Roberto Amaral

 

Este livro não pretende a classificação das biografias, que pressupõe um mínimo de distanciamento emocional, pois o texto de Evandro exala paixão. Paixão justa, bem medida, ver-se-á no correr das páginas que aguardam o leitor, a quem recomendo esta leitura. Dela posso dizer que é o de bem cantada do melhor amor filial; a delicada reconstrução do pai-companheiro se processa pari passu com a tessitura de outro personagem, composto de admiração, o Letelba conhecido dos amigos: político de compromissos revolucionários,  advogado brilhante, militante corajosíssimo. Quando a repressão do golpe-militar de 1964 intentou alcançá-lo, deparou-se com um comunista que se formara no enfrentamento do Estado Novo. Letelba conheceu o exílio, como muitos de nós, e o observou como uma tática, como o guerreiro que troca de cenário de guerra, mas nem muda de lado nem arrefece o combate. Aqui, no regresso, foi dos mais desprendidos advogados de presos políticos. Neste ponto, faço pausa na leitura do livro de Evandro para agregar minha própria visão do mais presente advogado de Luiz Carlos Prestes.

 

Letelba vinha de outra geração, conhecera outras lutas, vivenciara experiências que conhecíamos da literatura histórica.  Era, para nós, que viríamos conhecê-lo já quase no ocaso de sua vida profissional, um exemplo sobranceiro, porque pairava muito acima da geração sua sucessora,  que não soube honrar as lutas herdadas e abastardou o seu Partido Comunista Brasileiro. Sobre ser corajoso — outra das qualidades ignoradas pelos neocomunistas que se transformaram em ex-comunistas e afinal em socialdemocratas de direita –, Letelba era muito sério e exemplarmente ético, como advogado e militante. Conheci-o, como profissional, no escritório de José Aguiar Dias, figura exemplar de juiz, advogado, jurista e homem. O patrocínio do encontro era suficiente para assegurar meu ingresso na vasta lista de seus admiradores. Mas no debate que se seguiu — discutíamos complicada causa do interesse da então República Democrática Alemã (RDA), cujos representantes não conseguiam entender os paradoxos de nossa legislação — passei a conhecer a habilidade, a lucidez jurídica e a rapidez de raciocínio do advogado tarimbado, a quem devo, as lições, então aprendidas, de que minha inexperiência tanto carecia. A questão transitava numa vara cível, mais especificamente dizia respeito a uma demanda na área de responsabilidade civil, em que Aguiar era o mestre de todos os civilistas brasileiros. Anos passados, fui reencontrá-lo, Letelba, como advogado, num julgamento militar, numa auditoria sediada no velho prédio do STM, em cujo Pleno eu fora julgado e condenado, salvando-me da cadeia graças a habeas corpus interposto por Aguiar Dias, que teve como relator no STF Evandro Lins e Silva, com quem eu me reencontraria em 1985 na reconstrução do PSB. Digo essas coisas apenas para assinalar que o velho prédio não me trazia boas lembranças. Eram vários militares acusados de crimes políticos. Quando Letelba fez a defesa de seu constituinte, vi que ali estava a oportunidade de salvação do réu cuja causa acompanhava, sem intervir no julgamento. Passados tantos anos, tento recompor o episódio.

Como enunciei poucas linhas passadas, o julgamento se dava naquele velho prédio da Praça da República. Depois da acusação, falariam, um a um,  os advogados de defesa. Todos se haviam saído relativamente bem, menos o do acusado por cuja liberdade eu lutava, embora a única peça de acusação fosse o depoimento de um oficial dedo-duro que reproduzia conversa reservada entre dois amigos ouvida no refeitório do quartel em que todos serviam. Último orador de defesa, Letelba defende seu constituinte. Seu brilhantismo, a arguição dialética me despertaram e vi ali a possibilidade de salvar o meu amigo réu. O julgamento é interrompido. Assistentes, tensos, familiares apreensivos, advogados relaxam os músculos. Caminham todos de um lado para outro, todos acorrem à cantina do Tribunal, em busca de água, café e talvez de um sanduíche. Como também de um pequeno bate-papo, na esperança de ouvir prognósticos promissores. Os julgadores se retiram. Procurei Letelba. Ele voltaria a falar na segunda rodada, para as considerações finais, após a réplica do promotor.  Pedi-lhe que, na tréplica, incluísse a defesa do réu cuja liberdade eu intentava salvar. Letelba não conhecia a causa, jamais tivera acesso aos autos, não participara de uma só audiência. Ouviu-me por uns poucos minutos e eu pouco pude informá-lo. Foi à tribuna e em meio à sua fala já comemorávamos a liberdade de nosso amigo. Como contei acima, a única ‘peça acusatória’ era o depoimento de uma testemunha de defesa que dizia haver ouvido do acusado, numa conversa no refeitório, determinado diálogo que o Promotor usava como prova de ação subversiva. Letelba, às tantas de sua oração, relata conversa que, no intervalo do julgamento, tivera com o Promotor, colega das lides forenses. O teor da conversa deixa mal o Promotor, que irrompeu aos berros, apoplético, acusando o colega de deslealdade por haver revelado diálogo que sem maiores  pretensões haviam tido faz pouco. E Letelba, sereno, irônico, pergunta ao algoz: — E é com base em uma delação, uma conversa entre oficiais amigos num refeitório do quartel, que o senhor que levar o capitão fulano de tal para a cadeia? –. A auditoria irrompeu em gargalhadas. Veio o veredicto. Todos os acusados foram absolvidos.

Esse profissional assim tão aplicado era também intelectual sem vaidades e despojado dos bens materiais. As recordações de Evandro nos conduzem a personagem que associa rigoroso engajamento político a um certo viver quase boêmio, se posso dizer boêmio daquele viver que se apaixona pela beleza da vida, que sabe usufruir de seus prazeres — ou seja, que, lembrando aquele poeta que se perdeu nas montanhas bolivianas, sabe endurecer sem perder a ternura. E, sempre, sem fazer concessões ideológicas.

Laranjeiras, RJ, setembro de 2010

 


* Prefácio a BRITTO, Evandro Rodrigues. O comunista que não deixou rastro. Rio. Editora Revan-FAPERJ. 2013