A economista Leda Paulani, professora da FEA/USP, diz que está decepcionada com os rumos da política econômica do governo Dilma Rousseff. Afirma que o ajuste do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, não trará crescimento neste ano e nem nos próximos, pelos seus efeitos negativos principalmente sobre os investimentos público e privado. O cenário internacional difícil, destaca ela, também impede que o setor externo funcione como um elemento dinâmico da economia do país.

Pouco mais de um mês após deixar o comando da secretaria de Planejamento de São Paulo do governo Fernando Haddad (PT), Leda também ressalta a dificuldade de se fazer investimentos nos municípios e a necessidade da troca do indexador da dívida com a União para que a cidade de “São Paulo não morra”. Confira trechos da entrevista concedida ao Valor:

Valor: A sra. entendia que havia um afastamento de Dilma Rousseff da ortodoxia no primeiro governo e esperava que ela se libertasse de fato da ortodoxia e enfrentasse os interesses financeiros. Como analisa esses primeiros meses do segundo governo?

Leda Paulani: Eu pessoalmente, como cidadã e economista, fiquei bastante decepcionada, porque eu escrevi um artigo na época das eleições chamado “Terrorismo Econômico”, no qual eu dizia justamente isso: quer dizer, se vendia uma imagem da piora da economia brasileira que era muito pior do que de fato os dados mostravam. Eu termino o artigo dizendo que esperava que este terrorismo econômico não desse frutos. Porque eu faço uma comparação com o que aconteceu na primeira gestão Lula, quando fizeram a mesma coisa. Só que o terrorismo econômico [naquela época] continuou a ponto de o governo abraçar [o terrorismo] e então você teve um primeiro governo supostamente de esquerda que fez uma política neoliberal no seu início mais forte do que até um governo supostamente mais à direita que entrasse. Tiveram que beijar a cruz. Eu esperava que esse terrorismo não provocasse isso na nova gestão da presidente Dilma. Mas infelizmente provocou. É óbvio que tem uma piora no cenário econômico. A gente também não pode achar que está tudo igual.

Valor: A que se deve essa piora?

Leda: Essa piora se deve fundamentalmente à permanência de uma situação muito difícil no plano internacional, principalmente pela desaceleração do crescimento da China, porque o que permitiu a fase de crescimento para nós de 2000 a 2008 foi o período de bonança na economia mundial como não se via há décadas. Ele foi puxado basicamente pelo crescimento chinês e um pouco pelo da Índia, que fez explodir os preços das commodities e teve subprodutos positivos aos exportadores de commodities, como o Brasil. Principalmente depois de 2003/04, a gente entrou nesta rota e se aproveitou desse crescimento. Aí teve a crise, e 2009 nosso PIB teve crescimento negativo. Em 2010, ele recupera, aumenta bem, depois entra o governo Dilma. Na situação econômica mundial, falava-se menos da crise, mas isso não quer dizer que ela tinha sido resolvida ou que o dinamismo da economia mundial tinha sido recuperado. Pelo contrário, foi piorando. O que se tem hoje é todo mundo falando que os EUA estão crescendo – e eles estão crescendo, se recuperando -, mas o crescimento deles ainda é muito menor do que tinham antes da crise. A Europa tem lá um nó institucional com a questão do euro, a forma como a Alemanha se mexe ali dentro, e com todo esse medo do terrorismo, essa confusão no Oriente Médio… É difícil criar expectativas positivas ali para o crescimento econômico deslanchar. E os grandes – China e Índia – estão desacelerando, então a condição piorada do cenário internacional se cristalizou nesses últimos anos. E isso teve consequências para o Brasil. Há uma piora realmente. Mas será que você tem descontrole tal como pintam por aí, com descontrole das contas públicas, descontrole da inflação?

Valor: Não há descontroles?

Leda: O que descontrolou realmente foram as contas externas. Estas sim. Porque você tem déficit em conta corrente cavalar, em torno de US$ 90 bilhões. Para a economia brasileira, é muito grande. É uma coisa que não dá para sustentar a médio prazo. E a gente já vem há algum tempo, desde a reapreciação cambial (entre 2007 e 2008), enfrentando esse problema. Então, há essa piora. Mas o que aconteceu com as contas públicas? O governo investiu em algumas políticas de desoneração de folha, investiu um pouco em gastos públicos, mas menos do que poderia, e isso, como a economia não deslanchou, teve reflexos na receita e o resultado final foi ruim. Mas ele não foi catastrófico, não é uma tragédia assim insuperável. De fato, não fez o superávit primário, interrompeu uma sequência, mas eu não olho o superávit primário. Eu olho a despesa total, a despesa incluindo os juros.

Valor: Por qual razão?

Leda: Quando você olha a despesa incluindo juros, vai ver que, com todo esse esforço de superávit primário, quando você joga a despesa com juros em cima, o superávit se transforma em déficit. Mas isso é assim há muito tempo. Nunca tivemos superávit total. Sempre tivemos superávit primário e um déficit nominal, porque você bota os juros da dívida nesta conta. Esse déficit hoje do Brasil está em 6,7% do PIB, mas no Reino Unido é 8%, nos Estados Unidos é 9% e no Japão é 9%. Qual é o problema de um país como o Brasil, pobre ainda, tentando se constituir como nação, fazer um déficit de 6,7% do PIB? Por que o Japão pode ter 9% do PIB de déficit nominal e ninguém acha que o Japão está quebrado, acabado, destruído, descontrolado, sem condição? E a gente faz 6,7% e parece que cometeu crime de lesa-pátria. O que aconteceu com as contas públicas foi isso. Mas dizer que tem descontrole faz parte dessa estratégia de terrorismo para que a política de austeridade apareça como única alternativa.

Valor: A sra. é crítica a essa questão de ela ser a única alternativa.

Leda: Você faz um drama tão grande em cima que a única alternativa parece ser a austeridade. O engraçado é que se controla, se corta com a tesoura, todas as despesas, inclusive essas que existiriam com a aplicação do novo indexador das dívidas de Estados e municípios. Agora, a despesa com taxa de juros, isso não se mexe. Muito pelo contrário: se aumenta, se aumenta e se aumenta. Então, são dois pesos e duas medidas. A população como um todo nunca tem consciência disso.

“Dizer que tem descontrole faz parte da estratégia de terrorismo para a austeridade aparecer como única opção”

Valor: A sra. concorda com economistas que têm dito que Dilma cedeu aos interesses do mercado financeiro?

Leda: Acho que a presidente tinha se mostrado até então muito corajosa na política econômica. Na realidade, foi no [primeiro] governo dela que se consolidou esse afastamento maior da ortodoxia. Tirou o [Henrique] Meirelles do BC, partiu para uma política de redução da taxa de juros, e usou os bancos públicos para reduzir os absurdos spreads que o setor bancário cobrava. Foi corajosa ao enfrentar o negócio. Mas a eleição [de 2014] foi muito acirrada, para completar o quadro o Congresso ficou com uma constituição muito pouco favorável ao governo, e, por fim, para botar uma pá de cal, tem a Operação Lava-Jato e toda essa permanente ameaça de querer envolver a presidente, de impeachment e tudo isso. Então, acho que ela foi neste começo da segunda gestão tentada a fazer uma política que não entrasse tanto em conflito com os interesses que estão por trás do Congresso e por trás daqueles que apoiaram o outro candidato. Tenho a impressão de que ela imaginou que cedendo a esse tipo de política de austeridade ganharia um comportamento menos agressivo por parte da oposição, que lhe daria um certo beneplácito, e teria mais tranquilidade para governar.

Valor: Mas não conseguiu tranquilidade para governar…

Leda: Acho que foi um tiro no pé, porque não ganhou esse apoio e perdeu o apoio de muita gente, que na hora da escolha optou pelo lado dela conscientemente, por saber que ela tinha feito uma gestão mais de esquerda quando comparada às duas gestões anteriores do Lula, e que esperava que ela fosse neste caminho e não voltasse para trás como está acontecendo.

Valor: A sra. considera que Dilma perdeu apoio da esquerda?

Leda: Não sei se dá para chamar de esquerda, mas de uma porção de gente que, ainda que não se caracterize como esquerda, se sente mais contemplada ou mais confortável com o tipo de política feito antes. E que não acha que é a austeridade que vai resolver, que é contra juros elevados, e tudo isso.

Valor: Apesar da austeridade, o mercado continua hostil?

Leda: Ele continua hostil. Tem um pessoal que trabalha no mercado financeiro que é de esquerda, sofre muito, mas tem. Um deles me disse em particular o seguinte: o ódio que a Dilma despertou no mercado financeiro nunca chegou perto do que Lula despertou. Na primeira eleição de Lula, o mercado tinha receio, tinha medo. Não sabia o que vinha pela frente. Na segunda eleição de Lula, nem se importou. Ficou indiferente porque já sabia que ele não faria nenhuma manobra radical. Na Dilma, voltou aquela expectativa. Depois do que ela fez – em termos de ter enfrentado esses interesses -, o mercado tem ódio dela. A expressão deles é de ódio visceral da Dilma. Não adianta. Ela jamais ia ganhar o apoio dessa gente, a condescendência e o respeito. Nunca. E politicamente isso implica que, do ponto de vista das ameaças de impeachment e etc., a coisa não ficaria mais leve para o lado dela.

Valor: Dilma tenta fazer a política econômica que Lula fez no primeiro governo. Quais os problemas e acertos disso?

Leda: Acho que ela está tentando. E acho que aliás, certamente, tem alguma opinião forte dele [Lula] aí, de tentar repetir a mesma receita. A gente faz a política que eles estão dizendo que têm que ser feita e depois, em paralelo, a gente faz as nossas políticas sociais, como Bolsa Família e etc., e aí a gente ganha a confiança do mercado e tal. Só que tem algumas diferenças.

Valor: Quais?

Leda: No primeiro governo Lula, não tinha existido um governo petista prévio. No caso da Dilma, não é assim, porque já está indo para a quarta gestão petista. E, particularmente no caso dela, há esse ódio do mercado. A segunda coisa muito diferente é o contexto do mercado internacional, que é outro. É diferente de 2002, por exemplo, quando os EUA estavam saindo da crise da bolha das pontocom, com uma redução brutal da taxa de juros, e a economia estava começando a entrar no “boom”, que foi propiciado por aquilo que depois virou a bolha dos imóveis. Eles estavam no começo da curva que depois estourou lá em cima. E agora estamos no “vale” das consequências desse “boom” em termos mundiais. Isso ocorre porque a crise de 2008 foi puxada pelo mercado imobiliário americano, mas ela tem por trás de si o desequilíbrio estrutural do capitalismo.

Valor: O que significa isso?

Leda: É um crescimento muito mais acelerado da riqueza financeira do que da riqueza real. A financeira aumenta 3 a 4 vezes mais do que a real desde pelo menos o começo dos anos 1980. São três décadas e meia já deste problema. Isso é o subproduto da abertura financeira generalizada das economias. É evidente que essa crise não ia ser resolvida rapidamente, porque se criou uma impressão de que o problema era com o mercado imobiliário americano e que resolvendo aquilo tenderia a se resolver a crise. Mas não era aquilo. E até porque a forma como a crise foi “resolvida”, com brutais intervenções dos tesouros, acabou jogando mais lenha na fogueira porque o crescimento da riqueza financeira acabou, digamos assim, avalizado.

Valor: Esse desequilíbrio continua?

Leda: Sim. As consequências da crise não foram nem um pouco pontuais. Pegaram o mundo todo. Com isso, não há uma perspectiva de curto prazo de reversão. Esse desequilíbrio estrutural é um nó monetário que ninguém sabe como vai ser resolvido, e se vai ser resolvido. Ou se vamos ficar mais quantas décadas de crise financeira em crise financeira. As condições para que a gente permaneça em uma crise financeira atrás da outra são fortes. Nessas condições, tentar usar a mesma receita aplicada em 2003 não vai funcionar. Toda fé no tripé [regime de metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário] e esperar que a coisa melhore… Mas não vai melhorar.

Valor: A política do ministro Joaquim Levy trará o crescimento?

Leda: De jeito nenhum. A menos que haja um milagre do ponto de vista internacional – o que eu acho difícil -, as perspectivas de crescimento do Brasil são muito ruins para este ano e para os próximos. Eles vendem a coisa de um jeito assim: é um filhinho malcriado que precisa ficar de castigo. Ou, como se dizia antigamente, quando começou essa história em meados do anos 90, que o país precisava “fazer a lição de casa”, uma expressão que dá uma conotação moral que não tem nada que ver com a história. O próprio FMI disse que o México era o melhor aluno da classe, em agosto de 1994, e em novembro daquele ano o México quebrou.

Valor: Não tem como o ajuste atual trazer o crescimento?

Leda: Não tem como. Se olhar do ponto de vista da demanda agregada, você vê: o consumo não tem autonomia porque depende da própria renda, do próprio produto. Se o produto está caindo, ainda mais com as famílias endividadas, não vai vir por aí dinamismo nenhum. O investimento está no chão porque as expectativas estão lá embaixo. O governo apostou numa política de desoneração que deu aumento de margem aos empresários, mas no fim não fez com que eles investissem. Acho que o dinheiro teria sido melhor gasto se tivesse sido gasto diretamente em investimentos por parte do governo – como em infraestrutura – porque aí estaria acionando a demanda diretamente. Nos investimentos privados, as expectativas são ruins e, com esse terrorismo todo, continuam ruins. Investimento público, com a política de austeridade, não tem ou tem em escala muito menor.

“Vendem a história de que é preciso tomar um remedinho amargo que amanhã você estará bom. Mas não é verdade”

Valor: Mas e os efeitos do componente externo da demanda?

Leda: A única coisa que melhora um pouco a expectativa é o componente externo, porque o real bem ou mal, ao se desvalorizar, vai chegando a um patamar adequado e deve melhorar o componente externo da demanda. Mas a política de austeridade ataca diretamente tanto investimentos privados quanto gastos do governo, e por tabela, o próprio consumo. Portanto, não tem como produzir uma retomada rápida de crescimento. Eles vendem essa história assim: que é preciso tomar um remedinho amargo que amanhã você estará bom. Mas não é verdade. Pareceu verdade em 2003 porque o Brasil estava engatando na explosão das commodities. Hoje não. A menos que haja um milagre que melhore a demanda externa e melhore a própria desvalorização do real, de forma que isso se transforme em elemento dinâmico, com efeito multiplicador capaz de puxar o resto, não tem como haver perspectiva boa de crescimento.

Valor: Se não é por este ajuste, como é possível o país voltar a crescer?

Leda: Há algumas coisas que podem ser feitas. Mas tudo implica grandes confrontos políticos. A situação é difícil politicamente. Do ponto de vista técnico, há alternativas. Se você consegue – mesmo sem mudar o regime cambial – manter a taxa de câmbio num nível elevado, que permita recuperar um pouco a indústria, e se você reduz a taxa de juros… Porque não há nada que justifique essa elevação da taxa de juros. Se você põe controle sobre o fluxo internacional de capitais, consegue reduzir a volatilidade do câmbio. Reduzindo a volatilidade, também consegue diminuir o poder do argumento de que é preciso taxa de juros elevada para segurar a inflação. E reduzir juros é reduzir despesas do governo. Não adianta dizer que não é. O meu aporte seria completamente diferente: controle de fluxo de capitais, redução de taxa de juros e uma série de propostas de se mudar a estrutura tributária do país porque ela hoje permite que se perpetue a desigualdade.

Valor: Muitos municípios reclamam da falta de recursos para investimentos. Qual a importância da troca do indexador da dívida com a União?

Leda: Para São Paulo, é absolutamente fundamental a troca. Nesses dois primeiros anos, conseguimos uma média de R$ 4 bilhões/ano em investimentos. A gente paga R$ 4 bilhões/ano de dívida só para a União, fora precatórios, que temos mais R$ 1,3 bilhão, que também é dívida. Se olhar só esse contrato da União, vê que a gente poderia dobrar o investimento se não tivesse que pagá-lo. Ninguém está querendo não pagá-lo. Mas o fato é que o montante da dívida, quando o contrato foi assinado em 2000, era de R$ 11 bilhões, sendo que pagamos R$ 28 bilhões no meio do caminho. A dívida chegou onde chegou e hoje devemos mais de R$ 60 bilhões porque o indexador que foi escolhido e que foi assinado pelo então prefeito [Celso] Pitta mostrou-se completamente equivocado. Hoje, o governo municipal financia a União, que toma recursos na base da Selic e empresta ao município por IGP-M mais 9%. Elevar os investimentos nos últimos dois anos foi a custo de gestão, muita economia e revisão de contratos. Agora, sem esse alívio da dívida, São Paulo está morta. Ela ficou com uma demanda reprimida brutal por investimentos, porque eles foram se reduzindo em anos anteriores. Sem esse alívio, a tendência é que a cidade se deteriore muito.

Valor: Por que deixar a secretaria de Planejamento da prefeitura?

Leda: A minha praia é a academia. Quer dizer, me formei em economia, trabalhei no mercado financeiro, mas depois voltei para a academia e fiz mestrado e doutorado. Eu tinha alguns compromissos de pesquisa financiados por Fapesp e CNPQ, dos quais eu não consegui me desvincular, apesar de ter tentado quando o prefeito [Fernando Haddad] me convidou. Por uma questão de prazos de relatórios dessas pesquisas, fiquei com receio de não conseguir cumprir minhas obrigações.