“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(…) IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(Constituição Federal, art. 3º, IV)

“XI – O Partido não se destina a lutar pelos interesses exclusivos mas pelo de todos os que vivem do próprio trabalho”
(Programa do Partido Socialista Brasileiro)

A luta dos socialistas contra todas as formas de opressão, e em defesa dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, não é um compromisso pontual, circunstancial, transitório. Ela não se atém a conveniências de momento ou objetivos de curto prazo, como, por exemplo, o bom desempenho nas urnas. É uma luta que, sempre renovada em razão dos desafios postos pelas circunstâncias, define a razão e o modo de ser socialistas. Pela própria natureza do seu empenho, os socialistas buscaram e buscam transpor barreiras de classe, de gênero ou nacionalidade, combatendo a marginalização e o preconceito – em certos casos, sem se poupar da autocrítica.
No Brasil, país moldado pelo autoritarismo e a exploração de classe herdados da lavoura colonial, os socialistas lutaram contra a ditadura do Estado Novo, defenderam a posse de JK, a posse e o governo de Jango, as ligas camponesas comandadas por Francisco Julião. Resistiram desde o primeiro momento – pagando, por isso, o preço correspondente – ao golpe militar de 1º de abril de 64, que apeou do poder um mandatário eleito pelo voto popular e lançou o Brasil nas trevas de uma nova ditadura. Na Assembleia Constituinte defenderam, por exemplo, o direito de greve, a jornada diária de seis e a semanal de 40 horas, a unicidade sindical e a reforma agrária, além da punição da tortura como crime inafiançável e imprescritível.
Deve-se à luta de socialistas e outras correntes de esquerda grande parte dos compromissos fundamentais sedimentados na Carta de 88, a chamada ´Constituição cidadã`. Cito como exemplo:

Art. 3º) Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Desta forma, foi com entusiasmo que os socialistas apoiaram, há pouco, a aprovação da PEC 66/2012, a chamada “PEC das Domésticas”, que estende aos empregados domésticos direitos já garantidos aos demais trabalhadores com carteira assinada. Em que pesem as queixas, compreensíveis e esperáveis, da classe dominante e de setores mais atrasados da classe média, é inegável que essa conquista consiste num avanço civilizatório e no justo atendimento ao pleito de mais de 7 milhões de trabalhadores e trabalhadoras.
Agora, está na ordem do dia, na Câmara, o Projeto de Lei nº 4211/2012, de autoria do deputado federal Jean Wyllis (PSOL-RJ), que “regulamenta a atividade dos profissionais do sexo”. Filho dos PLs 98/2003 e 4244/2004, escanteados, o PL ora em pauta na Comissão de Direitos Humanos e Minorias leva o nome de “Lei Gabriela Leite”, em justa homenagem à socióloga, ex-prostituta e criadora da ONG Davida, referência nacional e internacional na luta desses profissionais pelo reconhecimento de seus direitos.
Curto, direto e simples em sua apresentação, o PL nº 4211 trata, fundamentalmente, de oferecer uma definição correta – isto é, livre de concepções estigmatizantes – de profissional do sexo, logo uma diferenciação (igualmente imprescindível) entre prostituição e exploração sexual, além de reconhecer a exigência de pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual, como também o direito do profissional do sexo à aposentadoria.
Trata-se de um avanço, no que refere ao reconhecimento dos direitos desses trabalhadores (hoje expostos a um vácuo de legalidade), coerente com a inclusão da atividade de profissional do sexo na CBO – Classificação Brasileira de Ocupações, do Ministério do Trabalho e Emprego (o código correspondente é o nº 5198-05), ferramenta fundamental para a elaboração de políticas trabalhistas. E coerente, também, com a jurisprudência, visto que os tribunais do trabalho, em obediência ao disposto na Constituição, têm reconhecido o vínculo empregatício entre os profissionais do sexo e os estabelecimentos em que trabalham.
Claro que a regulamentação da atividade encontra resistências. Na sua ausência, vige um mercado vigoroso (tão clandestino quanto visível) em que empresários lucram deixando de pagar impostos e direitos trabalhistas, policiais corruptos se esbaldam em propinas, clientes inescrupulosos realizam suas fantasias com crianças e adolescentes, e prostitutas e prostitutos, submetidos ao estigma e ao vazio legal, carecem de defesa.
Em debates no Legislativo, levanta-se contra o Projeto uma pletora de argumentos, todos falaciosos. Diz-se que a regulamentação levará à exploração de menores, quando se trata justamente do contrário: ao retirar a profissão da meia-luz jurídica, a regulamentação oferece instrumento fundamental para a responsabilização penal dos envolvidos, o que servirá para coibir a exploração de menores e o tráfico de pessoas. A aprovação do PL estimulará o crescimento desse mercado, consolidando a imagem do Brasil como ´paraíso do turismo sexual`, onde ´vale tudo`? É duvidoso. Haveria que examinar os casos, por exemplo, da Alemanha, da Áustria, da Holanda e da Hungria, ou do estado de Nevada, nos EUA, para uma projeção mais segura. É possível que a valorização desses profissionais atraia mais homens e mulheres para essa ocupação. É provável, por outro lado, que haja um decréscimo no afluxo de turistas em busca de aventuras com crianças, e que parte dos donos de boates e termas migrem para outras atividades, para continuar livres do jugo da lei.
Aventa-se, ainda, um argumento carente de sentido: a regulamentação da atividade de prostitutas e prostitutos “atenta contra a família brasileira”. Como assim? Que necessidade tem a família brasileira de que essas pessoas continuem a ser marginalizadas, superexploradas, sujeitas a toda sorte de violência e insalubridade, enquanto o Estado se omite do dever de protegê-las? Não teria a família brasileira muito mais a ganhar com um novo passo na direção de uma sociedade em que as garantias constitucionais sejam estendidas a todos? Por fim, considerando que a família brasileira é, na realidade, plural, é certo que os parentes de prostitutas e prostitutos não seriam atingidos de modo negativo pelo reconhecimento da cidadania de seus entes queridos.
Em suma, a aprovação do Projeto de Lei nº 4211/2012 é justa e necessária. Não se pode obstá-lo, por exemplo, com base em dogma religioso. Entre os princípios que orientam o Programa do Partido Socialista Brasileiro, temos:

“V – O partido não tem concepção filosófica da vida, nem credo religioso; (…)”
“XI – O Partido não se destina a lutar pelos interesses exclusivos mas pelo de todos que vivem do próprio trabalho (…)”

E ainda, no tópico “Organização e Trabalho” do Programa adotado pelo Partido, lê-se:

“O cidadão prestará à sociedade o máximo de serviços, dentro de suas possibilidades e necessidades pessoais, sem prejuízo da sua liberdade, quanto à escolha de sua empresa e natureza da ocupação.

Com o exposto, espero haver deixado claro que o PSB não pode faltar com o seu apoio à justa reivindicação de prostitutas e prostitutos, senão ao preço de trair seus compromissos e lutas históricas, bem como os princípios em que se funda seu Programa.
É preciso, pois, apoiar a aprovação do PL nº 4211/2012.

Pedro Amaral
(da Liderança do PSB na Câmara dos Deputados)