Por: Renato L. R. Marques(*)
Passado mais de um ano da “invasão branca” e da anexação da Criméia pela Rússia, o Leste da Ucrânia passou a constituir um “teatro de guerra” que caminha para consolidar-se como mais um “conflito congelado” nas fronteiras internas da extinta URSS.
Esses acontecimentos têm gerado importantes reações internacionais, em especial da União Europeia e dos EUA, mas não ao ponto de propiciar a reversão ao status quo ante, seja pelas limitações impostas pela posição da Rússia como principal fornecedora de gás e petróleo à Europa, seja pelo equilíbrio estratégico decorrente da condição da Rússia como detentora de um dos dois maiores arsenais nucleares da atualidade.
Esse conjunto de fatores não garante à Rússia um free ride na recomposição de sua área de influência tradicional, mas é suficiente para relativizar o poder dissuasório do Ocidente, engajado em uma operação que é equivocadamente caracterizada como um desdobramento tardio da Guerra Fria.
Em que pesem alguns componentes semelhantes, falta ao contencioso em curso a motivação do passado: a competição entre dois modelos político-econômicos antagônicos, um que enfatizava o ideal de igualdade (em nome da qual legitimavam o controle da economia e o sacrifício das liberdades civis, tal como praticou a extinta URSS), outro que pregava a noção de liberdade como um valor absoluto subjacente ao Estado de direito e à livre concorrência (bandeiras propagadas sobretudo pelos EUA, na condição de Grande Potência no após II Guerra Mundial). Ou seja, à conquista de novos mercados, desenvolvia-se uma hoje ausente disputa pelos hearts and mindsem escala global, na tentativa de conversão de novos aliados através da difusão do credo marxista ou capitalista entre o gentio do Terceiro Mundo (mas não apenas aí).
Esses elementos ideológicos estão hoje ausentes do contencioso em curso na Ucrânia e, a rigor, excluídos da agenda internacional desde a exaustão do “socialismo real” (eufemismo para a ruína daquele modelo econômico). Além disso, apesar de algumas iniciativas em escala global, o raio de ação da Rússia (e seus objetivos mais aparentes) são essencialmente de âmbito regional. Dimensão que tende a se consolidar, na medida em que o preço do petróleo se mantenha abaixo do patamar de 100 US$, que sua economia continue dependente do setor energético e que as reformas estruturais necessárias à sua modernização (indispensáveis para superar uma estrutura produtiva herdada do período soviético, concentrada na indústria pesada, voltada para fins militares) continuem inviabilizadas pelas distorções do sistema político existente.
Surpreendentemente, as iniciativas russas em seu entorno imediato tendem a não gerar críticas contundentes em vários setores da opinião pública mundial,por vícios de raciocínio (a “esquerda” persiste em ver Moscou como uma referência antiamericana), por tiques remanescentes da Guerra Fria (é bom tudo que é contra os interesses dos EUA) e até por veleidades bonapartistas de alguns setores da “direita” (que simpatizam com a afirmação de poder nacional exibida por Pútin e com seus ataques ao “declínio moral do Ocidente”).
A campanha russa na Ucrânia também se beneficia de um notório acervo de desinformação. A começar pela disseminação da tese de que a Crimeia sempre foi russa (quando foi anexadapor Catarina, a Grande, em 1783, nove anos após sua independência do Império Otomano, em operação destinada – então como agora – a ter acesso ao Mediterrâneo e a poder estender a influência russa naquela direção). A seguir, pela disseminada noção de que a cessão da Criméia à Ucrânia, por Krushev, em 1954 (em celebração ao 300o aniversário do Tratado de Pereyaslav,por muitos considerado o início da dominação russa sobre os cossacos ucranianos) foi um ato destemperado do líder soviético de turno (quando resultou da natural inserção da península no único território com o qual fazia/faz fronteira terrestre). A mesma lógica está, assim, na origem do movimento atribuído a “rebeldes”, de separação das regiões ao leste do domínio do Estado ucraniano (somente por essa via pode, até agora, ser reabastecida a base militar russa na Crimeia). E, finalmente, a ideia de que a população da península sendo essencialmente de origem étnica russa, tornaria a incorporação da Crimeia, via referendo, um ato de “descolonização”. Essa fundamentação se vale da doutrina prevalecente na Europa – região de emigração – em favor do “jus sanguini” (que, nesse caso, atribuiria nacionalidade russaa quem tiver sangue russo entre seus ascendentes). Tese que certamente terá seus adeptos na Chechênia muçulmana e que, se adotada rigorosamente, justificaria a restituição da América Latina em peso à Espanha e do Brasil a Portugal. Com o agravante, no caso da Crimeia, de que a península constitui, desde os tempos soviéticos, um dos locais favoritos de residência dos aposentados da Nomenklatura, atraídos por seu clima ameno,suas belas paisagens e até pela proximidade das moradas de autores famosos, como Tchekov e Pushkin, que cantaram as maravilhas da “pérola do Mar Negro”. Acrescente-se a isso sua condição de base naval russa (em regime de arrendamento até a anexação da península) e teremos uma fórmula de permanente ingresso de cidadãos russos ou de origem russa, a somar-se aos contingentes trazidos por Stálin após sua expulsão dos tártaros da península, no segundo pós-guerra, sob a alegação de colaboração com o inimigo. Em suma, a Crimeia não estaria longe de ser um misto de Flórida e Guantánamo.
Apesar da distância, os acontecimentos na Ucrânia têm implicações importantes para a política externa brasileira. Em primeiro lugar, ao expor nosso silêncio ante as iniciativas russas na região, escudados na ausência de exércitos regulares e de uniformes de clara identificação. Para um país com pretensões a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a atitude assumida não presume a isenção esperada. O mesmo se pode dizer no episódio da derrubada do vôo MH17 da Malaysia Airlines, por um míssil terra-ar, em 17 de julho do ano passado.Se essas omissões foram motivadas por um sentimento de solidariedade no contexto dos BRICS, trata-se de um investimento de duvidoso retorno, ante a importância apenas marginal da aliança no cenário político internacional e a fragilidade estrutural de suas economias (China à parte).
Finalmente, a denúncia recente do acordo de cooperação espacial Brasil-Ucrânia, assinado em 18/11/99, é um subcapítulo inevitável, seja pelo descrédito que alcançara pela falta de iniciativas concretas para torná-lo operacional, seja pelas sabidas (mas não assumidas) resistências russas (e não apenas russas) a seu funcionamento, seja porque as atividadesdas empresas Yuzhnoye (engenharia) e Yuzhmash (produção), responsáveis pelo desenvolvimento e fabricação dos foguetes destinados ao lançamento de satélites em Alcântara, situadas em Dnipropetrovsk, foram afetadas pela conflagração no leste do país, o que levou a paralisações no trabalho, atrasos nos salários, perda de contratos (sobretudo para a Rússia), necessidade de buscar novos fornecedores, dificuldades adicionais de financiamento… Além dessas reações adversas externas, o projeto sucumbiu igualmente a pressões ecológicas no Brasil, à oposição de comunidades quilombolas,a suspicácias de setores nacionalistas que temiam perder as minguadas verbas destinadas ao programa brasileiro (PNAE) e, talvez mais grave, à inapetência nacional em levar adianteum projeto de cunho estratégico que, se bem conduzido, poderia ter resultado em um salto qualitativo na tecnologia e na produção industrial brasileiras (e eventualmente recuperado a posição de que desfrutávamos, na década dos 70, com relação à China, Índia, Israel, Irã, Coreias do Sul e do Norte, para citar o grupo que integrava o Brasil à época).
Perdem, Brasil e Ucrânia, a possibilidade de ingressar em uma atividade de alto rendimento, integrada por restrito clube de países, pouco propensos a aceitar novos membros. Não por acaso, as regras do Missile Technology Control Regime (MTCR) são tão draconianas e a disseminação da tecnologia praticamente vedada. Na nova versão, que circula na imprensa, voltaremos a nos oferecer simplesmente como plataforma física de lançamentos. E não mais como eventuais parceiros, como o projeto com a Ucrânia insinuava (o desenvolvimento conjunto do foguete Cyclone V seria a forma de contornar as restrições do MTCR). Da mesma forma, não teremos mais como testar o ânimo ucraniano na transferência de tecnologia (promessa que é mais frequentemente acenada do que cumprida), nem como comprovar se verdadeiras, ou não, as alegações de que a Ucrânia não dispunha de capacidade tecnológica autônoma nesse campo. Fica portanto apenas um rol lamentável de irrealizações e de interrogantes.
Rio de janeiro, em 27 de julho de 2015