João Bernardo Kappen
Publicado no Globo em 19/5/2014
Negar a quem está em regime semiaberto a possibilidade de trabalhar fora dos presídios é negar lógica da execução das penas privativas de liberdade
Há um fato inegável: os presos famosos do presídio da Papuda estão ajudando a mostrar o nível de degradação moral e material do sistema carcerário e jurídico brasileiro. Não para nós, habitués de um mundo penal em ruínas, mas para os alienígenas obrigados a se confrontar diariamente com as manchetes dos jornais que estampam os suplícios daqueles que agora fazem parte da massa de encarcerados. Sempre soubemos que o cumprimento das penas impostas aos condenados no caso chamado de mensalão seria publicamente fiscalizado. No entanto, havia quem dissesse que, uma vez condenados, os réus não ficariam presos por muito tempo. Mas não sabiam eles que as execuções das penas impostas aos dois Josés, o Dirceu e o Genoino — estes que foram promovidos ao posto de inimigos públicos do país —, seriam, senão as mais, certamente duas das mais fiscalizadas da história penal brasileira. Não consigo me lembrar de um dia sequer em que os jornais não tenham noticiado a situação da execução penal de Dirceu e Genoino, desde o momento em que eles foram presos. Faz lembrar Graciliano Ramos que, sentindo na própria carne a perversidade do sistema penal, lançou em suas “Memórias do cárcere” que “certos crimes não desaparecem nunca; um infeliz ajusta contas com o juiz e fica sujeito ao arbítrio policial. Inteiramente impossível a reabilitação, pois não o deixam em paz”.
Há certa incredulidade de parte da comunidade jurídica e, em especial, dos advogados criminais com a quantidade de erros graves registrados no julgamento do chamado mensalão. Agora, são os erros na execução da pena que representam o motivo de maior preocupação, já que se sabe que quando o exemplo vem de cima, nesse caso da Suprema Corte, os de baixo deitam e rolam. Uma decisão de um ministro do Supremo Tribunal Federal proibindo o trabalho externo dos presos que cumprem pena em regime prisional semiaberto sem o cumprimento de um sexto da pena tem a potencialidade de causar uma verdadeira carnificina no sistema carcerário, pois avaliza decisões no mesmo sentido nas instâncias judiciais inferiores, o que teria como consequência prática o fim do regime prisional semiaberto. Por quê? Uma das razões reside no fato de não existirem colônias agrícolas, industriais ou estabelecimentos similares onde, como determina a Lei de Execução Penal, os presos em regime semiaberto deveriam ficar. E, com isso, milhares de presos que estão atualmente cumprindo pena em regime semiaberto e trabalhando fora dos presídios teriam que voltar ao confinamento integral dentro dos presídios com características de regime fechado, o que, evidentemente, é contra o direito de quem deve cumprir sua pena em um estabelecimento prisional compatível com as características do regime semiaberto. Os reais motivos que levaram o ministro a decidir da forma como decidiu podem e devem ser objeto de questionamento, mas é fato que resultou de uma interpretação absolutamente equivocada da lógica que orienta o sistema de execução das penas. Um artigo de lei não pode ser interpretado isoladamente como se não fizesse parte de um sistema com uma lógica própria previamente pensada. Aprende-se isso nos primeiros anos de faculdade.
A Lei de Execução Penal, considerando o ano em que foi projetada, 1983, representou e ainda representa um avanço em termos de execução penal. O que se precisa cobrar, por mais paradoxal que seja, é que seja cumprida. Está lá no item 14 da exposição de motivos da existência da lei que a pena deve ter como princípio a reincorporação do autor do crime à comunidade. Está lá também, no item 65, que o estabelecimento da garantia jurídica dos direitos dos condenados é fundamental na luta contra os efeitos da prisionalização. Por isso, por exemplo, o cumprimento progressivo da pena passando de um regime prisional mais rigoroso para um menos rigoroso representa a concretização do programa legal de reincorporação do preso à sociedade e de luta contra os efeitos nocivos da prisão. Negar, portanto, aos presos que cumprem pena em regime prisional semiaberto a possibilidade de trabalhar fora dos presídios é, antes de tudo, negar toda a lógica da execução das penas privativas de liberdade. Torceremos, ao bem do Estado de direito, para que a recente decisão do ministro Joaquim Barbosa não seja um entendimento prevalecente no Supremo Tribunal Federal.
João Bernardo Kappen é advogado