Leia entrevista do ex-Presidente Mario Soares sobre a crise de Potugal, o governo conservador e a União Européia. Veja em ‘Não deixe de ler’
Mário Soares. “Por muito menos que isto foi morto o rei D. Carlos”
O ex-Presidente da República é o primeiro socialista a assumir em voz alta que Portugal devia dizer à troika “não pagamos”. Soares acredita que mais cedo ou mais tarde a direcção do PS acabará por romper com a troika. Três meses depois de uma grave doença que o obrigou a um internamento hospitalar – “estive à morte”, afirma nesta entrevista -, Mário Soares volta à primeira linha da oposição ao governo. É profundamente crítico de Cavaco Silva, sobre quem afirma não ter consciência da crise que se vive no país: “O Presidente Cavaco Silva devia lembrar-se da história do século xx. Por muito menos foi morto D. Carlos.” Depois da doença, Soares fez as pazes com Manuel Alegre e “pôs uma pedra sobre o passado”. Agora falam praticamente todos os dias ao telefone.
O senhor doutor escreveu esta semana que “quando não há dinheiro não se paga”. Defende que Portugal devia dizer “não pagamos” aos credores externos? Mas isso não punha em risco os pagamentos do Estado?
Parece-me ser evidente o que disse. Quando não há dinheiro não se paga. Foi o que se passou com a Argentina, entre outros países, e nem por isso o povo ficou pior. Ora as dívidas que temos são tantas (e os juros tão altos) que creio que não poderemos pagar. Mas, se soubermos dizer que não pagamos, é óbvio que os portugueses darão um suspiro de alívio. A pobreza começa a desaparecer bem como o desemprego. É preciso é não termos medo de o dizer, com coragem e altivez.
Portugal devia, então, fazer o que a Argentina fez com o FMI?
As situações são diferentes, mas é um facto que o exemplo da Argentina nos pode ajudar a ter coragem. Por outro lado, o FMI muda muito, como se tem visto.
Essa posição não correria o risco de nos atirar para fora do euro?
Não creio. Talvez seja, pelo contrário, uma forma de salvar o euro. Porque não se esqueça que o que nos acontece tem a ver muito com a situação da Grécia, da Espanha, da Itália e até da França, sem esquecer a Irlanda, Chipre e alguns outros estados da zona euro. O essencial para salvar o euro (e a União Europeia) é repor os mercados usurários a obedecer aos estados, e não o contrário.
Não se têm visto socialistas, e muito menos na direcção do PS, a defender o “não pagamos”. Discorda da direcção do PS, que acabou de enviar uma carta à troika a dizer que o PS “honrará os compromissos internacionais”?
É verdade. A cumprir aquilo com que o PS, no tempo de Sócrates, se comprometeu, o que não tem nada a ver com a subserviência com que o actual governo se comportou desde que assumiu o poder. A troika hoje funciona como se fosse dona de Portugal e nos quisesse arruinar como estado-nação, o que é inadmissível para um estado que, como sabe, é o mais velho da Europa…
Com esta correlação de forças na Europa, como é possível travar a austeridade? François Hollande parecia vir cheio de força, mas conseguiu muito pouco. Ainda acredita em mudanças na Europa no sentido de travar a austeridade?
Acabar com a austeridade e pôr os mercados usurários a obedecer aos estados, como sempre aconteceu antes da crise, é condição sine qua non para salvar o euro e a própria União Europeia. Penso que a Europa não pode autodestruir-se e que os seus dirigentes, apesar de incapazes, hão-de um dia ter bom senso e perceber o poço em que estão a cair. Hollande, é verdade, está em maiores dificuldades do que se esperava.
Escreveu esta semana no “Diário de Notícias” que “elogiar politicamente Margaret Thatcher é um mau sinal para a Europa, que, a prosseguir, nos pode levar a um desastre de consequências imprevisíveis”. Esse desastre não está em curso já?
É verdade. Thatcher, e o seu correligionário Ronald Reagan, foram quem lançou o neoliberalismo e o conceito imbecil de que o dinheiro vale mais que as pessoas. Além disso, destruiu os partidos europeus que fundaram a Europa: os sociais-democratas (ou trabalhistas ou socialistas) e os democratas-cristãos. E tentaram substituí-los por partidos ultraconservadores – em que as pessoas não contam e só o dinheiro é importante. Foi o que nos levou à crise actual – que é política, social, ética e ambiental, e ao tremendo desastre que está realmente em curso. O Presidente Cavaco Silva parece que não acredita que há crise e é por isso que se permite passar uma semana na Colômbia e no Peru.
A Espanha está em crise, a Itália em crise económica e política, a Grécia à beira do caos. Não existem hoje, na prática, duas Europas – a dos pobres e a dos ricos?
Não creio. Sempre vi a Europa como um conjunto de estados solidários entre si e em igualdade. A Grécia não está à beira do caos, pelo contrário: depois de receber o dinheiro indispensável para so-breviver, pediu uma indemnização à Alemanha, que lhe é devida desde a Segunda Guerra Mundial. Não há duas Europas, há só uma: a da zona euro. A pobreza e a riqueza variam constantemente. Exemplo: a Alemanha, como era previsível, começa a estar em maus lençóis. Os estados não se avaliam pelo dinheiro que têm, mas sim pela sua história e pela sua gente. Nesse sentido, Portugal não pode ser considerado um país pobre, bem pelo contrário.
O senhor doutor defende há muito a demissão deste governo. Mas não defende eleições. No nosso sistema político, como é que isso se poderia resolver?
Claro que é um governo sem ideias nem convicções, que faz só o que a troika lhe manda. É um governo moribundo, que paralisa o país e ainda não compreendeu que está a morrer, é odiado pela esmagadora maioria dos portugueses – por isso os ministros são vaiados quando surgem em público, fogem sempre – e não tem vergonha nem um mínimo de dignidade. É verdade que não defendo eleições porque no estado actual só virão complicar e não resolverão nada. Tudo depende, como se diz, do Presidente da República, que fala o menos possível e parece que julga que não há crise. Mas mais cedo ou mais tarde tem de assumir as suas responsabilidades. Veremos como.
O Presidente da República devia chamar PSD, CDS e PS e pedir-lhes um acordo para apoiar um novo governo?
Agora é tarde. Devia ter pensado nisso quando o governo injuriou e tentou humilhar o PS, de todas as maneiras. Até que o líder do PS, António José Seguro, gritou: basta de humilhações! E disse – e bem, quanto a mim – que este governo está morto e tem de se ir embora antes de uma fatalidade. O Presidente Cavaco Silva devia lembrar-se da história do século xx. Por muito menos que isto foi morto D. Carlos, que aliás era um bon vivant e chamava ao seu país a “piolheira”… Quanto à posição do CDS – atenção! -, não pode continuar a dar uma no cravo e outra na ferradura. A continuar assim, o CDS tende a desaparecer.
E quem poderia ser o primeiro-ministro de um governo apoiado por este parlamento?
É uma pergunta a que não posso nem devo responder. Só o Presidente Cavaco Silva lhe poderá responder, se souber…
Mas acredita que o Presidente da República alguma vez demitirá este governo? Ele praticamente já disse que nunca o fará.
Se diz, é natural que cumpra. A menos que os factos imperativos o obriguem a mudar de posição. Como disse Sócrates – e bem -, este governo tornou-se um governo de iniciativa presidencial, o que representa para o Presidente da República uma enorme responsabilidade.
Pensa que o governo cairá por ruptura da coligação ou demissão do primeiro-ministro?
Acho que chegará um momento em que qualquer das hipóteses da sua pergunta pode ocorrer…
O PS defende que existam eleições já.
Não creio, neste momento, que seja oportuno fazê-lo. Quanto a coragem, acho que não falta ao líder do PS, António José Seguro. Mas além do líder é importante ouvir o partido no seu conjunto.
Mas se ganhasse as eleições acredita que o PS teria coragem de romper com a troika nos moldes que o senhor defende?
Quanto a romper com a troika, além de Seguro ser um patriota, é evidente que terá de o fazer, mais cedo ou mais tarde… A troika é o maior inimigo de Portugal e quem manda na troika são os mercados usurários.
Foi crítico do regresso de Sócrates à ribalta política. Mas depois acabou por aplaudir. Sócrates não virá fazer sombra a Seguro?
É verdade o que diz. Mas quando o ouvi – com a clareza e a inteligência com que o fez – dei o braço a torcer. Aliás, escrevi um artigo sobre isso. Acho que, como se tem visto, não é essa a intenção de Sócrates. Aprendeu muito nos dois anos que passou em Paris. É hoje um outro homem, muito mais culto e ponderado do que era. Não é sua intenção fazer sombra a Seguro nem, como disse, ser primeiro-ministro ou Presidente. Quer continuar em Paris, com os filhos, porque sabe muito bem que atrás de tempo tempo vem…
Recentemente, o senhor doutor veio defender que tudo devia ser feito para preservar as boas relações entre Portugal e Angola. É indispensável Portugal virar-se hoje para os países africanos de expressão portuguesa?
É verdade. É o que penso. Angola é um país irmão, onde trabalham mais de 100 mil portugueses. A guerra civil passou. Os tempos mudaram. Sinto, como patriota português, que devemos trabalhar com o governo, na medida do possível, porque Angola é um dos mais importantes estados africanos, sem esquecer Moçambique. Quanto a Angola, a guerra civil passou e o governo está a evoluir. Precisamos de o ajudar, se o entenderem assim. Estive ligado, como se sabe, à descolonização de Angola, de Moçambique e de todos os países africanos de língua portuguesa. Lutei pela paz em Angola, não por Savimbi ou por Agostinho Neto ou por José Eduardo dos Santos. Mas nunca tomei partido por um lado ou por outro, ao contrário do que alguns colonialistas quiseram acreditar. Honro-me de ser anticolonialista desde muito antes do 25 de Abril e sempre depois de Abril. Mas em guerra civil não podia – nem devia – tomar partido por nenhuma das partes. A CPLP não é a Commonwealth portuguesa, é muito diferente da inglesa. Veja-se que o Brasil, com muita honra, faz parte da CPLP e Londres nunca quis a América na Commonwealth…
O senhor doutor é agnóstico, mas tem feito enormes elogios ao novo papa Francisco. O que vê neste papa de diferente em relação aos antecessores?
Vejo tudo. É um papa que afirma que o capitalismo selvagem é algo que não pode continuar, que visita os pobres e os presos. São coisas excepcionais, que nunca se viram. Está a construir uma Igreja a sério, a Igreja dos grandes valores. Este papa é uma figura extraordinária, que vai revolucionar a Igreja e vai levar muitos católicos e não católicos a ficarem a seu lado. Ele fala para os católicos e para os não católicos, de outras religiões. E também para os ateus. É uma coisa nova. Vai modificar a Igreja e eu espero sinceramente que dê um novo apoio aos partidos democratas-cristãos que acreditam nas posições do papa Francisco. Não foi por acaso que ele escolheu o nome de um franciscano, sendo jesuíta. E bem. Em vez de falar em S. Francisco Xavier, que, como ele, era jesuíta, fala em Francisco de Assis. Está de corpo e alma com os franciscanos e por isso decidiu chamar-se Francisco. Espero que o papa Francisco – que não gosta da austeridade – faça um novo concílio e impulsione de novo os democratas-cristãos no plano político e social.
O senhor doutor acabou de sair de uma grave doença. Hoje está recuperado. Sente-se um homem diferente, começou a tomar mais conta de si? A doença mudou-o de alguma forma?
Estive à morte, inconsciente durante cerca de dez dias. Fui salvo graças a um médico excelente do Hospital da Luz, o Prof. Ferro. No que diz respeito à encefalite, a equipa médica entre a qual distingo José Roquete, João Sá, Nuno Cardim, João Strecht, além da sábia Maria de Sousa, que contactou o grande neurocientista António Damásio, na Califórnia, grande amigo, que manteve um contacto constante com a equipa que me tratou e salvou. Quanto ao resto, quando recuperei a consciência, comecei a fazer o que sempre fiz, com o meu médico, Daniel de Matos (que foi quem me levou para o hospital) e a quem sempre, como é meu hábito, obedeci. Também tive a sorte de ser tratado, durante a convalescença, com a enfermeira-chefe Paula Caetano, que cuidou de mim com autêntica devoção.
Foi sempre uma pessoa totalmente saudável. Como viveu aqueles dias de internamento?
Não. Em jovem fui asmático. Depois passou-me. Mas no colégio chamavam-me lingrinhas por ser fraco e magro. Mas depois – nas prisões e nos exílios – tornei-me, curiosamente, mais saudável. Vivi esses dias em grande parte inconsciente e depois, como sempre fiz, cumpri tudo o que os médicos me indicaram.
É depois da doença que faz as pazes com Manuel Alegre. Como é que isso aconteceu? Já se voltaram a encontrar-se depois disso?
É muito fácil de responder. O Manuel Alegre durante a minha doença preocupou-se muito com a minha saúde. Falou muitas vezes com os meus filhos e a minha mulher e perguntou por mim e pelas minhas melhoras. Percebi que era meu amigo e que punha a amizade acima da política. Eu também. Por isso lhe telefonei. Estando ao lado do Seguro, perguntei-lhe se tinha o telefone do Alegre e falei-lhe a agradecer o cuidado que teve por mim e a pôr uma pedra sobre o passado. Foi assim que fizemos as pazes. Depois disso, já almoçámos juntos e temos falado quase todos os dias pelo telefone.