por: Roberto Amaral
Postado na Carta Capital on line dia 21/05/2014
Da Europa, “este nobre continente” que, após séculos de colonialismo predador e genocida nos deu o fascismo, o nazismo e o stalinismo e duas guerras mundiais, sopram os ventos do mais tacanho ideário conservador, de par com o recuo ideológico e político da esquerda, sob todos os seus matizes, ou seja, englobando desde os comunistas às organizações socialdemocratas.
Os mais velhos dirão: ‘eu já vi este filme’.
A crise financeira mundial em que vivemos desde 2008 – produto da alucinada desregulamentação do mercado imposta pela ideologia do neoliberalismo –, não foi o gatilho detonador desse recuo, pois o fenômeno vem de décadas, remontando, para fixarmos um momento histórico, à ‘queda do muro de Berlim’ e ao desmantelamento da URSS, com todos os seus significados e consequências geoestratégicas, políticas, econômicas e militares. Alguns poucos indicadores: o fim do Pacto de Varsóvia e a expansão da Otan para além do Atlântico Norte, a desagregação do ‘Leste Europeu’ e a incorporação pela União Europeia (um moloch que jamais se sacia) dos antigos países ‘comunistas’ europeus, o consenso de Washington, a onda neoliberal e a ditadura intelectual do pensamento único.
Nessa mesma Europa e nessa mesma ‘onda’ desaparecem – com algumas exceções, como a portuguesa e a grega – os Partidos Comunistas ocidentais, e a tragédia mais notável foi a do justamente festejado Partido Comunista Italiano (PCI), conhecido pelas suas ideias renovadoras e pujança organizacional. Seu féretro levou consigo o eurocomunismo que chegou a entusiasmar alguns intelectuais brasileiros.
Cheia de si, a direita chegou a proclamar ‘o fim da História’ e o fenecimento do marxismo e das ideias socialistas. Uma versão dessa tolice é o anunciado fim da disjuntiva esquerda-direita, de livre curso ente nós. É um dos discursos da ‘pós-modernidade’.
Hoje, antigos partidos socialistas, como o português e o francês, no governo, optam por políticas reacionárias. Na França, a ‘novidade’ é a ascensão de François Hollande, lamentável contrafação de François Mitterrand. Portanto, não se pode considerar extemporâneo o crescimento da ultradireitista Marine Le Pen e de sua Frente Nacional, caminhando para tornar-se o maior partido da França. Organizações outrora de esquerda, como o Partido Trabalhista inglês (LP) de Harold Laski, se confundem com os partidos conservadores. Na Alemanha, a Social Democracia (SPD) é sócia menor dos conservadores (CDU) de Merkel. A Itália, até recentemente comandada pela direita grotesca de Berlusconi, é hoje governada pela direita pré-fascista de Matteo Renzi. É consenso entre os analistas que as eleições europeias de final deste maio trarão o aumento significativo de votos da extrema-direita. Concluamos: nos EUA a ‘esquerda’ é representada pelo Partido Democrata de Barack Obama… A China (em conflito com o Vietnã) cuida de seu capitalismo de Estado.
No mundo e no Brasil – para o bem e para o mal não somos uma ilha – o avanço do cardápio conservador tem as características de uma hegemonia ideológica: faz parecer que os interesses de uma classe – a classe dominante – coincidem com os interesses da maioria, ou seja, dos pobres. Assim é que vemos desqualificar a política quem mais precisa dela, combater o Estado quem mais depende dele, criticar a presença do governo quem mais precisa dela. É a vitória da manipulação ideológica.
Os jornalões festejam nas recentes pesquisas de opinião os altos índices de eleitores que nas eleições presidenciais deste ano integram o grupo dos indecisos e dos que se propõem a votar nulo ou em branco, enquanto outros muitos dizem rejeitar os partidos políticos e reduzir a política à corrupção, sempre enfocada pelos meios de comunicação pelo lado do corrupto, para que se demonstre a ineficiência do Estado, esquecendo-se do corruptor, um agente do mercado, pois é ele quem de fato maneja o Estado.
Para essa alienação trabalham diuturnamente os aparelhos ideológicos da classe dominante, à frente de todos e o mais eficiente de todos, os grandes meios de comunicação, com o propósito de desqualificar a política e de desconstituir o Estado, para promover o neoliberalismo e o mercado, impor a verdade única. A ação desses meios promove uma verdadeira guerra ideológica, visando à alienação, ao desenraizamento, ao desânimo, à impotência cujo fim é convencer o povo de que as coisas são assim porque assim devem ser, e nada há por fazer, senão conformar-se.
Sejam quais forem as razões explicativas, o fato objetivo é que vivemos um repouso intelectual-ideológico, com a ausência do debate, o silêncio da Academia, os pleitos corporativistas do mundo sindical sem vida, a paz de um movimento estudantil preocupantemente bem-comportado. Não há teses por defender, não há bandeiras por levantar. Os idos de junho de 2013 – eloquente sinal de insatisfação – não deixaram legado político. Talvez em face de sua essência anarquista, terminaram diluídos na anti-política, na anti-organização, contra os partidos e os sindicatos. É verdade que acicataram a sociedade, assustaram governo e a vida política, mas, passados os eventos, tendem deixar atrás de si o silêncio, como o Occupy Wall Street. Sua força – a não-organização, o voluntarismo – é igualmente sua limitação. Ficou, porém, uma advertência: o larvar descontentamento de nosso povo, insatisfeito com sua qualidade de vida, insatisfeito com a escola que lhe oferecem, com o transporte que lhe oferecem, com a moradia que lhe oferecem, com a saúde que lhe negam. Uma irritação generalizada que ainda não encontrou seu alvo. Por enquanto é um denúncia de decepção, consciência do malogro e muito desassossego.
A hegemonia conservadora que pervade os partidos de esquerda – que não souberam administrar nem a relação partido-governo e nem muito menos as relações partidos-movimento social – contamina o modo como tendemos avaliar a inserção internacional do Brasil. Dispensando a análise empírica – estamos nos habituando a muita opinião e pouca informação e nenhuma reflexão – somos levados a crer que o melhor para nosso povo é atrelar o desenvolvimento brasileiro ao da Europa e dos EUA – que continuam sendo nossas matrizes civilizacionais – e de embalo atrelar nossa visão de mundo à visão de mundo deles, nossos valores aos valores deles, nossa cultura à cultura deles. Embora saibam todos – e saiba mais do que todos a classe dominante colonizada – que nem UE nem EUA estão – porque jamais estiveram – propensos a fazer as concessões que nos interessam em nossas relações comerciais. Igualmente, não estão interessados no desenvolvimento tecnológico brasileiro, pois bloqueiam nosso programa espacial, nosso programa nuclear, nosso desenvolvimento em cibernética e nanotecnologia. O Fed, Banco Central dos EUA, aliás, voltemos à economia, não costuma pensar no Brasil ou na Argentina quando decide cortar juros para estimular o aquecimento da economia dos EUA. Nem muito menos nos considera para alguma coisa o Banco Central Europeu, cuja política cambial visa a facilitar suas exportações para nossos países (e fortalecer seus produtos nos nossos mercados internos) e dificultar as importações de nossos poucos produtos exportáveis, commodities inclusive.
Mas, que esperar, seriamente, de concessões de uma Europa às voltas com o Pacto de Estabilidade imposto por Bruxelas e suas políticas de cortes e demissões, crescendo a 0,2%? Nessa Europa existem hoje 36 milhões de desempregados. Apesar de tanta obviedade, a classe-média, marioneta nas mãos da classe-dominante, alienada, faz cara feia toda vez que se defende nossa abertura ao comércio com o maior número de países, e especialmente com a América do Sul, a África e a Ásia. Apesar de o caminho da diversificação das parcerias haver-se revelado tão importante quando do nosso enfrentamento da crise de 2008. Para essa gente – e dela é porta-voz o candidato tucano – o único caminho é fechar as portas do Mercosul, entregar-se à UE e retomar a Alca. Assim, ao final, seremos um grande Porto Rico.
Outro instrumento dessa perversa busca da alienação – utilizado à saciedade pelos meios de comunicação e os intelectuais da classe dominante –, é a técnica do despistamento que visa a trazer para a cena política temas irrelevantes ou periféricos, à custa do esquecimento das questões estruturais que afetam o país, a democracia e a qualidade de vida de nossas populações. Enquanto a pauta da grande imprensa traz ao debate questões vencidas nas eleições de 2010 e que foram o cavalo-de batalha do candidato da direita, como aborto, homossexualismo e liberdade religiosa, importantes mas marginais diante do vulto de nossos problemas sociais e econômicos, em xeque, são postos de lado os temas de interesse concreto para a vida das pessoas, como a brutal, crescente e injusta concentração de renda: aqui (dados de 2012), os 10% mais ricos detêm 42% da renda e 40% dos brasileiros, os mais pobres, respondem por apenas 13% da renda nacional; a renda real do trabalho do 1% de mais ricos é 87 vezes superior à dos 10% dos mais pobres. Como na matriz, é alta a desigualdade – nada obstante os esforços de inclusão social levados a cabo nos últimos 12 anos – e baixa a taxa de crescimento econômico, a qual, mantida, nos assegurará a pobreza por mais 50 anos.
Assim, nada discutindo ou discutindo o supérfluo, evitamos o debate em torno de questões cruciais para a vida das pessoas como a expansão do mercado interno, a política de distribuição de renda e aumento do poder de compra dos trabalhadores. E o crescimento, se possível sem inflação.
Por essas e outras trampas, nosso povo, que até pouco tanto se orgulhava de seu país, volta a deixar-se dominar pelo derrotista sentimento de inferioridade que o faz descrer até de si mesmo. A destruição do orgulho de ser, da satisfação do pertencimento e do amor-próprio é a forma mais eficaz de minar uma nação. Em seu lugar se instala a idealização do outro, superior, mais culto, mais forte, destinado à vitória e ao sucesso, cujo reverso é o autodestruidor ‘complexo de vira-lata’.
A alienação proposta pela direita tem um só objetivo: soterrar a alma nacional