por: Marcelo Zero
Como de hábito, a recente reunião de cúpula do Mercosul foi recebida com certa indiferença e até hostilidade por nossa mídia tradicional. Não por falta de resultados relevantes e positivos.
No que tange à questão da Palestina, um conflito geopolítico que leva instabilidade não apenas ao Oriente Médio, mas a todo o mundo, o Mercosul apoiou as posições da nossa “diplomacia anã”, pedindo a imediata suspensão do bloqueio que afeta a população de Gaza e uma “investigação de todas as violações do direito internacional humanitário”.
Tomou-se também decisão de fazer ingressar o mais rapidamente possível a Bolívia como membro pleno do Mercosul. Haverá, é claro, resistências míopes a tal ingresso no Congresso brasileiro, como houve no caso da Venezuela, no qual a oposição brasileira encarou a participação plena daquele país no Mercosul como mera concessão política a Hugo Chávez. Pensamento estratégico não é o forte de alguns parlamentares.
Mais importante ainda foi a “declaração especial”, que manifesta “absoluto rechaço” aos chamados Fundos Abutres e expressa “solidariedade e apoio à República Argentina na busca de uma solução que não comprometa seu desenvolvimento e o bem estar de seu povo”. O Mercosul entende que essa querela jurídica, a submeter um país soberano às decisões monocráticas de um juiz de primeira instância do estado de Nova Iorque, ameaça todo o sistema financeiro internacional e inviabiliza reestruturações de dívidas de outros países. O Brasil demandará, no G-20, a adoção de uma regulação específica sobre dívidas soberanas, que não podem ficar submetidas ao arbítrio instável e mutável de juízes específicos. Certamente, não é uma atitude típica de um “anão diplomático”.
Assim sendo, o tratamento gélido da nossa mídia à Cúpula do Mercosul não pode ser explicado por supostos resultados inexpressivos. Não, não é isso. Trata-se de algo mais profundo e preocupante.
O Mercosul incomoda nossos conservadores. Sempre incomodou. Na época de sua criação, não faltaram críticas e ironias sobre a união “de rotos com esfarrapados”. Não faltaram também advertências sobre a irrelevância de um bloco que estava fadado a ser absorvido pela integração “verdadeiramente relevante”, isto é, a integração à “globalização” e às economias de “real importância e dinamismo”, como a dos EUA e a da União Europeia.
Desde esse ponto de vista conservador, a única coisa que faz sentido no Mercosul é a sua área de livre comércio. Já a união aduaneira, base do mercado comum e da construção de uma “cidadania do bloco”, seria um obstáculo à integração plena dos Estados Partes ao mercado internacional. Querem um Mercosul apenas comercial, que beneficie grandes empresas. Não um Mercosul para todos.
Por isso, na década de 1990, o ministro da Economia argentino Domingo Cavallo veio ao Brasil dizer que a tarifa externa comum (TEC), fundamento da união aduaneira e do mercado comum, era uma “tontería”. Posteriormente, em 2010, o então candidato José Serra (PSDB) manifestou todo o seu desprezo pela “integração cucaracha” e pediu o fim da TEC, pois ela, conforme sua esclarecida visão, impedia participação maior do Brasil nos “fluxos internacionais de comércio”. Agora, o candidato Aécio Neves (PSDB) renova essa tradição mercocética, pró-Alca, e pede, com notável simplicidade e candura, o fim do Mercosul ou o fim de sua união aduaneira, o que vem a ser, na verdade, a mesma coisa.
Bom, essa visão mercocética, tão cara a nossos políticos e ideólogos conservadores, se baseia em argumentos bastante “tontos”, para usar uma apropriada adjetivação “cavalliana”.
Em primeiro lugar, o Mercosul, em sua atual formatação institucional e jurídica, tem um dinamismo extraordinário.
Em 2002, exportávamos somente 4,1 bilhões de dólares para o Mercosul. Em 2011, incluindo a Venezuela no bloco, as nossas exportações saltaram para 32,4 bilhões de dólares. Isso significa um fantástico crescimento de 690%, quase oito vezes mais. Saliente-se que, no mesmo período, o crescimento das exportações mundiais, conforme os dados da Organização Mundial do Comércio, foi de “apenas” 180%. Ou seja, o crescimento das exportações intrabloco foi, no período mencionado, muito superior ao crescimento das exportações mundiais.
Esse notável dinamismo fica mais evidente quando o comparamos ao crescimento de nossas exportações para as economias supostamente mais promissoras, na visão conservadora. No período mencionado, as exportações brasileiras para os EUA aumentaram somente 68%; para a União Europeia, 240%; e, para o Japão, 340%. Por conseguinte, nenhuma economia desenvolvida tradicional chegou perto do dinamismo comercial exibido pelo Mercosul.
Ademais, esse dinamismo do Mercosul tem, para o Brasil, uma vantagem qualitativa e estratégica. É que as exportações brasileiras para o bloco são, em mais de 90%, de produtos industrializados, de alto valor agregado. Em contraste, no que tange às nossas exportações para a União Europeia, a China e os EUA, os percentuais de manufaturados são de 36%, 5% e 50%, respectivamente. Portanto, o Mercosul compensa, em parte, a nossa balança comercial negativa da indústria. Esse fato torna de difícil entendimento a oposição ao Mercosul por parte de políticos de estados industrializados, como Minas e São Paulo.
Outra grande vantagem da nossa relação econômica com o bloco diz respeito ao seu extraordinário superávit. Com efeito, entre 2003 (inclusive) e 2013, acumulamos com esse bloco “irrelevante” quase 72 bilhões de dólares de superávit. Desnecessário dizer que isso foi de vital importância para a superação da nossa histórica vulnerabilidade externa. Se o Brasil atravessa, sem grandes sobressaltos, a pior crise econômica mundial desde 1929, isso se deve, em parte considerável, ao Mercosul.
Quanto ao argumento de que o Mercosul, com sua união aduaneira, impede uma maior participação do Brasil nos “fluxos internacionais de comércio”, basta dar uma simples aferida na comparação do crescimento das nossas exportações, vis a vis o aumento das exportações mundiais. Entre 2003 e 2013, as primeiras cresceram cerca de 300%, ao passo que as segundas limitaram seu aumento a 180%.
E o Brasil viu crescer dessa forma seus fluxos comerciais porque fez, com sua nova política externa, a aposta estratégica correta: deu maior ênfase, em suas relações internacionais, à integração regional e à cooperação Sul-Sul. Com efeito, neste século, as economias emergentes e as dos países em desenvolvimento, em especial a da China, cresceram a um ritmo bem superior ao das economias desenvolvidas tradicionais, e, com isso, geraram maiores oportunidades para o Brasil. O nosso país aproveitou bem e de forma pragmática essas mudanças na geoeconomia mundial.
Persistem, entretanto, as históricas críticas ao Mercosul. Nos dias de hoje, há, porém, agravantes. O primeiro tange ao fato de que as exportações mundiais pararam de crescer a partir do segundo trimestre de 2011, o que vem afetando nosso desempenho exportador. O segundo relaciona-se ao fato de que parte da nossa indústria, sua parte mais internacionalizada, quer celebrar rapidamente acordos de livre comércio com a União Europeia e os EUA, de forma a participar mais das “cadeias produtivas globais”, outra denominação para a antiga “globalização”.
Ora, a celebração desses acordos sem as cautelas necessárias e com a ruptura da união aduaneira seria um grave tiro no pé. Além da gritante assimetria entre os países, tais tratados contêm também outra ameaça: cláusulas relativas à propriedade intelectual, compras governamentais, regime de investimentos e a abertura dos serviços, as quais poderiam comprometer a capacidade do Brasil de implantar políticas de desenvolvimento.
O exemplo do México, país que celebrou mais de 30 acordos de livre comércio, inclusive com os EUA e Canadá (Nafta) e a União Europeia, é ilustrativo. Além do óbvio aumento da dependência mexicana em relação aos EUA, o livre-cambismo quimérico conduziu também a um crescimento econômico bem mais baixo que o do Brasil e a um aumento da pobreza. Nos primeiros 10 anos deste século, o PIB per capita (PPP) do México cresceu apenas 12%, ao passo que o do Brasil cresceu 28%. Hoje em dia, aquele país tem 51% da sua população abaixo da linha da pobreza, enquanto que o Brasil conseguiu reduzir essa porcentagem para 15,9%.
Quem fez a melhor aposta?
De nada adianta querer “participar mais das cadeias produtivas globais” se o fizermos, como faz o México, na condição essencial de supridores de insumos básicos. De nada adianta “subir no trem da História” se o vagão for de segunda classe.
Portanto, a solução para o Mercosul não é menos Mercosul, como querem alguns mercocéticos, mas sim mais Mercosul, com união aduaneira, livre circulação de trabalhadores, instituições supranacionais, o enfrentamento das assimetrias internas e a instituição de uma cidadania comum.