Por: José Viegas Filho,  em 5 de outubro de 2013

José_ViegasAgradeço aos organizadores deste evento o convite que a mim fizeram para que eu participe das justas comemorações com que a nação brasileira celebra o vigésimo quinto aniversário da nossa mais longeva Constituição democrática, o que faço com grande prazer.

Há constituições concisas, que se limitam ao estrito ordenamento jurídico, constituições frias e restritivas; e há constituições amplas, que se preocupam em fazer avançar o respeito ao direito, que explicitam um ideário, constituições de vanguarda.

A nossa Constituição é do segundo tipo: Ela não só estabelece o ordenamento jurídico do país, como também o nosso ideário, os nossos valores capitais. Ela é declaratória e abre as pautas para que a lei a regulamente. Avança na proteção dos direitos individuais e coletivos e, em especial, a dos direitos humanos. Mas uma constituição não pode fazer tudo e, ao focalizá-la como obra jurídica, devemos focalizar também a sua implementação, obra política.

O tempo transcorrido, estes vinte e cinco anos que hoje comemoramos, fez sobressaírem as virtudes da nossa Carta Magna. Nos primeiros anos temia-se que seu teor, por estabelecer tão numerosos direitos e tantas obrigações e atribuições ao Estado, tornasse o país ingovernável. Hoje vamos que os problemas de governabilidade não derivam do texto constitucional e sim dos modos de operação da nossa classe política.

Quem imaginaria em 1988 que chegaríamos a ter quase quarenta partidos políticos? Quem poderia imaginar que um grande avanço como o horário gratuito de propaganda política na televisão se converteria em moeda de troca em manobras de oportunismo  político?

Na verdade, nem sempre podemos orgulhar-nos das escolhas que fazemos ao elegermos nossos representantes políticos; mas sim podemos orgulhar-nos do trabalho dos nossos constituintes, que elaboraram um texto belo, libertário e generoso.

Já no preâmbulo do texto constitucional vemos as nobres motivações que inspiraram a sua redação:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores superiores de uma  sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Como vemos, integram o preâmbulo conceitos básicos como:

– A liberdade – O Brasil é efetivamente um dos países mais livres do mundo. Além de garantir e promover as liberdades individuais, a Constituição estende a sua proteção aos direitos sociais, deixando claro que a liberdade não se esgota no nível do indivíduo.

– A segurança – A Constituição não pode dar a segurança. Essa é a tarefa dos governos e da sociedade civil. Nós sofremos ainda de males como a violência urbana e rural, a ação do crime organizado e do narcotráfico e temos muito o que avançar nesses campos. Posteriormente farei comentários a este respeito.

– O bem-estar – Conceito amplo, cuja conquista está ligada aos avanços que logremos fazer nas áreas da segurança e do desenvolvimento, o bem-estar, sobretudo no sentido coletivo, tem a ver também com o exercício da função redistributiva do Estado.

– O desenvolvimento – É uma função conjugada do Estado e do empresariado. A nossa experiência recente nos mostra que, no que diz respeito à economia, compete basicamente ao Estado exercer os papeis de indutor e regulador da atividade produtiva, enquanto que cabe ao empresariado ser o agente direto da produção. É bom frisar que persiste a necessidade de melhorar a qualidade do gasto público, da execução orçamentária, do planejamento estratégico e plurianual, dos serviços públicos e privados prestados à sociedade e, o que é de grande importância, de termos regulações mais eficazes e inteligentes.

– A igualdade – Um grande esforço vem sendo realizado nesse sentido para formar a base de um desenvolvimento que permita a nossos filhos viver em um país mais robusto, coeso e justo. Valem também aqui os critérios apontados para o desenvolvimento, especialmente a necessidade de melhorar a qualidade do gasto público em saúde e educação.

– A justiça – É grande e urgente a necessidade de uma reforma radical do sistema prisional brasileiro, descrito por muitos como um verdadeiro inferno, assim como de tornar a justiça mais igualitária, mais ágil, mais sensata e menos formalista e terminar com o problema do excesso de presos que esperam julgamento por tempo indefinido.

– Uma sociedade fraterna e sem preconceitos – O preconceito e o racismo são atitudes odiosas, que ofendem o conceito da igualdade de todas as pessoas e que penetram por vezes com alguma facilidade em mentes menos lúcidas. O preconceito, não só o racial, mas também o de gênero, o de classe e todos os demais, é uma herança do passado que nós devemos combater incessantemente. Não devemos esquecer que quem pratica o preconceito e o racismo está violando a Constituição brasileira.

– Uma sociedade pluralista – O pluralismo é a virtude de permitir a expressão livre da opinião. O pluralismo garante o direito de dissentir, que é essencial na democracia. Ele implica, portanto, o respeito à opinião contrária. Mas não por divergirmos devemos obstaculizar as decisões tomadas. Temos todos o direito de manifestar-nos, de reunir-nos em paz, sem armas, para defender nossos pontos de vista, mas não por isso temos o direito de prejudicar o gozo pacífico dos direitos alheios. Em eventos públicos, tanto os manifestantes quanto a polícia têm a obrigação de agir dentro do que manda a lei. Assim se constroi a democracia.

Já no artigo 3º, a Constituição determina como o primeiro dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Integram essa lista de objetivos a erradicação da pobreza, a promoção do bem comum sem qualquer forma de discriminação e, no Artigo 5º, o direito de todos a reunir-se pacificamente.

E no Artigo 4º, a nossa Carta Magna enumera os princípios por que se orienta o Brasil em suas Relações Internacionais. Ressalto dois pontos: O primeiro é a harmonia completa do texto com a ação prática desenvolvida pelo Itamaraty ao longo de várias décadas e com grande êxito na afirmação da imagem do nosso país. Sobre isso comentarei. O segundo é a menção especial que a nossa Constituição faz à América Latina, a nossa região circunstante, com a qual temos vínculos estratégicos, que também comentarei. Permitam-me antes uma primeira digressão.

Relações Internacionais

O Brasil é um país singular. Sua história se entrelaça com a diplomacia e os assuntos internacionais desde antes do seu descobrimento pelos navegadores portugueses.

Diplomacia e miscigenação

Antes mesmo da viagem de Cabral, Portugal já era dono de boa parte do que hoje é o Brasil e de quase toda a sua costa, graças ao Tratado de Tordesilhas, que dividiu o mundo entre os dois países ibéricos. A concepção do nosso país foi, portanto, uma proeza diplomática que se deveu exclusivamente à argúcia dos internacionalistas de Sagres e Lisboa.

Quando Cabral chegou, confirmando o extraordinário valor daquele Tratado, os portugueses tiveram como primeiro problema e primeira responsabilidade, antes de saber o que fazer com a nova terra, a tarefa de explorá-la e de protegê-la contra invasões de outros países europeus e atividades de piratas.

Ao longo do Século XVI, não havendo descoberto ouro por aqui e tendo que zelar por uma enorme costa despovoada de súditos portugueses, era necessário encontrar uma maneira eficaz de defendê-la e assegurar a sua posse. Sendo Portugal um país de recursos limitados e envolvido com a prioridade maior das rotas comerciais com a Ásia, o único a fazer era tratar de povoar o nosso território com o fim de gerar alguma segurança. Mas de Portugal para cá praticamente só vinham homens e não mulheres, de modo que a solução óbvia foi a da miscigenação, não por virtude ou sentimento igualitário, mas sim por ferrenha necessidade.

No Brasil, ao contrário do que ocorreu em boa parte da América espanhola, o filho do branco com a índia era incorporado ao novo regime e à nova cultura. Como disse Caminha, os portugueses foram bem recebidos e, salvo um ou outro episódio de antropofagia, havia paz e algum entendimento.

As nossas entradas e bandeiras, que ampliaram significativamente o nosso território, foram empresa conjunta de colonizadores e índios, e sobretudo de mestiços. Não há brasileiro de quatrocentos anos que não tenha sangue índio.

A confirmação da posse lusitana desse vasto interior, que se estendia até o Mato Grosso e a bacia Amazônica, foi obra de uma nova geração de diplomatas portugueses, já com a participação importante de brasileiros, como Alexandre de Gusmão, que celebraram com a Espanha os Tratados de Madri e Santo Ildefonso, com o que mais do que triplicou-se a nossa extensão territorial.

Posteriormente, uma terceira geração de diplomatas, cujo líder foi o Barão do Rio Branco, concluiu tratados de limites com todos os nossos vizinhos  – uma vez que os tratados anteriores haviam sido celebrados entre Portugal e Espanha –, o que nos permitiu ser o único país do mundo que, tendo uma boa quantidade de vizinhos – e nós temos dez – vive por mais de 140 anos em paz ininterrupta e cooperação harmoniosa com todos eles.

A outra vertente da nossa miscigenação, a africana, deveu-se fundamentalmente à implantação dos primeiros agro-negócios no Brasil, com o cultivo da cana de açúcar para exportação. Na ausência de mão de obra branca em número suficiente e diante da incompatibilidade entre a cultura indígena e o trabalho agrícola do tipo “plantation”, nossos colonizadores recorreram à importação forçada de escravos, que ao longo de três séculos trouxe ao nosso país cerca de quatro milhões de negros africanos, que se somaram a quantidades comparáveis de índios e brancos para formar a nação brasileira no século XIX.

Observemos, portanto, que a nossa miscigenação, imperfeita e em certos aspectos cruel e injusta, não é fruto de espírito igualitário nem de ausência de preconceito, mas sim de necessidades históricas. Mas é importante assinalar que ela foi sendo progressivamente acolhida e respeitada pela nossa sociedade civil republicana.

Foi uma quarta geração de diplomatas, a nossa, que desenvolveu e levou à comunidade internacional a versão sofisticada da nossa sociedade interétnica, vista como expressão viva do respeito à diversidade, à igualdade, ao diálogo e à boa convivência entre os povos.

Diplomacia e paz

A defesa da paz é um elemento fundamental da política externa brasileira e a Constituição a consagra. Além de ser um valor em si mesma, a paz é também um fator essencial  para o desenvolvimento de relações positivas de cooperação que conduzem ao progresso e ao bem-estar econômico e social. O ideal da paz e as políticas de paz são constantes naturais do nosso sentimento como nação. São traços afins com outros aspectos da nossa maneira de ser, igualmente valorizadas no âmbito internacional – a alegria, a flexibilidade, o acolhimento da diversidade, a tolerância religiosa.

A paz é também condição essencial para outros objetivos de capital interesse para o Brasil, o maior dos quais é a construção de um sistema internacional democrático, justo e eficiente. Sobretudo, um sistema internacional capaz de resolver os problemas graves que afetam o nosso presente e ameaçam o nosso futuro.

América do Sul e Mercosul

Tal como manda a nossa Constituição, o Brasil soube construir e alimentar uma atmosfera de paz em nossa região e soube transformá-la, desenvolvendo uma vigorosa integração econômica com nossos vizinhos e dotando-a de uma série de organismos internacionais, como o Mercosul, a Unasul e o Conselho de Defesa sul-americano, que dão coesão e identidade própria à nossa região.

O Mercosul, em especial, é uma notável criação da diplomacia sul-americana e isso se expressa com nitidez em números:

– De 1991, ano da fundação da associação, a 2012, o comércio intra-bloco passou de 4,5 bilhões de dólares para $ 58,6 bilhões em 2012, o que equivale aos fluxos comerciais de importação e exportação entre o Brasil e os EUA.

– Durante os últimos quatro anos comércio global cresceu 13% e o comércio intra-Mercosul cresceu mais de 20%.

– Entre 2010 e 2012, Mercosul recebeu 44,4% dos investimentos estrangeiros diretos para América Latina e 54% dos que vieram para a América do Sul.

– A exportação brasileira de manufaturas e semi-manufaturas para os países do Mercosul cresceu de $ 1,2 bilhões em 1989 para $ 21 bilhões em 2012.

– A participação de produtos de maior valor agregado nessa nossa pauta é de 92%, enquanto que não chega a 50% nas nossas exportações para o resto do mundo.

Por um mundo melhor

Também no nível mais amplo da comunidade internacional, deixamos a nossa marca com uma atuação impecável nas forças de paz da ONU e um permanente esforço de construir um mundo melhor.

A política externa desenvolvida de maneira coerente e sistemática pelo Governo brasileiro sob o amparo da nossa Constituição ressalta e dissemina valores que são para nós fundamentais: a defesa da paz, da cooperação, do diálogo e da solução negociada das controvérsias.

A  construção de um mundo mais propício aos nossos interesses é tarefa que merece o nosso empenho permanente. O Brasil se orgulha de ser visto como um país que defende a democracia internacional, o respeito à diversidade e a convivência harmoniosa e igualitária das nações.

Dentre todos os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a França e o Reino Unido apoiam explicitamente o nosso ingresso a essa categoria, a Rússia se proclama “ansiosa” para ver-nos lá e a China opõe-se apenas à entrada do Japão nesse grupo. O único país que não apoia o nosso pleito são os EUA.

Nossa presença permanente no Conselho não só refletiria as mudanças que ocorreram nas últimas décadas, como seria também garantia de uma atuação mais equilibrada por parte daquele órgão e da adoção de políticas mais restritivas ao uso unilateral das armas ofensivas de destruição.

Ainda que pareça irrealista, a bandeira do desarmamento nuclear deve ser sempre mantida alta. Ela é o símbolo maior da luta por uma ordem internacional baseada no diálogo democrático e não no poder puro e simples. O Brasil deve reforçar a sua segurança, mas deve sempre conservar o seu perfil de potência pacífica, sem propósitos agressivos.

A Situação Internacional

Como sabemos, a Constituição não tem o poder de fazer as coisas acontecerem. Essa é uma incumbência nossa, da sociedade civil, e dos representantes eleitos por nós, a classe política. A democracia é um regime estável e tem princípios claros e solidamente estabelecidos. Mas os governos aos quais ela dá forma, nem sempre o são, ou têm. Aliás, estamos vivendo, no mundo inteiro, uma época de transformações tão rápidas, intensas e radicais, que, de repente, tudo pode parecer fora de controle ao mesmo tempo.

Observem que hoje nenhum dos grandes problemas do planeta está sendo resolvido: a mudança do clima, a crise econômica, a luta contra o terrorismo, os confrontos religiosos e as guerras civis, a construção de uma verdadeira democracia internacional – em nenhuma dessas áreas vitais está havendo progresso.

Não devemos surpreender-nos de que estejamos todos perplexos. Tampouco deveríamos surpreender-nos ao ver que, no mundo, o processo político de tomada de decisões está em crise e tem produzido resultados bem abaixo do desejável.

Isso se relaciona com o descompasso sempre crescente entre a alta velocidade das transformações e a relativa rigidez das estruturas burocráticas. É uma evolução acentuada também por um gigantesco processo paralelo de concentração de renda, o qual tem seu epicentro em Wall Street. Posso fornecer alguns dados: Enquanto que, em um período de 26 anos que vai até meados da década passada, a classe média nos EUA aumentou sua renda em 21%, o 1% mais rico aumentou-a em 480%. Nos anos recentes que sucederam o auge da crise, o 1% mais rico dos EUA ficou com 95% de todo o crescimento do PIB norte-americano.

No Brasil não estamos nem perto disso. Ao contrário, somos um dos poucos países do mundo em que as classes populares cresceram acima da média nacional. Mas eu estou falando de uma tendência mundial e o Brasil não é uma ilha.

Qual a correlação entre esse processo voraz de concentração de renda e a pobreza das decisões tomadas recentemente a nível global? A concentração da renda corresponde à concentração do poder. O setor financeiro da economia global tomou o poder. Ele comanda a indústria, comanda a mídia e comanda amplas faixas da classe política. Existe um apoio mútuo e global entre os vários segmentos da elite internacional. Ademais, os integrantes da elite financeira são os únicos que reúnem as condições técnicas para fazer o mundo funcionar. Tornaram-se insubstituíveis!

Todas essas tendências coincidem também com o processo de desregulação da economia. Dou exemplo:  Até o terceiro quartel do Século XX, os bancos americanos, não podiam ser nacionais, mas no máximo regionais. Tampouco podiam ser ao mesmo tempo banco de varejo e banco de investimento. Essas regulações e inumeráveis outras que colocavam limites à liberdade de ação do capital foram erradicadas, não só nos EUA, mas por todo o mundo. Registre-se que, no Brasil, várias dessas regulações persistem em vigor, o que nos ajudou muito a minimizar os piores efeitos da crise recente.

Mas no mundo inteiro os capitalistas ficaram livres para produzir bolhas financeiras e detêm tal soma de poderes que, quando a bolha estoura, o que fatalmente acontece, os governos – dos EUA, principalmente, e da Europa – contraem dívidas para dar dinheiro aos bancos que se veem em má situação. Trilhões de dólares pertencentes aos contribuintes que pagam seus impostos, são transferidos para os bancos, para remediar a “exuberância irracional” dos seus próprios dirigentes e quem paga a conta é o povo – um processo conhecido como socialização dos prejuízos – que sofre todas as consequências da recessão, da queda dos serviços públicos e das altas taxas de desemprego.

O que há em comum entre esses três processos – más decisões políticas, concentração de renda e poder e desregulação da economia?: Explico: O prevalecimento do interesse particular e específico sobre o interesse público e o bem comum; a colocação constante do foco de atenção no ganho de curto prazo, orientado para tirar o maior proveito possível no menor tempo possível do que quer que seja: um voto, uma compra, um fechar de olhos.

Vivemos uma época voraz que faz com que as finanças e as pessoas fiquem obesas. Nós, hoje, somos muito mais individualistas do que éramos uma geração atrás. Nós, hoje, perdemos a fé nos partidos políticos e nos políticos em geral. Que significa isso? Que perdemos a fé no sistema de representação política da sociedade civil? Na democracia representativa? É bom lembrar que ficamos, assim, muito mais vulneráveis a ações que divergem dos nossos interesses republicanos e fogem ao nosso controle. Mais uma crise sem resolução visível.

Manifestações

 O Brasil não é uma ilha. Nós também temos as nossas inquietudes. Mas que acontecerá se realmente perdermos a fé no sistema constitucional de representação política e no exercício concreto do poder pelos seus representantes eleitos? A resposta pode ser perigosa: o fascismo. O que aconteceu na década de vinte – noventa, oitenta anos atrás – Crise financeira, recessão, governos perplexos, lei seca, speakeasies e melindrosas – não é muito diferente do que acontece hoje.

O fascismo explora o descontentamento e o desencanto das pessoas oferecendo soluções simples, diretas e contundentes, que correspondem ao gosto de uma certa faixa de pensamento, ou sentimento, que existe praticamente em todos os lugares. Diante das dificuldades vividas com transparência nas democracias, o fascismo prega a ordem da ditadura, a ordem da obediência, a supressão da oposição, a fria eficiência das máquinas.

Em determinados momentos, esse ideário simples pode parecer razoável e os fascistas, que veem nas coisas uma simplicidade que é apenas aparente, oferecem esperanças àqueles que dão pouca importância à solidariedade, à paz e ao respeito. Se estes valores hoje estão fora de moda, pior para nós, pois ficamos mais vulneráveis ao fascismo. Certamente não é essa a maneira de transformar a realidade. Certamente não é isso o que queremos. Então, mantenhamos os olhos abertos.

As manifestações costumam prenunciar transformações políticas, e agora passo a falar diretamente das coisas brasileiras. Não devemos temer nem as manifesações nem as transformações políticas, muito necessárias até. Eu me preocupo em desvendar, dentro desse cenário difuso e volátil em que elas se desenvolvem, qual, ou quais, os sentidos mais importantes em que elas se movem.

Primeiro, embora os manifestantes partam de posições de inspiração anárquica, em algum momento terá que haver uma síntese dos objetivos a serem alcançados coletivamente; terá que haver alguma priorização, alguma organização, alguma forma de liderança.

Acho importante frisar que um dos grandes objetivos a que visam as manifestações é a melhora dos serviços, públicos e privados, que nos são prestados. Creio mesmo que esse é o elemento aglutinador do lado propositivo do movimento, ao lado da luta contra a corrupção, contra o descaso e, talvez, contra a mercantilização de tudo.

Acho também que os manifestantes devem ter a noção clara de que a violência é a arma do forte contra o fraco, do rico contra o pobre. A queda da Bastilha foi uma extraordinária exceção. É preciso rejeitar a violência para não sofrer a violência.

Vamos caminhando para o ano eleitoral de 2014 e devemos refletir bem, mais uma vez repetindo o que se diz sempre, sobre que tipo de gente estamos escolhendo para representar o povo e que tipo de ideias queremos que sejam articuladas em leis e programas políticos.

Segurança

A segurança pública é, segundo a Constituição, um dever do Estado. Mas a Polícia Federal incumbe-se essencialmente de apurar e investigar. As ações de controle e a preservação da ordem pública, como sabemos bem pela nossa experiência diária, cabem às polícias militares estaduais, que devem obediência aos respectivos governadores.

Por um lado, não quiseram os constituintes envolver as nossas Forças Armadas com com os problemas que decorrem da manutenção da ordem pública, nem o querem elas próprias, nem o queremos nós. A destinação básica das nossas Forças Armadas é a defesa do país. A segurança pública é tema relativo à ordem interna e a defesa correlaciona-se com a ordem internacional. E está muito bem que seja assim.

O problema está em que a ausência de uma instância federal que centralize a ação policial enfraquece-a quando o problema de segurança é maior ou mais difuso, transcendendo a área de um único Estado federado.

O Ministério da Justiça optou pela convocação de uma Força Nacional para esses casos. Para cada operação ela tem de ser estruturada e composta por policiais provenientes de diferentes organizações policiais, que devem deslocar-se até os locais de possível ação, tendo antes que preparar-se devidamente.

Esse modelo implica tempo e custos. As forças policiais são desiguais entre si, não têm uniformidade doutrinária, na maioria dos casos são frágeis, e seus graus de preparo e adestramento podem ser insuficientes. Em casos que requerem uma ação imediata para a preservação da ordem pública, ou nos casos da realização de grandes eventos, o Estado brasileiro tem sido obrigado a valer-se das Forças Armadas, o que, a meu ver, contradiz a observação inicial quanto à inconveniência de envolvê-las nos assuntos internos da nação, e mantém sem solução a questão da falta de uma autoridade policial central.

Permito-me aqui expor ainda uma vez minha clara preferência pela criação de uma estrutura policial nacional não com finalidade investigativa, função exercida pela Polícia Federal, mas corretiva e emergencial.

Tal Força, que poderia chamar-se Guarda Nacional, teria as qualidade que parecem faltar à conjugação ad-hoc de forças policiais estaduais: Ela seria formada pela adesão voluntária de efetivos do Exército Brasileiro, e portanto teria já desde o início uma doutrina única e uma disciplina firme e consolidada, teria caráter permanente, usaria quarteis que já existem, comando unificado e capacidade de deslocamento imediato. E ainda contribuiria para uma redução dos efetivos do Exército e para um desafogo de suas constantes carências orçamentárias.

Terrorismo e luta contra as drogas

 Voltando ao cenário internacional, o combate ao terrorismo, tal como praticado por sucessivos governos norte-americanos, não resolveu os problemas e, em certo sentido, agravou-os. Usar as Forças Armadas em operações militares de guerra contra grupos clandestinos, dotados de estrutura celular e de capacidade de infiltração urbana, é uma estratégia errada e as guerras do Iraque e do Afeganistão o demonstram.

Os conflitos no seio das sociedades civis desses países não cessaram até hoje; ganham-se as batalhas mas não se ganha o controle; o custo financeiro e operacional das medidas de prevenção é enorme; e o uso da tecnologia para a obtenção dos fins desejados – uso de drones (VANTS), assassinatos seletivos, incursões-relâmpago em países estrangeiros, prisão prolongada de suspeitos sem julgamento, farta espionagem eletrônica, que chega inclusive a envolver a mídia social utilizada por todos nós, constituem violações ao Direito Internacional e semeiam um caos jurídico particularmente nocivo a países pacíficos como o Brasil.

Combate às drogas

A maneira como se faz o combate às drogas e ao narcotráfico apresenta problemas comparáveis. A questão do comércio e do uso de drogas é reconhecidamente complexa, pois congrega vários problemas sob um só rótulo. Há as questões morais,  por um lado, e as questões sociais e ligadas à violência, por outro lado.

A parte mais visível desses problemas, a que mais absorve a atenção das pessoas em geral, é de ordem moral: o desconforto que causa a uma parte da sociedade que outras pessoas usem drogas. É uma posição de princípio, que não se preocupa com muitos detalhes e que visa a uma solução simples: erradicar as drogas, criminalizar o seu comércio e o seu uso, tratando todas as drogas por igual. É a posição típica da direita conservadora. É a posição ainda dominante e em nome dela se fazem guerras e operações policiais que matam dezenas de milhares de pessoas a cada ano, sem conseguir que se reduzam nem a produção nem o tráfico nem o consumo das drogas.

Existem questões correlatas, que são também de ordem moral, na vertente médica, como a preocupação com a saúde e a vida dos usuários e com a assistência que lhes deva ser prestada.

E há todo um outro grupo de questões que são, como dissemos, as sociais e em especial as ligadas à violência urbana. Aqui é preciso ter clareza sobre alguns aspectos duros: Em primeiro lugar, a criminalização do comércio e do uso de drogas é a causa maior da existência do narcotráfico. Ela representa a concessão de um monopólio para que só os bandidos possam vender drogas.

Ao ilegalizar esse mercado e ao transformá-lo em clandestino, a criminalização desampara o usuário e, o que é pior, leva os bandidos a armar-se para defender seus pontos de venda contra a polícia e contra os seus concorrentes, gerando um grau intolerável de violência urbana. O número de mortos por essa causa é muitíssimo superior ao dos que morrem por “overdose” ou por crimes praticados por drogados.

A criminalização acaba dando aos narcotraficantes o poder de controle sobre as comunidades carentes onde eles atuam, o poder de comprar e contrabandear armas, o poder de corromper a polícia e o poder de fazer “justiça” com as próprias mãos.

E também é preciso admitir que as drogas não são todas iguais. Há umas piores do que outras. Como ficar indiferente à “epidemia” do crack que infesta hoje as nossas cidades, levando números cada vez maiores de pessoas à indigência, a condições sub-humanas de vida e à degradação completa nas nossas calçadas?

Esse é um problema social que tem que ser encaminhado com medidas positivas de auxílio e medidas eficazes de prevenção. Mas não vejo que seja isso o que está acontecendo. Ficamos perplexos diante do problema moral das drogas como um todo, percebemos que os esforços até aqui feitos não produziram bons resultados e, em consequência, perdemos o ânimo, deixamos correr solta essa novidade especialmente daninha e continuamos a permitir que o comércio dessa e de outras drogas continue nas mãos de bandidos.

Em nome da redução da violência e da degradação, em nome de uma regulação correta e eficaz do consumo recreacional de drogas leves, menos nocivo à saúde pública do que o do álcool e do tabaco, em nome da assistência aos usuários sem que eles tenham medo de “confessar” a prática de uma contravenção, seria melhor que seguíssemos o caminho apontado pelo Uruguai e por diversos estados americanos e desenvolvêssemos uma política justa, correta, humana e eficaz para acabar com o narcotráfico, tirando-lhe a fonte do seu poder: o caráter clandestino do comércio, que lhe é dado pela criminalização.

Conclusão

 O sistema de governo praticado e recomendado pela elite financeira global é a democracia representativa de corte liberal, com governos fracos, dotados de poucos poderes e de pouco alcance e desligados de qualquer atividade econômica. Se algo grande precisa ser feito, deve ser concertado com a classe empresarial, com os agentes econômicos, com a elite financeira.

Segundo a teoria liberal, o mercado é criativo e se auto-corrige; a classe empresarial se encarrega de todas as grandes obras, físicas e virtuais, da construção de estádios ao fornecimento de serviços públicos como a telefonia e a energia elétrica, essenciais para nossa vida pessoal, sem que o Estado tenha que intervir.

Na prática, isso resulta, efetivamente, em governos fracos, incapazes, em países menos ricos, de atender e ir em auxílio ao povo mais pobre, incapazes de governar sem o concurso dessa elite, ainda que indireto, através da mediação da classe política.

Felizmente, no Brasil, ainda conservamos algum controle, alguma capacidade de ação. Somos um país forte, dinâmico e corajoso. Tantas coisas fizemos na indústria, no governo Juscelino, tantas coisas fizemos no setor financeiro, no governo Fernando Henrique, tantas coisas fizemos no social, no governo Lula. Temos uma Constituição equilibrada e moderna, que nos inspira a lutar, com esperança sempre renovada, por um país melhor.

A nossa Constituição é de corte social-democrático. Ela requer que o Estado e o Governo se interessem pelo bem-estar social. Mas vale insistir em que o poder da Constituição se exerce por meio de leis e regulações. Por isso é tão necessário que tenhamos leis e regulações bem estruturadas, inteligentes e bem cumpridas. Sem elas, ficamos à mercê de quem não é cominado a ter mercê. Por isso é tão necessário que a nossa sociedade civil, o motor das transformações, aja de maneira coerente e, sobretudo, que saiba o que quer.