Em nenhum país do mundo o método democrático pode perdurar sem tornar-se um costume. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia.

A APD – Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, entidade civil de fins não lucrativos ou corporativistas, criada por integrantes da Advocacia-Geral da União, e que tem por finalidade a busca da plena efetivação dos valores sociais e jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, a defesa da democracia e dos Direitos Humanos, vem a público manifestar-se sobre a tentativa de golpe à democracia brasileira por meio do processo de impeachment que tramita na Câmara dos Deputados.

O Brasil vive hoje o período democrático mais longo de sua história. Ainda que o aprofundamento da nossa democracia seja desejável e necessário, sobretudo pela percepção da excessiva influência do poder econômico sobre o voto, o fato é que desde o advento da Constituição de 1988 o país escolhe seus presidentes por meio de eleições livres, e o procedimento de afastamento de um presidente por impeachment tem caráter absolutamente excepcional.

A Constituição exige o cometimento, pelo Presidente, de crime de responsabilidade, a ser previsto em lei ordinária. Não se trata, portanto, de pura e simples decisão política ligada à satisfação ou insatisfação com a gestão. O voto popular escolhe o Presidente para um mandato de quatro anos, findo o qual será avaliado. Ainda que se afirme ser o impeachment uma decisão política, isso não afasta sua juridicidade, ou seja, seu caráter de decisão jurídica obediente à Constituição. A aprovação de leis ou a edição de decretos também são decisões políticas, mas nem por isso podem contrariar a Constituição. Afirmar que o julgamento é político não pode significar que a Constituição possa ser descumprida.

É requisito de constitucionalidade para o impeachment a prova da existência de crime de responsabilidade. Mesmo por uma análise bastante legalista do processo, a conclusão de que não há crime de responsabilidade se impõe. Tipificar como tal a administração de datas no repasse de subvenções aos bancos estatais para efetivação de políticas públicas, as chamadas “pedaladas fiscais”, ou a suplementação de créditos com base no art. 4º da Lei 13.115/2015 demonstra grave impropriedade hermenêutica, além de inequívoco ato de má-fé. A Lei 13.199/2015 ratificou todos os atos de suplementação de créditos com a ampliação da meta fiscal, não sendo possível entender como passíveis de punição atos que foram convalidados por lei formal. Ademais, fatos ocorridos em mandatos anteriores não podem fundamentar o impeachment, nem da atual Presidente, nem dos presidentes anteriores, que incorreram na mesma prática. Tanto a prática administrativa das “pedaladas fiscais” como a abertura de créditos suplementares têm ocorrido em todos os mandatos presidenciais desde o advento da Constituição de 1988, sendo praticados ainda hoje por diversos governadores, sem que se tenha cogitado anteriormente em nominá-los como crime de responsabilidade, o que deixa margem a fundadas dúvidas quanto ao enquadramento de tais práticas como crime de responsabilidade.

A democracia permite a divergência sobre a correção das decisões políticas, mas a decisão última sobre os erros e acertos, em um regime democrático, repousa no voto popular. Mesmo aos parlamentares eleitos pelo povo não é dado pela Constituição o poder de excluir o chefe do Executivo, também eleito pelo sufrágio, com base em dissensos políticos, mas apenas na hipótese estrita e excepcional do crime de responsabilidade.

Não se trata, no presente caso, de afastar uma Presidente da República envolta em denúncias de corrupção, uso ilícito de recursos públicos ou atos contrários à probidade administrativa. Nada disso sequer é objeto de investigação no procedimento. Trata-se de buscar, em uma prática administrativa comum e repetida no âmbito do Poder Executivo, o motivo para a realização de interesses escusos de tomada de poder sem o voto popular. Pior que isso, é notório que a instauração do procedimento ocorreu em razão de espúrias motivações pessoais do Presidente da Câmara, que não aceita sua própria investigação por corrupção na Comissão de Ética daquela Casa Legislativa, e tentou usar o poder de iniciar o processo de impeachment para obter votos favoráveis à sua impunidade – esse sim, um procedimento que tem por fundamento a possível existência de corrupção, apontando contas secretas no exterior que movimentaram milhões de dólares de duvidosa origem. Este mesmo Deputado, que tem utilizado de manobras para evitar seu julgamento no Conselho de Ética, lança mão dos mesmos artifícios para que o processo de impeachment seja conduzido de forma açodada e sem transparência, violando a Constituição e os processos democráticos.

Tais fatos denotam uma tentativa canhestra de dar subsídio jurídico ao atalho antidemocrático de chegada ao poder de quem não recebeu votos para tanto, em situação que não se diferencia muito do contexto do golpe de 1964. Assim, a instauração temerária do procedimento de impeachment, o qual ostenta severos vícios, pode culminar com uma decisão contrária à vontade das urnas.

Nesse sentido, a APD vem se manifestar pelo arquivamento do processo de impeachment, em respeito à legalidade e aos preceitos constitucionais que garantem e sustentam a nossa jovem democracia.

Brasília, 15 de dezembro de 2015.

Gustavo Fontana Pedrollo, Procurador Federal

Diretor Presidente

Alessandra de Abreu Minadakis Barbosa, Procuradora Federal

Diretora Administrativa

João Paulo de Faria Santos, Advogado da União

Diretor de Relações Institucionais

CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO:

Carolina Augusta de Mendonça Rodrigues dos Santos, Procuradora Federal

Juliana da Paz Stabile, Procuradora Federal

Valdez Adriani Farias, Procurador Federal

Fátima Sibelli Monteiro Nascimento Santos, Procuradora Federal

Guilherme Lazarotti de Oliveira, Procurador da Fazenda Nacional

Daniel Telles de Menezes, Procurador da Fazenda Nacional

Priscila Bessa Rodrigues, Advogada da União

CONSELHO FISCAL

Renata Espíndola Virgílio Bianchi, Procuradora Federal

José Flávio Bianchi, Procurador Federal

Luciane Moessa de Souza, Procuradora do Banco Central