À memória de Leodegário A. de Azevedo Filho e

 em homenagem à sua edição da Lírica de Camões.

Debaixo desta pedra está metido,

   das sanguinosas armas descansado,

   o capitão ilustre, assinalado,

   Dom Fernando de Castro esclarecido.

Por todo o Oriente tão temido,

   e da enveja da fama tão cantado,

   este, pois, só agora sepultado,

   está aqui já em terra convertido.

Alegra-te, ó gloriosa Lusitânia,

   por este Viriato que criaste,

   e chora-o, perdido, eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia,

   que, se a Roma co ele aniquilaste,

   nem por isso Cartago está contente.

 

Dom Fernando de Castro – filho de Dom João de Castro, que foi governador da Índia portuguesa de 1545 a 1548 – morreu a 10/08/1546, no segundo cerco de Diu, em consequência da explosão de uma mina colocada debaixo do baluarte que defendia – o São João – pelos rumes sitiantes. Segundo Diogo do Couto, na Década VI da Ásia (Liv. II, Cap. X), e Gaspar Correia, nas Lendas da Índia (Liv. IV, Cap. XL), seu cadáver foi inumado (em sepultura rasa provisória, pelo que se deduz dos relatos) na igreja, e os das demais vítimas da explosão, para mais de cinquenta, foram enterrados coletivamente, numa vala comum. Correia acrescenta que estes jazigos foram cavados à noite, às pressas, antes que o dia amanhecesse, para que os sitiadores não pudessem ver o grande número de mortes que haviam causado. Na Vida de Dom João de Castro, Quarto Viso-Rei da Índia, Jacinto Freire de Andrade confirma que

 

A Dom Fernando de Castro depositaram em separado enterro por se o Governador seu pai quisesse trasladar-lhe os ossos a lugar diferente, lavrar-lhe-ia túmulo mais soberbo, porém não mais ilustre (p. 213 da ed. de Paris, 1779).

 

Dom João não deve ter tido ensejo de fazê-lo – pelo menos para um monumento grandioso –, pois finou-se dois anos depois, em Goa. Em carta de 23/11/1546, escrita de Diu à Cidade de Goa, que lhe solicitara garantias para o empréstimo de vinte mil pardaus que o governador pedira para a reconstrução da fortaleza, diz D. João, com revoltada ironia, que mandou desenterrar D. Fernando para enviá-lo como penhor da dívida, “mas acharam-no de tal maneira, que, não foi lícito inda agora de o tirar da terra”. Ofereceu então, em substituição, os pelos de suja própria barba, já que não dispunha de bens para empenhar, oferecimento que se tornou proverbial.

Certamente o traslado terá sido feito muito mais tarde, para sepultura definitiva, durante o período em que Camões esteve na Índia, entre 1553 e 1567, quando poderia ter composto o soneto. Daí dizer, nos versos 7 e 8, “só agora sepultado”, mas “já em terra convertido”, o que significa que estivera enterrado por muitos anos, dele só restando os ossos. Assim pensava também A. J. da Costa Pimpão, embora considerasse incerto quem fosse o morto. Citou, porém, a opinião de Wilhelm Storck, favorável ao filho de D. João de Castro (Cf. Luís de Camões, Rimas, Autos e Cartas, nova ed., Porto, Civilização, 1983, p. 481). Essa, igualmente, a razão de o Poeta empregar, no verso 2, o particípio passado “descansado”, que não se deve apenas à necessidade da rima. D. Fernando havia morrido há muito e, portanto, já estava descansado das sanguinosas armas. A expressão “só agora” também denota a coincidência entre a cerimônia de trasladação e a feitura do poema.

Uma indicação junto ao incipit deste soneto no Índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro parece querer dar a entender, sem qualquer fundamento, e contrariando o texto que se conhece, que o homenageado seria D. João de Castro, ou pelo menos que o soneto em louvor de D. Fernando foi dedicado ao pai, o que também resulta improvável, pois este falecera havia anos e, a meu ver, não teria muito sentido uma dedicatória póstuma. De qualquer forma, do texto que figuraria no citado Cancioneiro só se possui hoje o primeiro verso.

D. João de Castro mesmo, a princípio, foi enterrado numa igreja em Goa, tendo seus restos sido transferidos, depois, para o antigo Convento de São Domingos de Benfica, em Lisboa, depositados primeiro numa capela alheia e, posteriormente, em magnífica capela própria, mandada erigir por um seu descendente, o bispo D. Francisco de Castro. Nesse imponente panteão estão colocados, em sarcófagos pousados sobre elefantes, a exemplo de alguns túmulos existentes na igreja dos Jerônimos, D. João, seu filho primogênito D. Álvaro – que também esteve com ele na Índia e levou um socorro a Diu durante o referido cerco – e as respectivas mulheres, D. Leonor Coutinho e D. Anna de Athayde. Também estão ali depositados, em sepulturas mais simples, o construtor da capela, D. Francisco, e outra pessoa. Mas não existe nenhuma lápide alusiva a D. Fernando, pelo que se deve concluir que seus restos não foram para lá, como confirmaremos adiante.

Em 1906, por iniciativa do Governo do Distrito de Diu, foram efetuadas escavações no recinto das ruínas da antiga Sé do Castelo, primitiva Igreja de S. Tomé, com o propósito de resgatar, do abandono e esquecimento em que se achavam, os restos dos mortos nos dois famosos cercos da Praça, e trasladá-los depois, solenemente, para um monumento condigno, adrede construído na Capela de Santiago. Um dos principais objetivos desses trabalhos era tentar localizar a sepultura de D. Fernando. Como resultado, foram encontrados vários enterramentos, uns coletivos, contendo grande número de ossadas, outros individuais. Entre estes últimos foram expostos dois covais argamassados, com o revestimento interno muito bem conservado e com apenas um esqueleto em cada um. Por se encontrarem em frente do lugar que devia ter sido ocupado pelo altar-mor do templo, acreditou-se muito provável pertencerem a pessoas de distinção. Estavam tapados com pedra ordinária do distrito, sem inscrições nem adornos. Pelo revestimento argamassado que apresentavam, não pareciam sepulturas de enterramento, mas sim de trasladação, podendo suceder que fossem eles, de fato, os túmulos em que se depositaram os restos mortais do heroico filho de D. João de Castro e de quaisquer outros portugueses de renome.

Em resumo, naquela ocasião foram baldados todos os esforços para identificar, de forma indubitável, o jazigo de D. Fernando, mas o governador que promoveu esse trabalho afirmou ter grandes motivos para supor que os ossos encontrados em um dos covais individuais argamassados deviam ser os do malogrado moço. Atribuía o facto de não se ter conseguido encontrar a pedra inscricional, que certamente o cobrira, a ter sido ela dali arrancada para servir a algum outro mister menos nobre, como se sabia que acontecera com outras lápides daquela época, duas das quais, com inscrições alusivas a outros mortos dos dois cercos, haviam sido achadas em diferentes pontos da Praça.

 

4896[1]Esses pormenores vêm contados num raro livrinho comemorativo intitulado Trasladação das Ossadas de Portugueses mortos em defesa de Diu, impresso em Margão, Tip. das Notícias, em 1906. Para efeitos deste ensaio, o importante a ressaltar é a observação de que os dois túmulos individuais, um dos quais podedria ser o de D. Fernando, eram provavelmente túmulos de trasladação, o que, a ser verdadeiro, viria reforçar a hipótese por nós levantada na interpretação do primeiro quarteto do soneto em causa. Se, quando da estada do pai em Diu, em 1546, ou no restante de seus dias, o cadáver de D. Fernando não pôde ser, por iniciativa paterna, transferido para local mais adequado, mesmo que provisório, na mesma igreja onde fora enterrado às pressas, poderia tê-lo sido mais tarde, na época em que Camões esteve na Índia, não sendo hoje conhecidos registros documentais da cerimônia. Saliente-se que, no início do século XX, os promotores das escavações de Diu – arqueólogos e historiadores –, por mais curiosos e esforçados que se mostrassem, praticamente só dispunham, acerca dos enterramentos, das vagas notícias dadas por Diogo do Couto, Gaspar Correia e Jacinto Freire de Andrade, atrás referidas, e das ainda mais imprecisas de Damião de Goes no De Bello Cambaico (Lovaina, MDXLIX, Comentário II).

O verso 9 só pode ter-se inspirado na legenda mandada colocar por D. João de Castro num retrato de D. Francisco de Almeida, o qual fazia parte de uma galeria de todos os governadores da Índia portuguesa, que fez pintar para o Palácio de Goa. Sobre isto refere Gaspar Correia, encarregado por D. João de mandar pintar os retratos:

 

E porque o primeiro Governador foi o Visorei dom Francisco de Almeida, o Chefe da Casa dos Almeidas de Portugal, homem de grande primor, como nesta lenda é escrito, e por o Governador ser mui contente de seus nobres feitos, lhe mandou pôr um letreiro que dizia desta maneira:Alegra-te ó grã Lusitânia guerreira de teu bem Portugal, que de ti saiu (grifos nossos) dom Francisco de Almeida, ilustríssimo barão que estas partes conquistou e nelas militando sogigou ao senhorio de Portugal com tanto louvor do cetro real’ (op. cit., Vol. IV, Cap. LXXIII, Lisboa, Lello, 1975, p. 593).

 

Vale recordar que D. Francisco de Almeida também havia perdido um filho jovem nas lutas da Índia, D. Lourenço de Almeida, morto numa batalha naval em Chaúl, num episódio de heroicidade que tornou-se igualmente legendário.

O 12.º verso tem duas finalidades: 1) relacionado às circunstâncias da morte de D. Fernando, traçar um paralelo entre a abertura da muralha de Troia (Dardânia) e a do muro da fortaleza de Diu, em ambos os casos conseguida de forma insidiosa: em Troia,  pelo estratagema do cavalo; em Diu, pela explosão da mina (“minas encubertas”, diria Camões em Lus., X, 69). Nas duas ocasiões em que se refere a Dardânia em Os Lusíadas, Camões menciona sua destruição (III, 57 e VI, 19); 2) relacionado com o verso precedente (11.º), o Poeta recorre a um tópico característico da poesia fúnebre em sua época, ao qual Eduardo Camacho Guizado denomina “exemplificação do pranto”, isto é, a magnificação da dor ante a morte, comparando-a com a de personagem da literatura ou da lenda antigas (La poesía funeral en la literatura española, Madri, Gredos, 1969, pp. 150-151). Camões atém-se ainda ao modelo medieval, pois, como precisa Camacho Guizado, os exemplos favoritos na Idade Média eram os troianos ante a morte de Heitor, ou a destruição de Troia e outras figuras da lenda homérica e suas versões medievais, ademais de outras personagens da cultura antiga, mas com grande clareza de símbolo, ao menos para o público contemporâneo. No Renascimento, a diferença reside apenas na escolha das personagens com cujas lágrimas se estabelece a comparação. Os poetas preferem outra classe de figuras, substituindo o tipismo medieval pela erudição renascentista, buscando os temas de comparação dentro de zonas mitológicas ou literárias eruditas (loc. cit.).

Gaspar Correia cita reiteradamente outras manhas e enganos utilizados pelos rumes para tentar vencer a resistência dos sitiados de Diu. Aliás, a equiparação de D. Fernando a Viriato não se limita ao fator heroísmo, mas se estende também à morte de ambos em consequência de expedientes traiçoeiros (Lus., VIII, 7).

No verso 13, encontra-se o enigma que tem embatucado os intérpretes. Camões refere-se, neste passo, a D. Fernando, e não a Viriato, pois há nele um jogo de sentidos com a palavra “Roma”, jogo que é reforçado pela ambiguidade introduzida com a referência próxima ao guerreiro da Lusitânia. Aqui, o termo “Roma” não designa propriamente a cidade de Roma ou os romanos, mas, por sinédoque, os rumes, os sitiadores de Diu, cujo ataque foi aniquilado graças à tenaz resistência oposta pelos portugueses, entre eles D. Fernando, que se achava no baluarte explodido.

A explicação etimológica está em Os Lusíadas, X, 68: “Rumes / Que trazido de Roma o nome tem”. Sobre o que comenta Epifânio:

 

Rumes − geralmente falando, são os maometanos da Turquia. O nome “Rumes”, bem como “Rumélia” e “Rumânia”, liga-se etimologicamente ao nome “Roma”, sendo que o império Bizantino, de que os Turcos se assenhorearam no sec. XV, era de princípio o império Romano Oriental (Cf. Os Lusíadas de Luís de Camões, comentados por Augusto Epifânio da Silva Dias, 2.ª ed., Porto, Companhia Portugueza Editora, 1916, Tomo II, p 246).

 

Esta etimologia também é dada por Damião de Goes no seu comentário sobre o primeiro cerco de Diu.

Com esta determinação do sentido de “Roma”, fica fácil entender a alusão a Cartago no verso final. Se D. Fernando tivesse aniquilado a própria Roma, Cartago teria razão para alegrar-se com a desgraça de sua antiga vencedora. Mas como o que ele aniquilou foi apenas o ataque dos rumes, Cartago não tem nenhum motivo para estar contente. Talvez haja nesse verso 13 o eco da célebre passagem da Farsália (VI, 310-311) de Lucano: “Poenorumque umbras placasset sanguine fuso Scipio” (“Nem Cipião teria aplacado com derramamento de seu sangue a sombra dos cartagineses”).

O tópico do vencimento dos sucessores dos antigos vencedores pelos descendentes dos vencidos foi comum na poesia da época e tem também raiz no horaciano “Graecia capta, ferum victorem cepit” (“A Grécia vencida venceu seu feroz vencedor”) (Epístolas, II, 1, 156), referindo-se à derrota dos gregos pelos romanos, descendentes, através de Eneas, dos antigos troianos, que haviam sido vencidos pelos gregos na guerra de Troia. ODivino Fernando de Herrera, poeta sevilhano contemporâneo de Camões, emprega reiteradamente esse recurso na elegia XI, vv. 51-63 (Cf. Poesía castellana original completa, ed. Cristóbal Cuevas, Madride, Cátedra Letras Hispánicas, 1985, p. 618-619):

 

Venció vencida Troya, y derribada

s’alçó, i en su ruina se prostaron

los muros de Micenas estimada;

las vencedoras llamas abrasaron

las altas torres que labró Netuno,

i a Grecia sus cenizas acabaron.

El africano exército importuno

a España sepultó en sangriento lago,

i libre su furor dexó a ninguno;

mas, roto, sufre igual el duro estrago

por la mano española, i al fin siente

el hierro, no una vez, la gran Cartago.

 

É isto aquele “algo” que Manuel de Faria e Sousa sentia que lhe faltava, no seu comentário nas Rimas Varias de Luis de Camoens (Tomos I e II, Lisboa, Teotonio Damaso de Mello, 1685, p. 129). Portanto, nem Dardânia está por Roma, nem vem ao caso qualquer alusão ao cartaginês Aníbal, como pensava esse escoliasta. Aliás, é surpreendente que esse eruditíssimo historiador e minucioso comentador de quase toda a obra do Poeta não houvesse atinado com a relação entre o soneto e o citado verso de Os Lusíadas, fato que decerto lhe não teria passado despercebido se, em vez de identificar como possível destinatário da composição fúnebre um quase ignorado homônimo morto na Índia com Álvaro da Silveira, tivesse logo percebido tratar-se do legendário filho do Governador, como o fazia, pela mesma época, João Franco Barreto na Micrologia Camoniana (Lisboa, INCM, 1982, p. 336), sem sombra de dúvida.

Levantar objeções a este respeito com base na desproporção entre os elogios do soneto e a curta vida do rebento de D. João de Castro, como têm feito alguns camonistas, é apelar para uma racionalização totalmente anacrônica. Não são nada de estranhar as hipérboles dos versos 5 e 6, de nenhum modo raras em outras composições de Camões, e, de qualquer forma, mitigadas pela restrição contida no seu fecho. Segundo ainda Camacho Guizado, cujas observações aplicam-se à poesia espanhola, mas, em nosso entender, podem ser estendidas à portuguesa, especialmente nesse tempo de intensa interpenetração das literaturas ibéricas:

 

a hipérbole parece ser inevitável na elegia fúnebre destas épocas [Idade Média e Renascença]. O homem, contemplado com nostalgia – autêntica ou simulada –, depois da morte, apresenta-se geralmente sob um aspecto diferente de sua dimensão em vida. Isto é bem lógico e generalizado. Mas na época de que nos ocupamos, o defunto experimenta uma valorização, um acréscimo de suas qualidades e virtudes, uma magnificação que opacifica seus defeitos, ou vícios de uma maneira total. A hipérbole infiltra-se com a maior facilidade nesta contemplação condicionada pela emoção da dor ou, em outros casos, o desejo de congraçar-se com os parentes ou qualquer outro motivo de índole parecida: a hipérbole é o câncer da elegia, o que a faz suspeita de inautenticidade, de falta da mais elementar perspectiva, de falsidade poética e humana. Deforma a personagem, falseia-a, valoriza-a injustificadamente ou exageradamente (op. cit., pp. 146-147).

 

Preferimos transcrever o parágrafo por extenso, em tradução nossa, porque acreditamos que se ajusta, como uma luva, à composição em exame.

Aliás, Camões não foi o único poeta a compor versos encomiásticos a D. Fernando de Castro. Outro vate seu contemporâneo, Jerônimo Corte Real, num poema épico publicado pela primeira vez em 1574, intitulado Sucesso do Segundo Cerco de Diu, dedicou-lhe vários trechos laudatórios das suas qualidades e do seu esforço guerreiro naquele episódio, os quais passamos a transcrever, com base na edição de 1784 (Lisboa, Simão Tadeu Ferreira):

Canto V: Como a nova chegou a Goa, logo

O visorey mandou nove navios,

E por capitam mor mandou o filho

Dom Fernando de Castro, moço em annos,

Ousado nos perigos; mas os fados

Infelices ali se lhe mostraram;

Negaram-lhe o viver: mas nam puderam

Escurecer co tempo seus louvores (pp. 44-45).

 

Canto XI: Dom Fernando de Castro, neste tempo

De perigosas febres maltratado

Estava: mas sabendo que o combate

Se ordenava de dar, com novas forças

Se faz para ele prestes, sem poderem

Por alguma maneira deffender-lho (pp. 134-135).

………………………………………………..

Assi desta maneira, dom Fernando

De Castro aqui morreo, de dezanove

Annos, nam bem compridos, esforçado,

E de animo invencivel: generoso

Gentil homem, cortez, discreto, e brando.

Ó avaro, ó cruel preciso fado:

Ah morte rigurosa, acerba, e triste,

Cortaste a florecente idade, quando

Mil triumphos insignes pretendia (p. 140).

………………………………………………

Dom Fernando de Castro alevantaram

Pisado o corpo todo, e a cabeça

Amassada das pedras, sem figura

Do rostro juvenil, risonho e ledo;

Levão-no com pesar, e com sospiros,

Com lagrimas, com dor de todos quantos

Na fortaleza havia. Os tristes rostros

Dão muy claro sinal da saudade

Que todos ali sentem, da brandura,

E da conversaçam do gentil moço (p.146).

 

Releva aqui registar igualmente que Diogo do Couto, contemporâneo e amigo de Camões, e até seu companheiro na viagem de regresso de Moçambique, ao referir-se, nasDécadas, ao papel de D. Fernando de Castro no cerco de Diu, certamente influenciado pelo verso 6 deste soneto, escreveu: “D. Fernando de Castro, como era moço, e nunca se tinha visto em outro perigo, desejou de se assinalar neste, e assim deu mostras de seu grande valor, e ânimo, de que a fortuna lhe começou logo a ter inveja” (grifo nosso) (Liv. II, Cap. I, p. 5 da ed. Sá da Costa).

Sem embargo, há que reconhecer que esta expressão parece haver constituído lugar comum na literatura da época. Bernardim Ribeiro, por exemplo, utilizou-a no verso 4 do famoso cantar à maneira de solau que figura na Parte I, cap. XXI da Menina e Moça: “pois em vosso nascimento Fortuna vos houve inveja”.

Cremos que devemos entender, ademais, que as hipérboles de Camões não são dirigidas a D. Fernando de Castro apenas como pessoa singular, mas como corporificação do valor português, de que constitui paradigma. Não era outro o pensamento do governador de Diu, João Herculano Rodrigues de Moura, autor da História de Diu, o qual, volvidos mais de três séculos, ao propor, em 1905, as investigações arqueológicas para procurar-se o seu túmulo, considerava-o “genuíno representante da raça lusitana – imprevidentemente sonhadora, romanticamente valente, intransigentemente cristã, sempre esforçada, nobremente patriótica…” e, no discurso que pronunciou ao ensejo da deposição, em novo local, dos ossos retirados do subsolo da antiga Sé, afirmava categoricamente: “Consubstancio o heroísmo do 2.º cerco em D. Fernando de Castro” (Cf. Trasladação das Ossadas, cit., pp. 7 e 39).

Concluímos, pois, que, neste soneto, e especialmente no último terceto, o poeta armou uma charada intrincadíssima, mas oferece, em sua própria obra, numerosas chaves para a solução.

Anote-se, finalmente, que o soneto em apreço constitui um dos sessenta e cinco que, segundo o critério do saudoso erudito brasileiro Professor Leodegário A. de Azevedo Filho, em Lírica de Camões, 1. História, metodologia, corpus (Lisboa, INCM, 1985) e 2. Sonetos, Tomo I (Lisboa, INCM, 1987, p. 217), estão em condições de ser incluídos no “cânone mínimo” irredutível ou corpus das obras autenticamente camonianas.

 

 

 

Rubem Amaral Jr.

 fonte: www.malomil.blogspot.com