Roberto Amaral*

“O Brasil está fadado a ser, por tempo indefinido, um satélite dos Estados Unidos”.

Raul Fernandes, ministro das Relações Exteriores do Brasil (26/8/1954 a 12/11/1955), governo Café Filho.

 

INTRODUÇÃO

 

A política socialista para a América do Sul deve assentar-se em quatro pilastras.

Primeira: a continuidade da Política Externa Independente, considerando-a como uma política de Estado.

Segunda:  a formulação de uma  política estratégica para o Hemisfério Sul com ênfase  no  projeto de integração da América do Sul; seu pressuposto é o entendimento segundo o qual nenhum de nossos países terá futuro se, antes, não construirmos, coletivamente, a integração regional, tanto econômica, quanto política e cultural, o que significa caminhar para além dos meros acordos aduaneiros.

Terceira: o projeto brasileiro de potência regional depende de sua liderança no sub-continente. Só assim poderá exercer o papel de ator na cena internacional. Por consequência, o Brasil, em um  governo de  socialistas, não pode recusar seu dever de impulsionar a integração. Se uma crítica pode ser dirigida ao atual governo, é exatamente a de não haver investido nessa integração, como deveria.

Quarta: a América do Sul – tanto quanto a África Oriental – constituem o espaço privilegiado de expansão do capitalismo brasileiro.

 

1. Da dependência à ‘política externa independente’

 

Para efeito de nossas reflexões, é fundamental lembrar que a política externa independente (que apresenta hoje como eixo a opção integracionista) tem já história entre nós. Não é, portanto, obra exclusiva desta ou daquela administração presidencial, pois, trata-se de construção coletiva, da qual também participaram importantes setores da sociedade brasileira.  Afirmo mais: já foi elevada ao patamar de política de Estado.

A essa demonstração se dedicam os próximos parágrafos.

Na República pós II Guerra Mundial, e ainda sob o império da Guerra Fria, isto é, nos termos ditados pelos EUA, a Operação Pan-Americana-OPA (1958), iniciativa de JK (1956-1961), é a primeira experiência brasileira de protagonismo na esfera internacional; e, por isso mesmo, apesar de suas limitações, foi combatida internamente pelas forças conservadoras, as mesmas que combateriam, então com o apelo ao ‘anti-comunismo’, os primeiros movimentos visando à constituição do que (nos anos 60) ficaria grafado como ‘Política Externa Independente’- PEI. Se muito de sua formulação doutrinária pode ser atribuído ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros-ISEB (1955/1964),  destacando-se os textos de Hélio Jaguaribe e outros, a implantação da PEI é obra iniciada na meteórica presidência Jânio Quadros (1961)[1], levada a cabo pelo seu ministro Afonso Arinos (MRE). Santiago Dantas, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Araújo Costa, dar-lhe-iam continuidade no governo João Goulart, tanto na fase parlamentarista quanto no período presidencialista.

A PEI, fortemente hostilizada internamente pela grande imprensa e, no Congresso, pela forças conservadoras,  é abandonada após o golpe militar de 1964, quando impera a doutrina segunda a qual “o que é bom para os EUA é bom para o Brasil’, nesses termos resumida pelo então embaixador do Brasil em Washington, gal. Juraci Magalhães (1966-1967)[2]. Mas a doutrina do ‘alinhamento automático’ começa a ser revertida, ainda sob a ditadura militar, ao tempo de Magalhães Pinto, ministro de Costa e Silva. Médici (ministro Gibson Barbosa) ampliou o mar territorial brasileiro para 200 milhas. A autonomia cresce nas administrações Geisel (ministro Azeredo da Silveira) e Figueiredo (ministro Saraiva Guerreiro), quando é batizada de ‘Pragmatismo responsável’. Geisel (1974-1979) chega a romper o acordo militar Brasil-EUA, ao reagir às ameaças da Casa Branca insatisfeita com o acordo nuclear firmado pelo Brasil com a Alemanha (1975). Nesse mesmo ano, foi aprovado o ainda hoje claudicante Programa Nuclear Brasileiro, que previa a instalação de uma usina de enriquecimento de urânio, e várias centrais termonucleares. Geisel protagonizou ainda o imediato reconhecimento das colônias portuguesas recém libertadas (Angola[3], Cabo Verde, Moçambique e Timor) e fez histórica viagem à China. Figueiredo postou-se ao lado da Argentina na guerra das Malvinas (1982). Sarney (1985-1990, ministros Setúbal e Sodré) teve o mérito de elevar  nossa relação com a Argentina a um novo patamar, erigindo-a como parceira e não mais como “inimiga”, o que abriu caminho para a criação do Mercosul no governo Collor (1991).

A PEI foi abandonada nos 8 anos de FHC (1995-2002), quando, lamentavelmente, volvemos ao incondicional alinhamento aos interesses dos EUA.

A retomada dessa política, que à independência associa a prioridade dos interesses nacionais, inclusive na sensível área de segurança, é um dos marcos do Governo Lula (2003/2011), conduzida pela tríade Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores), Samuel P. Guimarães (secretário-geral do MRE) e Marco Aurélio Garcia (assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais). Seu diferencial relativamente ao período Dilma (ministros Antonio Patriota e Luiz Alberto Figueiredo)  é representado por maior protagonismo no plano internacional, onde o Brasil passou a perseguir  espaço de ator.

 

2. A Integração da América do Sul

 

A integração do nosso continente precisa ser vista segundo uma estratégia mais ampla que remete aos nossos interesses econômicos, geopolíticos e estratégicos na América Latina, com o merecido destaque requerido pela política brasileira para o Atlântico Sul – do qual trataremos mais adiante.

O fortalecimento dos nossos instrumentos de integração corresponde a uma necessidade histórica, e este é o momento de nossos países, juntos, exercerem maior influência mundial, relativizando o poder de potências extra-regionais, useiras e vezeiras em intervir em nossas políticas (interna e externa), em nossa economia, em nossa institucionalidade, inclusive promovendo golpes de Estado. Não será acaso o fato de, hoje, todos os governos da América do Sul haverem sido eleitos nos termos mais rigorosos da democracia representativa, em contraste com aqueles anos de maior presença imperial, quando o continente foi juncado por golpes de Estado contra governos democraticamente eleitos, abrindo caminho para ditaduras luciferinas: Brasil, Uruguai, Bolívia, Chile, Argentina… A influência das potências centrais, especialmente dos EUA, dá-se, também, e de forma preponderante, no plano doutrinário-ideológico, mediante o uso político dos meios de comunicação em geral, rádio, jornais, televisão, cinema…

 

2.1. O Mercosul

 

O Mercado Comum do Sul – Mercosul (1991)[4], é iniciativa importantíssima para o desenvolvimento regional e a integração do sub-continente, projeto do maior interesse do Brasil, dificultado  pelas assimetrias que separam os países do bloco. O desenvolvimento de todos os países  da América do Sul é, assim,  fundamental para nossos projetos geoestratégicos e, até mesmo, para a expansão do capitalismo brasileiro – que tem a região como seu espaço o mais favorável para sua presença.

Para comprovar essa afirmação, basta considerar que o crescimento do comércio brasileiro com o bloco é superior ao que temos com o resto do mundo (como demonstra a tabela abaixo). Entre 1991 e 2012, o comércio mundial cresceu 431%; o comércio do Brasil com o mundo cresceu 784% e o comércio do Brasil com o MERCOSUL cresceu 968%.

Evolução do saldo comercial brasileiro 1991-2013 (US$ milhões)

PPAÍS

11991

22002

22009

22010

22011

22012

22013

Mercosul com Venezuela 1 -2.127 5.750 9.003 11.802 7.608 9.083
EEUA 1.576 5.090 – 4.430 – 7.737 – 8.165 – 5.661 – 11.349
UUE 5.203 2.141 4.950 4.172 6.708 1.386 – 2.975
Mundo 10.579 13.195 25.272 20.146 29.792 19.394 2.551

 

Acrescente-se que nossas exportações de produtos industrializados entre 1991 e 2013 cresceram 5,5 vezes para o mundo inteiro, e 10,7 vezes para o Mercosul, hoje, o destino principal de nossas exportações com valor agregado.

Esses números revelam a extrema inconveniência da política de abertura à União Europeia-UE, pleiteada pelos setores  mais conservadores,  resistentes ao esforço de salvar a indústria brasileira.  Relembremos que o MERCOSUL é uma união aduaneira, do que decorre a necessidade de seus membros serem obrigados a praticar uma tarifa externa comum, donde os países membros só poderem concluir acordos comerciais de maneira conjunta. Veremos mais adiante o que isso significa.

Outro feito inquestionável é o sepultamento, de vez, a partir da criação do  Mercosul, da artificial rivalidade e competição mutuamente destrutiva entre Brasil e Argentina (lamentavelmente ainda sobrevivente em setores ponderáveis da grande imprensa brasileira), fomentada desde o Império pelas grandes potências. A Argentina, que nos anos 90 tinha uma pequena participação nas exportações brasileiras (pouco mais de 4,135 bilhões de dólares), tornou-se, em 2013, o terceiro destino de nossas exportações  (19, 615 bilhões de dólares)[5]. Situa-se apenas após China (que absorve 19% do total de nossas exportações) e EUA, com uma diferença radical: enquanto para esses países, a potência asiática em destaque, exportamos basicamente commodities, para a Argentina, como para os demais países do bloco, nossas exportações são predominantemente de manufaturados.

E isso não é pouco.

 

2.2. UNASUL e CELAC

 

Complementando o esforço sul-americano de promover a autonomia política, a União dos Estados Sul-Americanos – UNASUL (2008) é um bloco que reúne as doze nações da América do Sul (desconsiderada a Guiana Francesa) com o intuito de fortalecer suas relações políticas, comerciais e culturais. A partir da união de dois blocos econômicos da América do Sul (o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações) e da criação de conselhos ministeriais que atuam em diferentes áreas, o bloco tem logrado fazer com que o sub-continente cuide ele mesmo de seus problemas, sem curatelas, e sem intervenções forâneas. Isso é um avanço.

Criada por e para sul-americanos, a UNASUL já disse a que veio. Sua pronta atuação impediu a deposição do presidente Evo Morales (Bolívia, 2008), evitou o conflito entre Colômbia e Venezuela (2008) e, presentemente, abriu espaço para o diálogo entre as partes envolvidas na crise venezuelana.

A integração compreende, igualmente, a complementaridade industrial e a política de defesa regional. Nesse sentido, registro a criação – proposta brasileira – do Conselho de Defesa Sul-Americano – CDS (2008), reunindo todos os ministros de defesa dos países integrantes da UNASUL e a proposta, tratada como prioridade, de fortalecer a base industrial de defesa com projetos de interesse e desenvolvimento regional.

A Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos-CELAC (2010), com seus 33 estados-membros e o objetivo de projetar a região globalmente, tem origem na “Declaração da Cúpula da Unidade”, adotada pelos Chefes de Estado e de Governo da América Latina e do Caribe, durante reunião realizada na Riviera Maya, no México. Os países ali reunidos consentiram em criar um novo mecanismo de concertação política e de integração, com vistas a contribuir para a adoção e a implementação do diálogo político e de projetos de cooperação. A CELAC caminha para substituir a OEA, arcaico veículo de um pan-americanismo imperial.   Marco desta mudança é  a recente  plenária da CELAC haver-se realizado em Havana, Cuba, desafio aberto à arrogância do Império, patrocinador de bloqueio econômico à ilha, que já dura mais de meio século.

 

 

3. O eventual acordo Mercosul/União Europeia

Esse modelo de desenvolvimento, que tem como eixo a integração sul-americana, vê-se presentemente ameaçado pela recente retomada das negociações do acordo Mercosul/União Europeia.

Explico.

A inconveniência de uma abertura à UE é demonstrada mediante simples exercício de lógica formal, pois o objetivo evidente é a redução tarifária de seus serviços e produtos e a abertura de novos e maiores mercados, na medida em que nossos países abrem, sem resguardos, seus mercados internos. A falsa livre concorrência pretende pôr na mesma competição  a raposa e a galinha, pois teremos negociando, de  um lado, países desenvolvidos e industrializados (Alemanha à frente), sedes de multinacionais superiormente avançadas tecnologicamente, com alta escala de produção e produtividade,  e, de outro, países em desenvolvimento – alguns de considerável população, território e economia, ricos em recursos naturais e energéticos (como é o caso de Brasil, Argentina e Venezuela) – e outros menores, mais pobres, com mínimo desenvolvimento industrial  (Paraguai, Uruguai e Bolívia – este último ainda carente de adesão formal ao Mercosul).  O traço comum é a baixa competitividade dos produtos industrializados, porque somos competitivos apenas na exportação de produtos sem valor agregado, recursos naturais (minérios) e grãos, mesmo assim enfrentando políticas de cotas, restrições sanitárias artificiais, embargos aduaneiros, taxas e sobretaxas, e a nova onda de queda dos preços dos produtos primários no mercado internacional, controlado pelas potencias importadoras[6].  Ou seja, porteiras escancaradas (livre comércio) para a concorrência ‘livre’ entre desiguais. Tal política simplesmente aprofundaria os atuais e já demonstrados desequilíbrios de nossa pauta de exportações: 80% de produtos industriais exportados pela UE ao Mercosul, contra semelhante percentual de commodities importado de nosso mercado. Ademais, aquilo com que sonha o agronegócio – tarifas mais favoráveis e aumento de cotas – é sonho de uma noite de verão, pois o tema agrícola, na Europa, é tratado como tabu donde a impossibilidade política de qualquer abertura realmente compensatória[7].

Em qualquer hipótese, porém, colocar nossa indústria numa disputa comercial em pé de igualdade com a produção dos desenvolvidos,  levaria ao seu inevitável desmantelamento e destruição da cadeia produtiva.

Para o Brasil, os danos seriam dramáticos, certamente ainda maiores do que aqueles que afligiriam nossos vizinhos, pois estaria adicionalmente condenado a enfrentar a concorrência com seus parceiros e vizinhos:  se o Mercosul celebrar acordo com a UE, os países menores, aqueles de opção (contingente ou não) mais comercial do que industrial, inevitavelmente transformar-se-ão em intermediários, importando produtos industriais com tarifa mínima, ou zero, e vendendo-os, assim, a preços baixos dentro do próprio Mercosul, portanto, ao Brasil. Que será feito, mais uma vez, de nossa indústria, que já vem mal das pernas, atacada ora pela política de câmbio, ora pelo desestímulo ao investimento, ora pela espiral dos juros,  e, mais fortemente, pela incapacidade brasileira de estabelecer política industrial autônoma e de proteger segmentos da produção nacional[8]?

Há mais fatores certificadores da justeza da política de não permitir que os membros do Mercosul celebrem acordos comerciais individualmente. Um deles é que os países sul-americanos que o fizeram viram transformarem-se em déficits os saldos comerciais que tinham com seus parceiros, como se vê no quadro abaixo:

 

Comportamento do comércio após TLC com EUA

Comércio entre EUA e países sul-americanos com os quais há TLC

Crescimento das importações provenientes dos EUA

Crescimento das exportações para os EUA

Ano de vigência do TLC

Chile 596% (2012/2003) 148% (2012/2003) 2004
Colômbia 14,5% (2012/2011) 6,6% (2012/2011) 2012
Peru   89,79% (2012/2009) 52,3% (2012/2009) 2009

 

4. A grave lição ensejada pelo NAFTA

 

Firmado em 1992 (e em vigor desde 1994), o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio – NAFTA pretendia ser instrumento de integração das economias dos EUA, Canadá e México, mediante a eliminação de barreiras alfandegárias e a criação de regras de proteção comerciais em comum. O tratado foi estabelecido como resposta à União Europeia e à concorrência representada pela economia japonesa, hoje em grave crise. A exemplo de outros blocos dessa natureza, o objetivo do NAFTA era ajustar a economia dos países membros para ganhar competitividade em um cenário de globalização econômica.

A entrada do México no bloco permitiria – eis o pretextado –  de um lado, que empresas norte-americanas e canadenses se instalassem no México, onde a mão de obra é mais barata (de novo e sempre a sobre-exploração da mão-de-obra dos países mais pobres), e, de outro, que o México fosse beneficiado com a geração de empregos e aumentasse sua produção industrial e o volume das exportações. Nada disso, porém, para o México, transformou-se em realidade. É o que se demonstra a seguir.

Jorge Castañeda é autor insuspeitíssimo. Ex-ministro das relações exteriores do México (2000-2003) no governo conservador de Vicente Fox, ele próprio um cientista político conservador (transitando da esquerda para a direita nos termos de uma certa tradição…), é atualmente professor de políticas e estudos latino-americanos e caribenhos na Universidade de Nova York. É ele quem nos informa que o crescimento das exportações mexicanas se deu antes de o pais aderir ao NAFTA. Mas no período de 1994 (quando as regras do NAFTA entraram em vigor) até aqui, a renda per capita do México cresceu apenas cerca de 1,2% ao ano, ou seja, bem abaixo dos índices médios alcançados por Brasil, Chile, Colômbia, Uruguai e Peru, e da média dos emergentes.  De outra parte, ao invés de ser contida, como prometido, a emigração cresceu de 6,2 milhões, em 1994, para 12 milhões, em 2013. O México, que aspirava a exportar mercadorias, continuou mesmo foi exportando sua gente para o sub-emprego nos EUA. Apesar do NAFTA, o México também não logrou atrair o capital estrangeiro. Ainda hoje, recebe menos investimentos do que Brasil, Chile, Colômbia e Peru. Por outro lado, o crescimento econômico dos países latino-americanos que não celebraram acordos de livre comércio com os EUA foi maior do que o crescimento mexicano. O NAFTA, assim, diz Castañeda, “não cumpriu com suas promessas econômicas[9]”.

Após o fracasso que o NAFTA representou para o México, falar em acordos de livre comércio com as grandes potencias como favoráveis aos mais pobres, é mais que uma falácia. É crime de lesa-pátria.

 

5. O Brasil no mundo

 

O Brasil é a sexta economia do mundo, quinto território do planeta (lembremos: 8.500 mil km2), a quinta massa populacional com mais de 200 milhões de habitantes, um litoral de quase 8 mil km, uma fronteira terrestre com cerca de 17 mil km, limítrofe com dez países e em paz com todos eles, é 50% do território e da produção da América do Sul. Mas, tudo isso ainda não é tudo, pois é também o maior PIB regional e a maior renda per capita e o maior parque industrial da região.

Para o bem e para o mal possuímos as principais carências presentes e futuras do mundo. Possuímos energia: fontes fósseis (petróleo e carvão), a fonte nuclear, as fontes hidráulicas, e as fontes renováveis, como o etanol, as energias solar e eólica e a biomassa. Possuímos a maior reserva de água doce do mundo e, igualmente, a maior biodiversidade do planeta, em mundo caracterizado pela crescente disputa de recursos naturais, progressivamente mais escassos. Somos um dos maiores produtores de alimentos e grãos e de outras commodities de que carece o mundo.

Se considerarmos as estimativas que cercam o pré-sal (407 bilhões de barris) e a elas somarmos as reservas já comprovadas da Venezuela (107,1 bilhões de barris), teremos na América do Sul (e no âmbito do Mercosul) a maior reserva de petróleo do mundo. Somos, o Brasil,  o maior produtor de nióbio (92% do total mundial) e possuímos a sexta reserva de urânio do planeta, com apenas 30% de nosso território prospetado.  E sabemos enriquecê-lo. E dominamos a tecnologia da fissão.  Temos a ‘Amazônia azul[10]’, imensa região marítima contígua à costa brasileira, cujos potenciais estratégicos e econômicos assemelham-se aos da Amazônia verde.

E estamos às portas do Atlântico Sul, crucial para o Brasil. O Atlântico Sul é a nossa casa, nosso caminho para o mundo, nossa principal rota de negócios, onde estamos face a face com 23 países da África ocidental e são notórias nossas condições privilegiadas de atuação política. Trata-se de extensa área de elevadíssimo potencial energético (petróleo), como atestam o Golfo da Guiné (100 bilhões de barris), as reservas da Nigéria, de Angola, do Congo, do Gabão, de São Tomé e Príncipe, além das grandes reservas de gás da Namíbia e de carvão na África do Sul. 

Não podemos, pois, renunciar a uma política externa independente e ativa.

Para o centro hegemônico, porém,  nosso destino traçado é o de grande reserva alimentar, eternos fornecedores de commodities e importadores de produtos manufaturados. No presente e no futuro, como no passado. Assim, é simplesmente ‘lógico’  exportar para a China minério de ferro e dela importar trilhos e trens, e do Japão equipamentos eletrônicos. É incompreensível para o sistema internacional que Brasil e uma América do Sul unificada desenvolvam política externa autóctone, ditada pelos seus próprios interesses, soberana portanto, ainda que nos termos da globalização, de caráter econômico, político e militar. E, mais inaceitável ainda, é que aspirem a exercer protagonismo no palco internacional.

Essa política voltada para a América do Sul (repita-se à saciedade, sem esquecer o mundo e nossas relações com a Europa e os EUA!) atende a claros objetivos estratégicos, como defendido neste texto. Da mesma forma, nossos interesses no Atlântico Sul devem ser buscados a partir da consciência de que esse espaço não permanecerá sempre aberto, à nossa disposição. A China, menos hesitante do que nós, já está deslocando interesses brasileiros na África, inundando-a de capital  e exportando seus serviços e, até, mão de obra. A Inglaterra ocupa colonialmente ilhas ao leste e ao sul e, não à toa, os EUA reativaram sua IV Frota.

Nossa presença no Caribe, mais especificamente em Cuba, de quem já somos o terceiro parceiro comercial, logo após Venezuela e China, também é crucial. Estamos nos referindo à participação brasileira na construção do Porto de Mariel, graças a financiamentos do BNDES[11].  A ilha pode ser utilizada como nossa ponte para a região e a América Central, e o porto de Mariel, situado a poucos quilômetros dos EUA, é futuro hub para nosso comércio marítimo. Na verdade, estamos nos valendo do isolamento imposto à Ilha e ocupando espaços deixados vazios pela estreiteza da política dos EUA. Largamos na frente na relação comercial com país que promove irreversível política de abertura ao mercado, da qual podemos ser grandes beneficiários. E ainda estamos ajudando um povo pobre a superar o subdesenvolvimento. E estamos ajudando a indústria brasileira…

Nossos esforços de integração partem da compreensão segundo a qual, como já foi enunciado,  a América do Sul, principalmente, e a África Ocidental, são nada mais, nada menos, do que o espaço privilegiado de expansão do capitalismo brasileiro.  Espaço no qual, aliás, grandes empresas brasileiras já atuam.

 

6. As relações Sul-Sul

 

Nosso projeto fundamental para as próximas décadas deve ser ultrapassar a condição periférica; sua estratégia é o estreitamento da relação Sul-Sul (África, Oriente Médio e Próximo e Ásia), tendo como ponto de partida o subcontinente, onde desfrutamos de posição destacada, e nele o Mercosul. Sem ilusões. As grandes potências, EUA à frente,  tudo farão para impedir a unidade da America do Sul, e a consolidação de blocos econômicos (como o Mercosul) ou políticos (como a UNASUL e a CELAC) que lhes possam oferecer resistência.

Prioridade de interesses não importa, necessariamente, exclusão. Nossas relações com a Europa remontam à Colônia, são profundas do ponto de vista cultural. Nossas relações com os EUA são igualmente tradicionais e densas, principalmente nas áreas industrial e tecnológica e do entretenimento. Também nos EUA estão os cursos de pós-graduação de escolha da maioria de nossos estudantes universitários, a fonte do cinema que assistimos, da programação televisiva a que temos acesso, da literatura que lemos, da informação disponível; lá são formados nossos cientistas, nossos economistas, nossos executivos.

No  Mercosul, nosso principal parceiro é a Argentina. Os dois países representam 68% do território da America do Sul, 62% da população, 68% do PIB e 70% da produção industrial. Juntos, os dois países mais ricos do bloco, mais a Venezuela, poderão enfrentar as assimetrias de toda ordem que nos separam, em primeiro plano, de Uruguai e Paraguai e, no segundo plano, de Equador e Bolívia. Estamos imbricados. Se o crescimento de um favorece o outro, o inverso é igualmente verdadeiro.

Do ponto de vista estratégico, nossa prioridade é o Atlântico Sul, onde nos encontramos com um litoral de cerca de 8 mil km, abrigando 463 cidades, 124 portos marítimos, cuja rede movimenta cerca de 700 milhões de toneladas e responde por 90% das exportações brasileiras; nele se encontra o pré-sal. A partir daí, cabe aprofundar o relacionamento com todos os países africanos, a saber, sem nos limitarmos aos países da lusofonia, pois nossas relações estratégicas  não podem esquecer nem a África do Sul nem a Nigéria.

Evidentemente que, com quanto mais países tivermos relações comerciais mutuamente proveitosas, maiores serão nossas possibilidades de apoios nos pleitos internacionais. O novo cenário de atuação da diplomacia brasileira é exemplificado com a eleição do embaixador Roberto Azevêdo para  a diretoria-geral da OMC.

De certa forma, podemos afirmar que o objetivo continental foi antecipado pela Constituinte de 1988, ao consagrar (art. 4º da Constituição):

 

“A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da America Latina visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

 

Seja o que for, o ‘Projeto Nacional’ brasileiro será  tributário e servidor do papel que estivermos dispostos a desempenhar na América do Sul e no Hemisfério, e sua articulação considerará a consciência do que somos, e a decisão do que queremos ser.

Para além do Hemisfério Sul, é do nosso interesse fortalecer (i) o grupo dos BRICS e nele estreitar nossas relações comerciais e políticas com a China (que já é nosso principal parceiro econômico e com quem já desenvolvemos, com sucesso, programas de cooperação tecnológica) e com a Rússia e (ii) o IBAS, onde Índia e  África do Sul são nossos parceiros.

Queremos ser um modelo alternativo de desenvolvimento auto-sustentável em contraste com as grandes potências industrias de hoje, predadoras no passado, predadoras e perdulárias no presente; pretendemos ser um projeto democrático, solidário, progressista; uma sociedade harmônica e igualitária, aberta ao convívio amistoso de todas as crenças e etnias, amante da paz e da liberdade. Uma civilização que combaterá o intervencionismo porque dele jamais lançará mão.

 

7. Princípios de uma política externa de um governo de socialistas

 

 

 

 

A Política Externa Independente buscava o interesse do Brasil, visto como um país que aspira ao desenvolvimento e à emancipação econômica e à conciliação histórica entre o regime democrático representativo e uma reforma social capaz de suprimir a opressão da classe trabalhadora pela classe operária.

San Thiago Dantas, Ministro das Relações Exteriores (1961-1962)

 

A política exterior brasileira se torna, assim,  a expressão internacional da luta do povo brasileiro pelo desenvolvimento.

Evandro Lins e Silva, fundador do PSB, e Ministro das Relações Exteriores (1963)

 

 

O Brasil no mundo

 

A política externa de um país governado por dirigentes socialistas, respeitadas suas circunstâncias geoestratégicas, deverá estar subordinada  a princípios inegociáveis, pois remontam  à própria construção doutrinária do socialismo e sua história:

1. o desenvolvimento econômico-social  tendo por objeto a erradicação da pobreza em nosso pais, e da fome em todo o mundo;

2.  a construção da Paz, cujo ponto de partida é a erradicação de todos os arsenais atômicos e armas de destruição em massa;

3. a soberania dos Estados, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a negociação como princípio único para a soluções dos conflitos entre Estados, países e nações;

4. apoio à emancipação dos territórios ainda não autônomos;

5. ampliação dos mercados externos para a produção brasileira;

6. combate a toda e qualquer manifestação  de preconceito racial;

O princípio da não-intervenção é um dos fundamentos da autodeterminação e esta é princípio irremovível da paz mundial, o objetivo central da diplomacia brasileira; a Paz depende do diálogo que rejeita posições imperialistas; a rejeição do dialogo implica a renúncia ao entendimento e, portanto, renúncia à paz, e chamamento ao confronto.

O princípio da não-intervenção é o fundamento da autodeterminação e, sem esta, a paz mundial não sobrevive.

Lutar pelo desarmamento – amplo, geral e irrestrito, ou seja, desarmamento do qual participem as potencias nucleares- é uma das formas mais consequentes de  luta pela paz;

Não há justiça social sem emancipação econômica, fruto do desenvolvimento sem desigualdade.

 

O Brasil na América do Sul

 

A política externa brasileira priorizará nossa presença no Hemisfério Sul  com destaque para a o subcontinente; conjugando os princípios gerais do socialismo com as linhas predominantes de nossa diplomacia,  a política dos socialistas estará comprometida com os seguintes pontos cardeais:

1. prioridade para a ação coletiva no enfrentamento de todos os desafios;

2. defesa do processo eleitoral como instrumento de conquista,  e sustentação de  governos; defesa da democracia representativa e, legitimando-a,  da autenticidade da soberania popular; a democracia representativa transitando para a democracia participativa;

2. defesa dos recursos naturais, mediante sua exploração e beneficiamento;

  1. 3.  proteção das economias  nacionais,  promoção do desenvolvimento com distribuição de renda como conditio zine qua non  para a superação das desigualdades sociais e construção futura de uma sociedade sem classes; para tal, o Brasil concorrerá para o fortalecimento do Mercosul, da UNASUL e da CELAC.

4. consolidação da doutrina da defesa coletiva; o desenvolvimento em comum  de polos de ciência e tecnologia.

A democracia carece de política de defesa, e o papel das Forças Armadas brasileiras de hoje deve ser distinto daquele da plúmbea noite da ditadura. Essa é a exigência do Estado democrático que, aos trancos e barrancos, estamos construindo e consolidando.

O compromisso do Estado brasileiro  deverá ser o de lutar  pela paz e a não-intervenção  nos assuntos internos de qualquer país, e, em particular, a intervenção estrangeira no Hemisfério.

A não-intervenção, garantia da autodeterminação, encontra na Carta das Nações Unidas (artigos 1º e 2º do Capítulo 1) seu abono moral, mas dele não deriva qualquer efetividade,  posto que esta  depende do poder de cada Estado garanti-la, enquanto as grandes potências, governadas pelos seus interesses estratégicos –geopolíticos, econômicos, políticos, ideológicos e, finalmente, militares— não abrem mão do poder (auto-outorgado pela assimetria militar) de intervir nos Estados menores para fazer prevalecer sua política, a saber, o predomínio de seus interesses econômicos, de sua língua, de sua cultura, de sua forma de organizar-se, de seus valores e de sua visão de mundo, muitas vezes ao preço da destruição da economia e do Estado vítima, ao preço do assassinato de milhares ou milhões de civis, de que são exemplo as sempre lembradas invasões recentes dos EUA – os Bálcãs, Afeganistão, Iraque, Líbia, a alimentação da guerra civil na Síria e do conflito Israel/Palestina—,  e a invasão do Mali (2013) pela França.

 

Conclusão

 

A inserção do Brasil em uma ordem internacional complexa, globalizada e minada por interesses que não dialogam entre si, deve estar condicionada à opção pelo fortalecimento de nossos próprios instrumentos de cooperação e pela integração sul-americana. Sem esforço coletivo não há oportunidade de desenvolvimento para qualquer país da América do Sul, nem mesmo para o Brasil, considerando toda a sua dimensão e importância econômica, política e social. Beneficiário dessa integração, o Brasil não poderá esquecer que política externa e projeção de interesses têm preço: o custo é a ação para diminuir as assimetrias regionais, em coerência com o papel, a inserção e a influência que pretende exercer no mundo.

 



*O Autor agradece a colaboração de Pedro Celestino, Lygia Di Moura e Pedro Amaral.

[1] A política externa independente do presidente Jânio Quadros, jamais cogitada por JK, compreendia, também, aproximação com os então países ‘não alinhados’ na Guerra Fria, como Egito (Nasser), Índia (Nehru) e Iugoslávia (Tito)  e a retomada das relações diplomáticas com os países do Leste.

[2] Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.

[3] Destaque-se o notável e corajoso trabalho do embaixador Ovídio Melo.

[4] Em sua formação original, o MERCOSUL era composto apenas por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Em 2012, a Venezuela aderiu ao bloco. Como membros associados estão Bolívia e Chile (1996), Peru (2003) e Colômbia e Equador (2004). O bloco ainda conta com a participação da Nova Zelândia e do México como países observadores.

[5] Fonte: MDIC.

[6] As multinacionais das grandes potências beneficiam-se, ademais, de sua produção descentralizada cujo objetivo é a sobre-exploração da mão-de-obra dos países mais pobres e não-industrializados – Vietnã, Bangladesh, Malásia como exemplo-  de sorte a tornar impraticável a concorrência da produção de manufaturados de países como Brasil, Argentina e México.

[7] A União Europeia, um verdadeiro novo Estado descendente do Tratado de Roma (1997), tem instituições definidas: ao lado da moeda única (EURO), do Banco Central Europeu, a política agrícola comum e a tarifa externa comum, as condições de concorrência etc.

[8] Para mais informações, vide entrevista de Wilson Cano para o Valor Econômico (9/4/14),  e reproduzida em meu sitio www.ramaral.org.

[9] CASTAÑEDA, Jorge. ‘NAFTA’s Mixed Record – the view from Mexico’. In Foreign Affairs. January/February. 2014  P.134-141. Sua versão em português é publicada neste número de C&p.

[10] Um território pouco explorado, com a mesma extensão de área da Amazônia Legal, rico em biodiversidade e recursos naturais, vastas reservas de ouro, diamante, fosfatos, cobalto, entre outras riquezas e que inclui o mar territorial e a Zona Econômica Exclusiva da plataforma continental jurídica brasileira, somando 200 milhas a partir da costa. São 3,5 milhões de quilômetros quadrados de área em águas internacionais, que seriam extensão da plataforma continental brasileira. Fonte: http://naval.com.br/blog/2011/09/26/brasil-reivindica-extensao-maior-da-amazonia-azul/

[11] A maior parte do financiamento do BNDES foi gasta no Brasil, o que proporcionou a exportação de bens e serviços de cerca de 400 empresas, mais a construtora do porto, que é brasileira. A estimativa é que a obra tenha gerado, apenas no Brasil, cerca de 156 mil empregos.