por Sérgio Sérvuloimages

Democracia intrapartidária significa a implantação da democracia no funcionamento interno dos partidos políticos. Da forma como funcionam atualmente, são ditatoriais todos os partidos brasileiros.

Em nenhuma das propostas de reforma política, que circulam nessa antevéspera do plebiscito, encontrei a sugestão de democracia intrapartidária. Ela me parece, entretanto, mais importante do que qualquer outra que se possa apresentar.

No meu livro sobre Ética (Saraiva, 2012), ao tratar de moral e política, escrevi:

 “……. o maior passo para renovação do sistema eleitoral-partidário – e, por consequência, da democracia representativa – neste momento, é a implantação da democracia intrapartidária.

Os partidos políticos funcionam hoje como cartórios para a formalização de candidaturas, como facções do oficialismo e como propriedade de seus caudilhos. Mas se em pouco mais de duzentos anos foi possível um grande progresso na implantação da democracia constitucional, é igualmente possível conseguir-se a democratização dos partidos políticos, de modo que passem a desempenhar o papel para eles reservado na teoria democrática.

 

Um sucinto exame do estatuto partidário revela se ele é democrático ou autoritário.

 

Será autoritário se permitir, por exemplo, que o ocupante de funções partidárias executivas se apresente como candidato a cargo público; se não impedir a curralização dos seus quadros (por exemplo, mediante normas estabelecendo, para o novo filiado, quarentena que o impeça de votar nas próximas convenções partidárias e de se candidatar nas próximas eleições); se não reconhecer direitos às minorias partidárias; se não contiver disposições normatizando a realização das convenções partidárias, principalmente quanto ao credenciamento de delegados e à forma do escrutínio”.

 

Como conseguir-se a democratização intrapartidária? Ela precisa ser feita dentro dos marcos da Constituição brasileira, que em seu art. 17 consagra o princípio da liberdade de criação e funcionamento dos partidos políticos. Em outras palavras, a lei não pode proibir a criação e funcionamento de partidos antidemocráticos (ressalvadas as regras impostas pelo art. 17).

Mas, se a lei não pode impor a democracia interna, pode criar incentivos à sua implantação. Minha proposta é no sentido de que os partidos democráticos sejam favorecidos com a atribuição de quotas diferenciadas no tempo de propaganda gratuita e na participação no fundo partidário.

Como isso é muito importante, peço licença agora para uma referência ao art. 17 da Constituição brasileira, que diz:

“É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: I — caráter nacional; II — proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes; III — prestação de contas à Justiça Eleitoral; IV — funcionamento parlamentar de acordo com a lei. § 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias. § 2º – Os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral. § 3º Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei. § 4º É vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar”.

A fonte desse art. 17 é, com a interrupção de 1937, a experiência iniciada em 1930 (mais precisamente com o código eleitoral de 1932), que floresceu a partir de 1945 e encerrou-se em 1964. O período de 1964 a 1985 é o contraponto autoritário que, nessa qualidade, matiza aquela experiência. [1]

Durante a Constituinte, no amplo receituário das propostas, ressurgiram as formas restritivas e intervencionistas tão a gosto do autoritarismo: voto majoritário, cláusula de barreira, proibição de coligações, cartorialização do partido político. Foram derrotadas.

O constituinte optou pelo pluralismo partidário e pela liberdade de organização do partido político, que assegurou com uma verdadeira garantia: nenhuma exigência, para sua criação, além daquelas que constem, da lei civil, para a existência de qualquer associação.

Isso, evidentemente, não faz do partido político uma pessoa jurídica de Direito privado: o acesso à existência legal sem outro requisito além dos exigidos para qualquer associação civil, protege os partidos políticos contra a intervenção dos interesses dominantes, que costumeiramente se encarta nas normas infra-constitucionais.

Se há democracia, a Constituição e os partidos políticos não podem ser produtos artificiais. A personalização do partido na forma da lei civil não significa o retorno à primeira república, quando o partido não possuía status público; nem o regresso à década de (19)30, quando o partido não possuía status constitucional. Significa a reafirmação do seu caráter público não-estatal, emanação da sociedade civil, não só a fórmula institucionalizada através do seu reconhecimento público, mas a fórmula institucionalizante, elemento indispensável para a formação do poder político. O art. 17 da Constituição de 1988 é a síntese feliz dessa evolução.

Das duas tendências atuantes na legislação brasileira com respeito à organização eleitoral-partidária — de um lado a tendência liberal e democrática, de outro a intervencionista e autocrática — seria difícil dizer qual a vencedora.

A Constituição de 1988 consagra a vitória dos princípios liberais e democráticos, expressos basicamente no voto proporcional e na liberdade de organização partidária. Leva adiante, assim, o processo de democratização que somente a partir de 1932 encontrou condições de se institucionalizar.

Mas a tendência intervencionista e anti-democrática, prevalecente nos períodos de exceção (vejam-se notadamente o dec. lei n. 37, de 2 de dezembro de 1937, o ato institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965, e a lei n. 6.767, de 20 de dezembro de 1969), busca insistentemente, mesmo nas fases de abertura institucional, as alterações legais e constitucionais que atendam aos seus interesses. Foi o que aconteceu no ciclo 1946-1964 e se repete no período pós-ditatorial, levando Giovanni Sartori a esta afirmação: “Provavelmente nenhum país no mundo atual é tão avesso aos partidos como o Brasil, na teoria e na prática”. [2]

[1] A partir daqui, estou reproduzindo trechos do “Manual das eleições” (Saraiva), que escrevi juntamente com o dr. Roberto Amaral.

[2] Giovanni Sartori, Comparative constitutional engineering, New York University Press, 1994; na tradução brasileira de Sérgio Bath, Engenharia Constitucional, Brasília, Ed. UnB, 1996, p. 112.