por: Tarso Genro (Carta Maior)

O PMDB, como instituição, passará a ser o suporte da direita neoliberal, cujas reformas prometidas colocariam os ajustes atuais como políticas moderadas.

Créditos da foto: Ramiro Furquim/Sul21

Créditos da foto: Ramiro Furquim/Sul21

Esdras do Nascimento, grande escritor brasileiro falecido recentemente, que ainda carece de um reconhecimento maior da crítica contemporânea, me veio à mente quando assumi o compromisso com a Carta Maior, de escrever este artigo sobre o maior partido do país. Os títulos dos seus romances iniciais, “Convite ao Desespero” (1964) e “Tiro na Memória” (1965), bem que poderiam servir de inspiração para analisar a situação do PMDB e do PT, nos dias de hoje. Explico: é que o PMDB atual é um tiro na memória do velho MDB, centrista e progressista, da época da ditadura e o PT -seu parceiro principal de Governo- faz um mudo convite ao desespero ao PMDB, para que ele permaneça silencioso e junto consigo, para não governar o país.

Por mais importantes que sejam os movimentos sociais de todas as ordens, -a ação extraparlamentar, a ação sindical ou os movimentos de rebeldia espontânea- a luta política entre partidos (novos, antigos, tradicionais ou não) é que vai determinar os destinos políticos da sociedade num regime de democracia política. Até mesmo porque, em algum momento, movimentos que tenham pretensão de exercer o poder para aplicar seus respectivos programas vão ter que se expressar -dentro ou fora da ordem- como organizações políticas. E vão ter que se relacionar com outras organizações políticas para governar, mantendo ou mudando a ordem, consolidando sua nova hegemonia e gerando novos consensos. Contra um regime de força, de qualquer natureza, os destacamentos armados podem ser a própria organização política que tome o poder, para proclamar a nova ordem. Na democracia, não.

O PMDB acelera, nos últimos anos, a sua transformação não num partido da ordem (que sempre foi), mas num novo partido unificado, conservador-neoliberal, estranho ao centrismo democrático que esteve na sua origem, nas lutas pelo fim do regime de exceção. Penso, ainda, que a forma-partido tradicional -verticalizada a partir de lideranças carismáticas ou mesmo de direções centrais legítimas- vem se tornando cada vez mais estranha à sociedade “digital-informática” na época que vivemos. Esta superação histórica, ainda em curso, atinge todos os partidos, mas o faz especialmente aqueles que, pela sua história interna, tornam-se mais frágeis para resistir a outros impactos, como o vencimento do prazo de validade das suas ambiguidades.

A política, tanto nas suas conexões culturais como organizativas, já funciona neste tipo de nova sociedade através de relações em rede com seus “núcleos dirigentes” informais, que respondem, de um lado, a uma profunda fragmentação da sociedade de classes, com suas novas reivindicações de direitos, que não esperam pelas decisões dos partidos e, de outro, revelam a impossibilidade de uma burocracia centralizada e distanciada da vida cotidiana, gerar políticas para responder às demandas da variedade dos seus fragmentos.

Nesta sociedade, cujos problemas mais graves são causados cada vez mais por decisões que vem de fora do território e os seus conflitos, não só entre as classes, mas intraclasses, estão cada vez mais distantes da capacidade de interferência do Estado e dos seus delegados políticos, os partidos -tal qual os conhecemos- tendem a declinar nas suas funções até agora conhecidas. Isso embora não seja dominante na crise do PMDB tem a ver com ele e também com os dilemas do PT. O PMDB marcha para viabilizar, agora, novas reformas neoliberais e o PT, no seu “pragmatismo responsável”, vem perdendo a sua capacidade utópico-transformadora, dentro da democracia, que está na base da sua origem de esquerda, reformadora dentro da ordem.

O PMDB, pelas suas peculiaridades, é uma espécie de vanguarda da decadência desta velha forma-partido e o mínimo que se espera do PT é que pelo menos ele não se torne a sua retaguarda. A derrota das revoluções socialistas em escala mundial, a partir dos anos 80 e a emergência do domínio pleno do capital financeiro sobre a nova ordem global tornou desnecessárias as ditaduras. O novo modelo de permanência do capitalismo é a democracia e, por meio dela, este poderá se tornar mais ou menos brutal, mais ou menos violento, mais ou menos “social”, mas é dentro deste quadro que se pode projetar a formação da nação.

O MDB fundado em 1965 era um partido de enorme diversidade política. Seu grupo “autêntico” não era apenas tolerado dentro do partido, mas formava, juntamente com quadros do PCB e do PCdoB “infiltrados” (e em regra tolerados pelas direções partidárias), uma inteligência política nova, que exerceu um importante papel de valorização de velhas e respeitáveis lideranças democráticas como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves.

Estes líderes do campo oposicionista tolerado pelo regime eram líderes da oposição democrática “consentida” e é eles que vão controlar a transição conciliada e criar as condições para a constituinte derivada: a democracia vem devagar e sob controle. É possível dizer, hoje, que os marcos fundamentais desta conciliação, que vai inclusive captando apoios dentro do próprio partido do regime (Arena) -já no curso da transformação o MDB em PMDB (1980)- são os seguintes (que vão sendo assimilados pela esquerda armada derrotada pela repressão), como preço a ser pago para a chegada na democracia: a “naturalização” da anistia restrita, que é “autoanistia”, para os homens do regime (que cometeram crimes comuns contra presos políticos) e é “relativa”, para a esquerda armada, que depende de processamentos judiciais para fruí-la; a aceitação da eleição do Presidente pelo Colégio eleitoral, com a derrota das “diretas já”; e a convocação de uma Constituinte não originária, que, ao mesmo tempo que reflete uma maioria liberal-democrática, também reorganiza alianças políticas, tanto no campo conservador-democrático, como no campo liberal-democrático.

O MDB foi o partido da conciliação, na transição que impulsionou a saída do regime de exceção para a democracia, e se tornou no presente, depois de ser o estabilizador de governos, a organização política (PMDB) que tem condições de estabilizar a implantação plena do projeto de um novo ciclo de reformas neoliberais no país, compondo um arco de alianças com tal destinação. Dissolvida, já no interior do PMDB, a velha unidade em torno da luta pela transição democrática (subordinada às exigências do regime de exceção em recuo), depois de ter cumprido a sua função “estabilizadora de todos os Governos pós-88, entra em pauta a promoção de uma nova unidade. Desta vez ela já é conservadora: envolve tanto os democratas históricos do partido, como as novas gerações de lideranças de direita do PSDB, que já abdicou há muito do seu manto socialdemocrata. Esta nova unidade, que já se ensaiara em torno do bloqueio, na Constituinte, das reformas estruturais mais complexas como a reforma agrária e a progressividade dos impostos, bem como na reforma democrática do sistema político (um cidadão um voto), agora se projeta de forma positiva e programática, para um novo modelo econômico.

Assim, este novo patamar de unidade “moderada” e conservadora, forma o que é oPMDB de hoje: um partido, até agora, indispensável para governar dentro da ordem, com mais de 2,3 milhões de filiados, mas que se torna uma grande frente heterogênea, democrática e liberal que, ao mesmo tempo que mantém sua fidelidade à democracia política, passa a exercer, em sequência, depois de 1988, primeiro, um papel estabilizador dos governosque sucedem os governos militares; e, a seguir, conservador, no terreno social e mesmo na questão do sistema apolítico. (É deste sistema político, aliás, que dependem a manutenção da força eleitoral das suas oligarquias políticas regionais e o seu enorme manancial de votos, captados por estas mesmas lideranças, que são força do partido no Brasil profundo).

A liderança política mais importante, que representa a síntese do PMDB, antes da sua transição para o seu giro explícito neoliberal atual, é o Presidente José Sarney. Egresso do regime militar e do seu partido governista, ousa receber, ainda durante uma transição indefinida, Giocondo Dias (PCB) e João Amazonas (PCdoB), sinalizando que a democracia política -mesmo que negociada e com restrições- vinha para valer. Hoje, o ex-Presidente representa cada vez menos o PMDB, não só porque se torna mais difícil conciliar as demandas sociais, estimuladas pela democracia política, com o papel conservador ou reacionário, que o partido, em regra, exerce nos Estados importantes. Também porque o conjunto do partido, cada vez mais atomizado, só firmará um novo grau de unidade -nas atuais circunstâncias- à medida que se “modernizar” pela direita e aderir cada vez mais claramente às medidas da ortodoxia liberal.

Florestan Fernandes, que sempre se designava como da “extrema esquerda” petista, amigo do ex-Presidente Fernando Henrique e defensor-admirador do ex-Presidente Lula -emérito integrante da nossa bancada federal na Câmara- sempre separava as “mudanças possíveis”, numa ordem social determinada, com a seguinte disjuntiva: as que poderiam se dar numa revolução, através de uma sequência de reformas”dentro da ordem” e as que poderiam ocorrer numa revolução “contra a ordem”. Estas, através uma ruptura abrupta, originária de uma inconformidade social que os dominadores não poderiam mais controlar pela força e que constituiria -rapidamente- a “nova ordem”, que ele apregoava como “democrática e proletária”, para encaminhar reformas de caráter socialista.

Independentemente da correção das análises desta grande figura acadêmica (e política) do nosso país, esta dupla hipótese esteve teoricamente posta no ocaso do regime militar. O regime era largamente apoiado por vastos setores da elite política civil do país e essa, quando se debatia a dupla possibilidade de uma constituinte (originária ou derivada), optou pela saída mais conciliatória com o regime: optou, não pela constituinte originária, cujos integrantes seriam eleitos por voto majoritário em cada Estado da Federação, mas por uma constituinte derivada, produto de uma conciliação entre as forças oposicionistas na legalidade (predominantemente no velho MDB) e os apoiadores do regime em recuo, já transformados em democratas (predominantemente instalados na ARENA), partido-frente do regime.

Na verdade a ampla maioria da sociedade brasileira, incluindo aqui o proletariado clássico, os assalariados de todas ordens, os setores médios da inteligência técnica -acadêmica e política- não só não estavam seduzidos pela possibilidade de construir uma ruptura que levasse ao socialismo, já com muitos sinais de falência no mundo real, como também não tomavam conhecimento dos grandes debates que se travavam, nas vanguardas da esquerda, a respeito dos rumos de uma revolução no Brasil.

Nesta sociedade, já muito mais complexa do que a sociedade russa do início do século passado, diferente daqueles países que encaminhavam lutas de libertação nacional (ou guerrilhas socialistas) – nesta sociedade mais complexa – o que determinava o fim do regime era a grave crise econômica. O que impulsionava as mudanças era a reestruturação da sociedade de classes que o regime militar proporcionara (com uma grande ampliação do mercado interno), que explodia nos movimentos em defesa da democracia, que se disseminavam nas próprias classes dominantes. Estas, já necessitadas de mais diretamente dominar o Estado, inclusive para encaminhar novas reformas que integrassem melhor o Brasil no cenário global, segundo a sua visão de país e os seus interesses de classe.

Este momento de crise aguda do regime amadurece quando a oposição de caráter revolucionário, que se lançara em ações armadas contra a ordem, já estava dizimada. A “lenta e gradual” abertura do General Geisel – mais estimulada pela crise do que respondendo a pressões da oposição legal ou ilegal – se dissemina nos dois partidos “dentro da ordem”. MDB e Arena passaram a compor, através das seções mais significativas dos seus respectivos partidos, um grande campo de conciliação para dar uma saída ao regime. Sob controle das lideranças tradicionais, que se fortaleceram dentro do próprio regime em ambos os partidos, a redemocratização do país avançava firme e lentamente. Essa saída, ao mesmo tempo que afasta, no médio e longo prazo, uma guerra civil no país (cujos efeitos seriam trágicos para todo o campo democrático e para a própria unidade política da nação), teve o demérito de manter a transição “sob controle” e a democracia cativa das velhas oligarquias regionais.

Naquele momento o processo não é mais controlado pelos militares, como dirigentes políticos que tinham um “programa” (de direita tecno-burocrático) para o futuro do país, especialmente no período Geisel, mas passa a ser gerenciado pelas lideranças civis sob o tacão das oligarquias políticas regionais. A nova unidade transita da resistência ao regime para um momento mais positivo de restauração da democracia, embora sem uma visão minimamente unitária de como construir, por dentro dela, um projeto nacional que integrasse um país profundamente desigual e reduzisse a miséria e as desigualdades sociais.

Os reflexos deste processo de transição cobra atualidade nos destinos do PMDB de hoje. Os Governos do Presidente Lula promoveram o mais formidável processo de distribuição de renda e inclusão social no Brasil e o fizeram, em função da própria correlação de forças que emergiu da transição conciliada, sem tocar nos privilégios do “rentismo” e nas grandes desigualdades sociais que foram, em regra, mantidas.

As condições da economia mundial à época e a capacidade política do Presidente Lula, que teve apoio incondicional do PT, do PC do B, do PSB e da ampla maioria do PMDB, principalmente, encerraram um ciclo da esquerda reformista brasileira no centro do poder, em condições favoráveis. O que está claro, porém, é que tudo isso passou. A aventura “centrista” do PMDB já vinha se esgotando dentro do próprio segundo Governo Lula, quando sua maioria se opunha, terminantemente, à reforma política e à democratização dos meios de comunicação no Brasil, há muito alinhados –majoritariamente– com as “reformas” exigidas pelo “rentismo”.

As tarefas do que pode se chamar de revolução democrática no Brasil de hoje são mais complexas e muito mais ousadas. Trata-se de reduzir as desigualdades sociais brutais que permanecem e, através desta redução, alavancar um mercado interno capaz de dinamizar o consumo e reestimular a economia e os investimentos; trata-se de radicalizar a cooperação interdependente com soberania, para fugir da tutela das agências de risco sobre a dívida pública; trata-se de usar o déficit público -recomenda Paul Krugman- com “desembaraço” (como fazem os países ricos) para estimular o crescimento e promover a indústria ; trata-se de fortalecer nosso sistema de defesa, para afirmar nossos direitos plenos sobre a Amazônia e sobre as nossas riquezas petrolíferas do Atlântico Sul; trata-se de ter uma política monetária que se liberte do jugo das agências de risco e de promover, sem vacilações, a nossa soberania alimentar.

Parece claro que um pequeno reflexo dos “autênticos” sobreviverá no PMDB e qualquer governo que pretenda promover um modelo desenvolvimentista de reindustrialização (Bresser) do país, deverá contar com o apoio destes resíduos de centro-esquerda, num partido que continuará regionalizado e também atuando de maneira fragmentária no Parlamento. Esta postura ambígua, aliás, sempre esteve presente através de lideranças como Pedro Simon, que no Parlamento Federal se mostrava sempre “mais à esquerda” que os Governos do PT e, no plano regional, era sustentáculo político de governos direitistas liberais, apoiados, ou do seu próprio partido no Estado. A postura autêntica, nacional-desenvolvimentista, também permanece visível no PMDB, em quadros corajosos como o Senador Roberto Requião.

De outra parte, o PMDB, como instituição, passará a ser o suporte da direita neoliberal, cujas reformas prometidas colocariam (ou colocarão), os ajustes atuais da Presidenta Dilma como políticas “moderadas”. Seu programa recente de TV é de uma sinceridade que merece elogios, porque não engana nenhuma força política a respeito dos seus objetivos futuros. O “tiro na memória”, que o PMDB deu no velho MDB, foi uma larga e complexa mutação política. Ela ocorreu num país que saía de um regime de força, no período de crise da ideia e do projeto socialista, no momento em que também se formava um partido democrático e de esquerda (PT), que se avocava como herdeiro das grandes lutas populares do século passado. O tiro do PMDB, na sua origem, foi um tiro no pragmatismo centrista. O tiro do PT, na sua origem -se ocorrer- será mais um tiro na utopia.