Os tempos históricos no Caribe são especiais. Relatava o escritor cubano Alejo Carpentier em sua obra “O Século das Luzes” que a chegada da guilhotina às colônias francesas ocorreu depois que já haviam concluído os Anos do Terror no processo revolucionário na França.
Seguindo a mesma lógica, o Muro de Berlim nas relações Cuba-Estados Unidos caiu 25 anos mais tarde do que na Alemanha.
Na realidade, a sobrevida da Guerra Fria no relacionamento entre Havana e Washington já havia se tornado um anacronismo, disfuncional para ambos os lados.
Não obstante a vontade política, também dos dois lados, precisava encontrar um porto seguro para bater o martelo.
O mérito dos presidentes Raúl Castro e Barack Obama e o peso legitimador da atuação do Vaticano, na pessoa do papa Francisco, são indiscutíveis para explicar o fato histórico produzido.
Não obstante, a compreensão desta decisão não pode estar dissociada de um processo de transformação que deu impulso e favoreceu o desenlace.
E neste processo foram decisivos três grupos de fatores –o primeiro, de natureza doméstica em Cuba; o segundo, de caráter regional; o terceiro, com sentido global.
O primeiro, e mais importante, constitui o processo de mudança em Cuba, iniciado a partir da presidência de Raúl Castro, em suas múltiplas expressões.
Se bem a dimensão econômica deste movimento seja o de maior envergadura, não se pode reduzir a importância das alterações que se observam no cotidiano político em Cuba.
Destacam-se as modificações institucionais relativas aos mecanismos de representação e a ampliação de atores sociais que participam de uma nova etapa de mobilização da sociedade civil no contexto do que formalmente vem sendo rotulado como “atualização do modelo”.
Com um gradualismo que faz lembrar o ritmo da transição democrática no Brasil, o atual processo cubano vem contando com o respaldo das FFAA, mais central do que o Partido Comunista como pilar de estabilidade interna.
Neste mesmo contexto, o papel da Igreja Católica ganhou nova importância, como uma força de mediação e diálogo interno, com especial menção à Arquidiocese de Havana.
Esta presença outorgou um sentido de sustentabilidade à mediação do Vaticano para que o diálogo Cuba-EUA tivesse lugar. Não se trata de uma mediação papal típica, motivada pelo compromisso da igreja com a paz mundial. A igreja representa um ator crucial na transição cubana.
Já o fator regional jogou uma carta decisiva para que a aproximação Castro-Obama ocorresse.
A acolhida sem restrições a Cuba como parte da comunidade latino-americana vem se reafirmando de forma sistemática desde a criação da Celac.
Num primeiro momento, este “retorno” contou com o patrocínio especial da Venezuela e do Brasil, sempre aplaudido pelos demais parceiros de Cuba no grupo Alba. No entanto, dois fatos apagaram a marca política da presença cubana, dando-lhe um sentido de “normalidade”.
O primeiro foi a posição consensual dos países latino-americanos de que Cuba não poderia estar ausente da próxima Cúpula das Américas, prevista para abril de 2015. O segundo, de muito maior importância, foi o papel de Cuba nas negociações de paz na Colômbia, com especial menção ao seu poder de influência sobre as Farc.
Não foi casual o fato de que o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, tenha sido o primeiro mandatário latino-americano a manifestar publicamente sua satisfação com o degelo Havana-Washington. A articulação entre a pacificação de seu país e esta reaproximação é inegável.
Finalmente, no plano global, a presença de Cuba ganhou novo reconhecimento nos anos recentes em razão de seu ativismo na cooperação sul-sul e especialmente nas frentes humanitárias contra desastres.
Do apoio prestado à população da Lousiana após a devastação provocado pelo furacão Katrina à atuação no Haiti antes e depois do terremoto de 2010 -e mais recentemente nos países africanos afetados pelo vírus do ebola-, a assistência de Cuba colocou em evidência quão anacrônica se tornara a preservação de uma lógica de Guerra Fria nas relações com os Estados Unidos.
As portas de colaboração entre os dois países apenas se abrem. Nos próximos anos, americanos e cubanos vão intensificar sua colaboração certamente em varias frentes, a começar na segurança costeira de suas águas e o combate ao crime organizado em toda a área do Caribe.
MONICA HIRST é professora titular da Universidade Nacional de Quilmes (Argentina) e membro do Grupo de Relações Internacionais
Fonte: Folha de S.Paulo