por: Roberto Amaral
Postado na Carta Capital on line dia 17/07/2013
A sociedade de classes se manifesta no serviço médico: para os muito pobres, nenhum médico; para os muito ricos, hospitais de ponta
A furiosa campanha corporativista dos médicos contra a vinda de colegas estrangeiros procura alarmar o país. No entanto, a atração de profissionais do exterior é prática antiga a que muito devem os Estados Unidos, a Rússia e muitos outros países. Não podemos ceder a essa manifestação de egoísmo classista, sob pena de ofender os direitos básicos da grande maioria de nosso povo, principalmente quando se sabe que um dos gargalos do nosso desenvolvimento é a carência de mão-de-obra qualificada.
Pesquisa do Ipea, realizada com 2.273 pacientes do SUS, mostrou que a falta de médicos é o principal problema de 58% dos brasileiros dependentes da rede pública. Temos algo como 300 mil médicos no exercício da profissão e 700 municípios (15% do total) sem um único profissional de saúde. Em outros 1,9 mil municípios, “3 mil candidatos a paciente disputam a atenção de menos de um médico por 30 segundos por pessoa”! (IstoÉ,10/07/2013).
O Brasil possui a vergonhosa média de 1,8 médicos por mil habitantes. Nossa vizinha e sofrida Argentina, 3,2; Portugal e Espanha, em crise, 4. Não citarei cifras de Cuba. Mesmo essa média é enganosa, pois, se o RJ possui 3,4 médicos por mil; SP 2,49 e MG 1,81; o Acre tem 0,94 médico por mil; o Amapá, 0,76; o Pará, 0,77; o Piauí, 0,92; o Maranhão, 0,58 (!); Amazonas, Bahia, Ceará e Tocantins têm 1 médico por mil habitantes (IBGE. 2012, CFM), o que evidencia a má distribuição dos médicos pelo nosso território. A propósito, das 130.000 vagas oferecidas a médicos pelo serviço público nos últimos 10 anos, apenas 90.000 foram preenchidas.
Mas o dr. Kalil, o médico da Corte e dos afortunados, é “terminantemente contra” a vinda de médicos estrangeiros porque, para haver medicina, é preciso haver “hospital bem estruturado” (FSP, 10/07/2013). Mas o que é, na realidade brasileira, ‘um hospital bem estruturado”? Não explica e ficamos sem saber.
O cerne da crise da assistência médica, no Brasil, não está, lamentavelmente, apenas, no minguado número de médicos, e na sua precária distribuição. Está, antes, na própria qualidade da formação médica, a começar pela ausência das cadeiras de ética e deontologia na grande maioria dos cursos. O formando de hoje é ‘treinado’ para transformar a residência em especialização da subespecialização ditada pelo mercado, e ter seu consultório particular, se possível fechado aos que ainda podem pagar planos de saúde. SUS, ora isso é nome feio.
Na verdade, a sociedade de classes se manifesta em sua dramática injustiça no serviço médico de um modo geral: para os muito pobres, médico nenhum; para os pobres, os médicos formados em cursos privados, muitos deles ‘cursos de fim de semana’. Para a classe média os médicos com residência e especialização, os que aceitam os planos de saúde. Para a alta classe-média e a pequena burguesia, os médicos formados nas escolas públicas, quase sempre com bolsa de iniciação científica pública, com residência (com bolsa de estudos fornecida por entidade pública) em bons hospitais (embora os hospitais-escola estejam em crise e os, demais, como as Santa Casas e quejandas sejam péssimos), e mestrado, especialização e doutorado (com bolsa de estudos do CNPq, da Fapesp ou da Faperj ou de alguma outra agência estadual) no exterior, de preferência. Para os ricos ou membros da ‘nova classe’, os Sírio Libanês, os Einstein ou… Boston.
O leitor se deu conta de que entre os hospitais brasileiros de excelência não se mencionam mais os públicos? Talvez a única exceção sejam o Incor em São Paulo (hoje uma fundação) e o Inca no Rio, ambos sempre a braços com crises financeiras.)
O formando em medicina, principalmente em universidade pública, nas quais, em regra, os cursos são bons, é preparado psicológica e eticamente para trabalhar num Sírio Libanês, tendo ao seu lado equipamento de última geração e alimentando a expectativa de fama profissional. Eles vivem nos seriados tipo Dr. Kildare ou House. Não é só Brasília que ignora o Brasil real. Do alto de seu prestígio, o cardiologista oficial da Corte, com a bata de doutor do Sírio, nos diz que o mais importante não é médico, mas equipamentos. Mas, de que servem equipamentos sem médicos? E diga-nos esse doutor, qual país do mundo, incluindo os EUA e as maravilhas sociais dos países escandinavos, pode oferecer condições ideais de trabalho para seus médicos e atendimento médico universal gratuito fundado na parafernália eletrônica? E quando poderá este país de 200 milhões de habitantes e mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados assegurar hospital para todos os brasileiros e para todos os brasileiros a ciência médica praticada no Sírio? Condições de trabalho, queremos todos, não só os médicos, querem os motoristas de ônibus, os advogados que enfrentam uma Justiça que não funciona, os enfermeiros que sofrem nas mãos de médicos, os engenheiros, os agrônomos, os operários de chão de fábrica, os professores, sem salários, sem laboratórios, sem transporte, toda gente. Melhoria do transporte coletivo é também melhoria das condições de trabalho. Isto não é pleito de uma classe, mas exigência de uma sociedade em busca de progresso que depende de seu enriquecimento e simultânea distribuição de renda.
Pergunto ao dr. Kalil: quem foi esse senhor dos fatos que decidiu que só uns poucos, essa minoria da minoria privilegiada, tenham direito à sua clínica cardiológica, e os outros não tenham direito a clínica nenhuma, porque seus médicos esperam hospitais “adequadamente aparelhados” etc. etc.? No sertão, um estetoscópio e um aparelho de tomada de pressão arterial já salvam vidas.
Afinal, o dr. Kalil, bom médico que é, deve ter cedo aprendido que medicina é diagnóstico, e que, mesmo sem dispor do precioso auxílio de equipamentos (não que os dispensemos) e de exames (que não que os dispensemos), o bom médico é capaz de, ao menos, dar conforto aos seus pacientes e, sempre que possível, levá-los à cura. A alternativa ao médico nenhum é o curandeirismo, a indicação do balconista da farmácia, a indicação do vizinho…
O Brasil real não é aquele oferecido pelos hospitais Sírio Libanês ou Einstein, que não são, sequer, a realidade da capital paulista. O Brasil real é o Brasil da periferia de Rio, de São Paulo e de todas as capitais, para não falar do Norte de Minas Gerais, do semi-árido nordestino, do vazio do Centro-Oeste, da Amazônia inóspita. O Brasil real não pede especialistas em subespecialidades, nem carece de ‘máquinas de última geração’ para fazer partos, tratar disenteria, consertar uma perna quebrada, aliviar um mal-estar, diagnosticar uma tuberculose, uma cardiopatia, uma ‘barriga d’água’… Precisa, sim, de clínicos, milhares de clínicos e generalistas, que tenham tempo de conhecer seus pacientes. Pergunta-nos para em seguida responder o dr. Adib Jatene: O que queremos de um médico? Que ele saiba diagnosticar o que você está sentindo. Que ele saiba analisar a sua dor, a febre, sem precisar de tecnologia (OESP, 09.07.13). O resto é o resto: corporativismo de quinta categoria.
Diz ainda o dr. Jatene, a quem devoto respeito, que, onde tem hospital tem médico. Invertendo o juízo ficamos sabendo: onde não há hospital, não há médico. Donde a solução ser construir hospitais e tê-los, e mantê-los de alta qualidade em todos os municípios do Brasil. Evidentemente, se possível privados, e se possível de padrão próximo ao do Sírio Libanês. Quando isso será possível? Digamos, otimisticamente, que daqui a 50 anos. E até lá? Admitamos, só para raciocinar com os doutores, que já tivéssemos hoje esses hospitais. Onde iríamos buscar os médicos? Hoje, formamos 18 mil médicos ao ano, o que não atende nem à demanda, nem à qualidade, nem assegura distribuição para o interior.
Saberá o dr. Kalil que o Brasil possui 5.570 (número que vai aumentar brevemente) municípios, alguns com população maior que a de vários países do mundo (SP capital tem 12 milhões de habitantes), e alguns, como Altamira, no Pará tem território quase duas vezes maior que o de Portugal? Saberá que Roraima tem 15 municípios e Minas Gerais 853? Saberá de que Brasil está falando?
Que fazer?
O Dr. Jatene responde. Investir, no curto prazo, na ‘importação’ de jovens médicos estrangeiros, submetidos a reavaliação, e na formação complementar de dois anos, porque hoje formamos apenas médicos candidatos à residência médica – que formam especialistas – e esses médicos não vão atender às nossas necessidades, pois precisamos de médicos para atender à população sem necessariamente ter de usar a tecnologia. Essa formação complementar seria focada em urgência e emergência. É preciso investir na formação para que esse profissional vá trabalhar dois anos no atendimento básico da população do Estado em que se formou. Temos faculdades de Medicina em todos os Estados. Todos. Só que os médicos se formam e não ficam em suas cidades, eles vêm fazer residência no Sul e no Sudeste (OESP, idem.).
E no Sudeste ficam.
A medida, vou mais adiante, deveria valer para todos os profissionais formados em escolas públicas ou, se em escolas privadas, com bolsa de estudo público. O concludente ou saldaria o custo do investimento público ou permaneceria dois anos à disposição do Estado, que indicaria, atendendo evidentemente à sua formação acadêmica, onde iria trabalhar. Depois disso, vá ser rico onde quiser.