de militância, uma das teses pelas quais lutávamos era o fim do imposto sindical, porque ele era o instrumento dos governos populistas que o usaram historicamente para distribuir com as lideranças sindicais e cooptá-las a partir desses recursos. Isso vale também para os movimentos sociais, de mulheres e da juventude. O movimento estudantil hoje está atrelado a um partido, assim como cada uma das centrais sindicais. A organização social tem de ser independente, da sociedade civil, para ser um contraponto ao quadro político institucional que está dado. Isso deixou de existir, na minha avaliação, principalmente a partir do governo do Lula e é seguido também pelo governo Dilma Rousseff.
Fórum – E qual avaliação a senhora faz desses últimos governos?
Erundina – Não sou daqueles que jogam o menino, a água e a bacia fora. Temos de reconhecer que políticas compensatórias como o Bolsa-Família, na escala em que ela chegou, sobretudo nos dois governos Lula, teve sua importância e de alguma forma transferiu renda. Não é que distribuiu, porque não tirou do mais rico para dar ao mais pobre, mas tirou de um fundo comum, que é o Tesouro Nacional, para focar numa política de assistência social para garantir o mínimo, mas sem um prazo. Desde o governo Lula, que esses programas existem. E a cada vez, ao meu ver até por interesses eleitorais, eles aumentam essa escala. Só que o valor dado a cada família é pouco, além de ser um mecanismo alienador, desmobilizador e acomodador. As pessoas perdem as poucas iniciativas que tinham de sobrevivência para viver, se é que podemos chamar de viver, daquela miséria do Bolsa-Família. Mas aquilo tira a pessoa da busca de alternativas de sobrevivência até mesmo em programas, por exemplo, de agricultura familiar. Esse dado vem de uma pesquisa do Ipea.
A agricultura familiar de alguma forma é trabalho e organiza os pequenos trabalhadores rurais dentro das comunidades e os coloca em possibilidade de lutar por outros direitos. Hoje, eles vão para o centro dos pequenos distritos, saem do campo e vão para lá sem trabalho nem atividade nenhuma. Isso tira a possibilidade de emancipar essas pessoas. Esse programa deveria ter sido estabelecido com um limite definido de tempo, negociado com as famílias, e o Estado deveria apresentar uma outra política, articulada com essa, para capacitar e instruir essas famílias para criarem outras alternativas de trabalho. Não de emprego, porque o modelo em si hoje é de reduzir o acesso ao mercado formal de trabalho. Tanto que, quando há alguma ameaça de acabar com o Bolsa-Família, até mesmo por causa do debate em disputas eleitorais, gera uma reação em cadeia absurda.
Inclusive, tentamos sugerir para a presidenta Dilma Rousseff a alternativa da economia solidária, do microcrédito e do banco do povo – que é uma realidade já no país, temos mais de 200 dessas instituições em funcionamento – mas o governo impede inclusive que o Congresso regulamente a atividade do microcrédito. Falo isso porque tenho um projeto sobre o tema, e o governo se empenhou para que a proposta não fosse votada. É evidente que não é uma alternativa macroeconômica, mas é importante que esse tipo de atividade contribua com o desenvolvimento local e comunitário. Foi um projeto desenvolvido junto com os movimentos e com o Paul Singer, que era secretário dessa área no Ministério do Trabalho. Pedimos uma audiência com a presidenta antes de sua posse no primeiro governo e ela nunca nos recebeu. O governoé atrelado ao mercado financeiro, aos bancos e aos interesses da plutocracia, de quem vive do recebimento de juros, que, aliás, não paga impostos. É um governo que não veio para mudar coisa nenhuma, mas para reforçar o que já existia de privilégio e de concentração de poder e riqueza em uma minoria que agora é internacionalizada. Lamentavelmente, nenhuma reforma estrutural foi feita nesses governos Lula e Dilma.
Fórum – O fim do financiamento privado pode melhorar esse processo?
Erundina – Sem dúvida. Foi uma decisão do Supremo Tribunal Federal, não foi um capítulo de uma reforma política votada no Congresso. Claro que tem o papel da sociedade, que fez representações junto ao Supremo e os ministros acolheram. Mas, precisa haver fiscalização, caso contrário, o caixa-dois será feito com muito mais força e frequência do que já tem sido. Ainda bem que o movimento contra a corrupção eleitoral encabeçado pela CNBB [Conferência Nacional de Bispos do Brasil] está organizando comitês no país inteiro para fiscalizar isso, mas muita coisa vai escapar do controle. E mais, o governo contingenciou tudo que era recursos, cortou na carne da saúde, educação e saneamento básico, por exemplo, mas multiplicou o fundo partidário. É quase R$ 1 bilhão no orçamento de 2016 para os partidos distribuírem a quem lhes interessa dentro de sua estrutura. Porque os partidos também não são democráticos, mesmo nos ditos de esquerda – se é que ainda existem partidos de esquerda, você tem pessoas de esquerda. Existem benefícios na forma como eles distribuem o tempo de televisão e rádio e como vão distribuir agora esse fundo partidário, que está multiplicado várias vezes do que era antes (a presidenta podia ter vetado e não vetou). E é desigual também, porque concentra nos maiores partidos, conforme as bancadas. A participação dos pequenos partidos acaba sendo reduzida nesse sistema, e alguns dos partidos mais ideológicos são justamente esses menores, como o PSOL.
Fórum – Por que reformas tão propaladas – com a política, a agrária, a urbana e a tributária – não saem do papel?
Erundina – Não se fazem as verdadeiras reformas porque elas supõem uma mudança de lógica na distribuição da riqueza. As propostas político-partidárias são muito comprometidas com o que está aí. Não há mais como dizer que tais partidos têm um programa de desenvolvimento para a nação que contemple minimamente os direitos e interesses da maioria.
Esse quadro político-institucional está absolutamente falido. Existe um desencanto pela política, a juventude não quer saber. Eles vão para as ruas, enfrentam a polícia, apanham e batem na polícia, mas não querem ver político por perto. Porque generaliza.
A imagem da política, e não só dos políticos, está comprometendo inclusive a renovação dos militantes. O movimento estudantil já não forma mais para a política, ao contrário, é um aparelho a serviço de um partido. Por isso, estão emergindo outras tentativas de organização partidária. É o caso do Syriza na Grécia, o Podemos na Espanha e experiências semelhantes inclusive no México e na Colômbia. O sistema de democracia direta na Islândia também é um exemplo.
O cientista social Manuel Castells, naquele livro Redes de indignação e de esperança, analisa todos esses movimentos políticos de 2008 para cá e mostra exatamente isso: aquilo que existe não serve mais, mas o novo ainda não se construiu. É uma transição dolorosa, difícil, mas necessária. Por isso estão surgindo essas experiências, que são embrionárias, mas já ocupam um espaço significativo.
Fórum – Como a senhora avalia a situação política e as possíveis saídas para as crises?
Erundina – A curto prazo, a minha avaliação é pessimista no sentido de haver mudanças que levem o processo a um novo rumo. Isso é generalizado. Claro que o fim do financiamento privado inibe. As investigações da operação Lava Jato, esses processos todos, caso se aprofundem – que já estão ameaçados também, inclusive quando vemos essa manifestação dos juristas querendo impor limites – tudo isso é uma disputa de poder e o que se tenta é dificultar as investigações para deixar as coisas como estão. Embora eu ache que se avançou muito para conseguir fazer isso. A menos que a mídia adira a essa contraofensiva para evitar a limpeza geral. É uma oportunidade importante para que o Brasil possa começar um novo tempo. Caso contrário, a crise econômica, social, política e ética se soma à crise de esperança. Recuperar a tentativa de um projeto coletivo, que mexa nas raízes dos problemas estruturais que o Brasil tem. É só aí que você vai atrair a juventude, senão ela fica apenas nesses movimentos espamódicos. Falta agenda, foco e uma representação política capaz de estar junto a eles. O modelo de organizações hierarquizadas também não funciona mais, esse é um modelo falido na política partidária e nos movimentos, pela própria força da cultura de rede, da capilaridade e acesso da internet.
Fórum – Quando a senhora começou a pensar politicamente sobre esses temas e a criação do Raiz?
Erundina – Comecei em 2013, com a coisa dos movimentos, de forma mais organizada e coletiva. Estamos discutindo com várias pessoas, não obrigatoriamente em torno de um projeto partidário. Inclusive para orientar nossas opções. Por exemplo, enão me encontro representada – nem representando – pelo meu partido, o PSB. Estou claramente isolada, não que me sinta desconfortável, porque meu mandato tem uma ligação forte com os movimentos e a sociedade, permitindo que o meu trabalho prossiga mesmo sem uma afinidade com a bancada e o partido. Não tenho mais identidade com o projeto do PSB.
Aí você me pergunta porquê estou lá ainda. Primeir,o porque o mandato foi pelo PSB e, por princípio, vou tentar manter o mandato assim até o final dele. A fidelidade partidária é uma coisa importante, se ainda houver sentido sua militância nesse espaço. Caso contrário, você está desperdiçando tempo. Fiquei 17 anos no PT, como fundadora do partido, e foi onde me inseri de fato na militância político-partidária. Não vejo mais possibilidades nesse cenário de partidos. Por isso, comecei a buscar saídas junto com outros companheiros e companheiras que tinham essa mesma sensação. Foi quando começamos a analisar as possibilidades e o que está acontecendo no resto do mundo. E tenho clareza de que estamos no fim de um ciclo. No Brasil, começou com a redemocratização após a ditadura militar, quando surgiu o PT e o novo sindicalismo e os movimentos sociais e populares de um modo geral. Foi um momento rico, que determinou avanços democráticos, uma construção de cidadania muito importante. Esse processo se esgota e isso faz parte da lógica dialética da História. Estamos transitando para um ciclo que não nasceu ainda, mas essas experiências – com seus excessos, equívocos e inadequações – são pistas de que algo novo deve surgir com essas pessoas que estão fazendo essas tentativas.
Estamos construindo com essa meninada, só tem eu de mais velha, mas me sinto muito jovem de poder discutir minhas experiências com eles. Estamos construindo um espaço ideológico e claramente político, na perspectiva do socialismo, mas plural, sem amarras e com um novo parâmetro político. É o fim do dono do partido, da estrutura hierarquizada e verticalizada. Já temos embriões da Raiz em mais de 20 estados. Não estou dizendo que vamos chegar lá, mas estamos testando uma nova experiência que não está atrelada a um projeto eleitoral. Queremos ser partido, ter um projeto de poder, mas não estamos preocupados em participar em 2016 ou 2018. É o poder político que transforma, se for construído com o povo sendo parte. Acredito no nosso governo [quando foi prefeita de São Paulo, entre 1989 e 1992] experimentamos iniciativas embrionárias de poder popular. Tive minoria na Câmara durante os quatro anos, o partido [PT] contra mim, havia a elite paulistana e os preconceitos contra a prefeita na época. Estamos vivendo uma transição de grande riqueza histórica. Eu me sinto privilegiada de viver esse momento. Vamos ver se a gente cria um espaço radicalmente democrático de discussões políticas para influir nos processos que estão por vir, inclusive eleitorais. Não teremos, evidentemente, candidatos, mas apoiaremos algumas propostas e vamos tentar colocá-las no debate.
Fórum – A senhora quase foi vice do prefeito Fernando Haddad. Como avalia a gestão dele?
Erundina – Pois é. Ainda bem que não fui. Essa gestão é parte do que está dado aí. Primeiro, o desgaste que o PT vem sofrendo como partido. E uma gestão, que ao meu ver, é tímida nas ações para revolucionar os métodos de gestão. Nem falaria tanto das políticas. É um governo que não tem participação popular real, organizada, sustentada e permanente. E uma visão de cidade que atende a outra cidade. Por exemplo, pensar a questão da mobilidade por esses meios – faixa exclusiva para ônibus e bicicleta e estímulo a isso – cabe e faz sentido. É bom, mas não é para uma cidade que está no estágio em que São Paulo se encontra e que se agrava cada vez mais. E o governo dele, não é o Haddad individualmente, não dialoga com a cidade real, do trabalhador que fica quatro horas no transporte público, preocupado com a violência. Falta diálogo com a realidade trágica da periferia. E isso está expresso também na escolha dos subprefeitos. A subprefeitura não tem poder, quem tem é o vereador. Os subprefeitos não tem legitimidade nem ligação com as grandes cidades que cada um deles teria de administrar. Ele apenas encaminha – se encaminha – demandas pontuais e superficiais, sem importância. Tanto que é difícil saber quem são os subprefeitos.
Fórum – E a proposta de eleições diretas para subprefeitos?
Erundina – Acho que é uma medida fora de contexto. Você imagina que são ou estão sendo quatro anos de um governo e não houve participação real das comunidades locais. Você promover aogra, ou quando for, uma eleição direta para subprefeito vai ser a disputa que hoje ocorre com os conselhos tutelares e outros conselhos de representação locais. O poder político e econômico vai se exercitar com mais força. Imagine esses dois poderes e mais o das entidades religiosas entrando nessa disputa, com o caráter conservador que a maioria delas tem, elegendo os subprefeitos. O prefeito vai perder o poder. Poderia ser um método mais democrático, com lista tríplice. Mas fazer de pronto, sem esse estágio de um efetivo envolvimento dos líderes locais que geste alguém com representatividade e legitimidade, o poder vai sair da mão do prefeito e ir para os de sempre. Quem tem dinheiro vai eleger seus subprefeitos. Acho uma tragédia se acontecer da forma como está hoje.
O princípio em si é interessante, mas a praticidade e o momento em que se coloca, no vazio de protagonismo popular na vida da cidade, acho no mínimo uma imprudência. Tem de dividir o poder, mas desde o primeiro dia de governo, de forma orgânica. Isso não é uma demanda da comunidade, é uma ideia luminosa. No meu tempo, já se falava de eleição direta para subprefeito. E a gente nem tinha conseguido ainda subprefeitura, era administração regional. Há formas de você descentralizar o poder, da prefeitura e das secretarias. O nosso modelo de reforma administrativa, que foi apresentado naquele tempo e acabou rejeitado pela Câmara, era diminuir o número e o poder das secretarias. Elas passariam a ser as formuladoras de políticas, uma instância menos executiva e mais de planejamento e avaliação de processos, e a gestão seria das subprefeituras. De cara, podia fazer, por exemplo, uma descentralização do orçamento, para que o dinheiro seja entregue conforme a realidade de cada região da cidade. Diminuir os investimentos no Jardins, que é uma região que já tem infraestrutura aos montes. Devia inverter as prioridades e investir de forma sustentada nas regiões que mais precisam, com mecanismos de controle, participação e planejamento.
Eu descentralizaria também a arrecadação, para distribuir a receita e distribuir os encargos tributários de forma desigual, estabelecer alíquotas diferenciadas para quem tem maior capacidade contributiva. Mas isso teria de ser fruto de um pacto da cidade, não é aquela babaquice de fazer as coisas para os pobres. A cidade é uma casa comum e é de interesse de todo mundo que funcione bem, sem as distorções que tem. Dar mais força para as regiões com mais necessidades e pedir mais para aquelas com mais capacidade de contribuição, para diminuir esse fosso enorme que existe entre a cidade em condições normais e a maioria. Na minha época, tivemos de corrigir coisas básicas, lugares que não tinha coleta de lixo. Não sinto que essa gestão e as anteriores à dele tenham investido em diminuir essas diferenças.
Fórum – Por que a Prefeitura de São Paulo sempre esbarra em dificuldades de fazer licitações em áreas como lixo e transportes, muitas vezes geridas por contratos emergenciais?
Erundina – E sem transparência. Essa licitação que foi aberta agora é de concessão durante 20 anos. Essa modalidade no resto do mundo tem prazo de cinco anos, e olhe lá. Aqui, se faz por 20 anos, com a possibilidade de renovar por mais 20. Tem um retorno fantástico para ganhar essa licitação. Está amarrado porque o Tribunal de Contas do Município barrou. Tem não sei quantos pontos que eles questionam. O Ministério Público também foi procurado porque é um absurdo. Você licitar um serviço básico e essencial, com as implicações que tem, seja no transporte ou na coleta e tratamento do lixo, imagina fazer isso com um prazo tão alongado em uma cidade com a dinâmica de São Paulo. Como imaginar um serviço desses com as mesmas condições e regras ao longo de 20 anos ou até 40? São bilhões e mais bilhões de dólares. É um absurdo.
São coisas desse tipo que essa gestão não enfrenta. Obedece a mesma lógica que sempre foi seguida nesta cidade. Não vejo esse candidato… Aliás, é preocupante o quadro que vemos com os outros possíveis candidatos. O que ele ofereceria de diferente ao se candidatar novamente? Alegar que não tinha dinheiro? Bom, governar com dinheiro é fácil. O negócio é se desafiar, como o povo faz. Quando perde a condição de vida que tinha, vai inventando soluções. É preciso estabelecer prioridades e aguentar o tranco, porque o tranco vem. Só faltou cassarem o meu mandato várias vezes por conta disso. Mas eu estava com o povo e o povo vem e ajuda. Não dava para fazer as obras que o Jânio Quadros [antecessor dela na Prefeitura] deixou inacabadas nos Jardins, que apanhei pra morrer por conta da interrupção, porque tivemos de traçar outra pioridade. Se tivesse feito, talvez até teria conseguido eleger o candidato que apoiei [o atual secretário municipal de Direitos Humanos, Eduardo Suplicy], mas teria deixado uma cidade pior. Não falo da cidade oficial, mas da real.
Fórum – E como está a criação de seu novo partido?
Erundina – Nós estamos criando essa organização política, o Raiz. Estamos querendo discutir a cidade e apresentar propostas. E queremos apresentar isso a candidatos com alguma proximidade, se é que tem. Se não temos candidato, podemos ao menos influenciar o debate, sobretudo no segundo turno. Queremos ter uma presença na discussão sobre a cidade. E temos algumas pessoas da Raiz que pretendem ser candidatas a vereador e aí a ideia é fazer uma filiação democrática, sobretudo com o PSOL, que é o partido que tem mais proximidade com a gente. Eles se filiariam com o acordo de sair de lá assim que a Raiz se formalizar como partido. Mas permanecemos no mesmo campo. As conversas estão avançando. O deputado federal Ivan Valente esteve aqui recentemente para conversarmos. Foi o que a Marina Silva e a Rede fizeram com o PSB.
Fórum – O contato com a Rede durante a campanha presidencial de Marina Silva, da qual a senhora foi coordenadora, ajudou a pensar na formação desse partido?
Erundina – Ideologicamente somos muito diferentes da Rede. Como na questão de gênero, a nossa concepção de defesa do socialismo. Temos diferenças na questão cultural da proposta. Nós nos inspiramos na ideia africana do ubuntu, que é a concepção de vida comunitária “eu sou porque nós somos”, inspirada na história dos africanos e dos ameríndios no Brasil. O reconhecimento da natureza como um ente vivo, com direitos, a valorização do “bem viver” em relação ao “viver bem”… Nós combatemos radicalmente esse capitalismo predatório e a desigualdade de renda. A proposta é ousada, com o mínimo de organização formal apenas para cumprir as exigências para a constituição de um partido, não sabemos se vamos consegui r viabilizar isso. Também a nossa preocupação não é ter um partido pronto, acabado. É uma experiência de mudança na forma de fazer política, de conviver politicamente. Queremos fazer essa mudança dentro de nós mesmos, nos converter de um socialismo que muitas vezes também é muito hierarquizado e modificar a forma de conviver. Ter um modo de vida sem ser consumista, exclusivista, individualista e predatório. Isso também é cultural para nós mesmos.
Fórum – A crise do PT atinge a esquerda brasileira como um todo?
Erundina – Aquele PT que nasceu de um momento fundante da História do país, dos trabalhadores e dos excluídos, acabou. Ao chegar ao poder, o PT abre mão de suas origens, de seus compromissos históricos e de sua utopia. Naquele começo havia até a proposta de limite para número de mandatos, porque se via que o mandato tira o militante de suas bases. Era um rigor, inclusive com a contribuição a ser paga ao partido. Isso também nos formava, cada um pagava o quanto podia. O militante que tinha mandato pagava uma carga pesada de seus honorários, não só para ajudar o partido a se manter, mas também para não se corromper. Alguns companheiros se corromperam na medida que passaram a conviver no padrão de vida dos outros parlamentares. Passou-se a ter mais afinidade com eles do que com os que são de onde vieram.
O PT no poder foi nos deseducando. Hoje as campanhas estão muito profissionalizadas. O partido se desviou daquela proposta original, que era muito bela e verdadeira. Era um projeto existencial até, de concepção de mundo e sociedade. Lembro uma vez que a gente recebeu o convite do casamento de um companheiro sindicalista. No chamamento para a festa estava escrito que não era necessário levar presente, mas se o convidado fizesse questão, que depositasse o valor do presente na conta da campanha a governador do Lula em 1982. Ele conseguia compartilhar com o partido o momento mais importante da vida dele. Era de fato solidário, comum. O bem-estar e o prestígio são muito atraentes. Foi o que aconteceu, a meu ver, com esses companheiros do PT.
Fonte: Revista Forum