Ailton Benedito de Sousa, escritor e professor, do CEBELA – Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos 

 

1. INTRODUÇÃO

 

Com A grande transformação, publicado 1944,  só traduzido no Brasil em 1980, Karl Polanyi  abre novas possibilidades de interpretação no campo da história, da sociologia e da economia, fortalecendo-lhes a base objetiva, aspecto de suma importância, principalmente na atual fase niilista de propalada quebra de paradigmas.

Polanyi nasceu em Viena em 1886, mas educou-se em Budapeste, onde teve intensa vida política ao lado de figuras como Karl Mannheim e Georg  Luckacs,  entre outros. Nessa cidade formou-se em filosofia e direito. Durante a primeira conflagração mundial, capitão de cavalaria do exército austro-húngaro, foi feito prisioneiro na Rússia. Após o fim do conflito, volta a Viena, dedicando-se a atividades jornalísticas. Em 1933 emigrou para a Inglaterra, onde, em meio a dificuldades financeiras, exerce a atividade de professor particular.  Ao [No] início da Segunda Guerra Mundial emigrou para os Estados Unidos (1940), mas não se fixou definitivamente no país, pois sua esposa, em função de atividades políticas na Hungria ligadas ao movimento comunista, não recebeu visto. Muda-se para o Canadá a partir de 1947 onde vive até 1964, escrevendo e exercendo o magistério, principalmente nos Estados Unidos, sempre a partir de vistos temporários.

Sem a pretensão de querer exaurir as possibilidades de interpretação de seu pensamento, achamos [entendemos, julgamos] que as seguintes proposições ajudariam na formulação de uma síntese de suas idéias de base:

·        O capitalismo difere dos sistemas econômicos anteriores na medida em que procura elaborar seu quadro normativo (jurídico, político, ideológico)  a partir de constantes de mercado, isto é, dos fluxos de bens e serviços e da moeda.  Resulta da sedimentação das práticas de comércio, de intercâmbio de mercadorias entre agentes privados. Sua  ordem jurídica sacraliza a propriedade privada e desvincula o indivíduo de qualquer impedimento que lhe possa tolher a liberdade de vender e comprar  força de trabalho; seu Estado [o Estado ncaitalista] é modelado segundo as exigências de seu mercado; sua ética consagra as rotinas e valores da atividade empresarial, o lucro ficando no mesmo nível da virtude e da graça; a atividade política tanto no interior, quanto fora de uma  nação capitalista  gira em torno das questões de mercado; a terra e a força de trabalho são assumidos como mercadoria.

·        Segundo esse sistema, a atividade econômica envolve competição entre agentes privados e ‘livres’ (empresas versus  indivíduos) num esquema em que todos deveriam ter satisfeitos seus interesses, mas necessariamente alguém ganha e alguém perde, cumprindo à ideologia capitalista tornar impessoal a aplicação das regras desse jogo, atribuindo-as, principalmente no âmbito das trocas internacionais, a neutros ‘mecanismos de mercado’, à Mão Invisível.

  • Assim, o jogo de mercado, na medida em que ocorre num quadro de competição  assumida como justa, que estimulará o progresso senão hoje, mas ‘num futuro’ próximo,  então trazendo vantagens a todos, justificaria a pobreza ‘aqui e agora’, quer entre países, quer entre indivíduos. As distorções e desequilíbrios de mercado são sanados com mais mercado.  Nessa linha, é generalizada a afirmação de que “não há países subdesenvolvidos, senão países em que as forças de mercado ainda estão em maturação.”

 

2. OS QUATRO PILARES DA ECONOMIA DE MERCADO

 

Após 1815, definitiva derrota de Napoleão – a Santa Aliança, a restauração, demolição do ‘edifício’ ou sistema europeu revolucionário, hegemonia naval britânica – o mundo ocidental viverá até 1914 seus gloriosos cem anos de paz, a Pax Britannica, em certo sentido uma redução, já que o período se caracterizará  por intenso pipocar de revoluções na Europa, além de guerras de média e curta duração (por exemplo, a franco-prussiana de 1870), sem contar o permanente massacre às populações coloniais  – África, Ásia e América Latina.

 

Impõe-se alhures revisitar o período, tendo em vista que alguns de seus elementos essenciais hoje porfia-se por recriar, a partir da polaridade tecnológica, econômica e militar, base para que  as elites de pequeno grupo de potências imponham  ao resto do mundo obediência aos ditames de uma política caracterizada pela determinantes de mercado, cuja síntese para os países subdesenvolvidos é o chamado Consenso de Washington[1] –  abertura de mercados, estrito controle monetário, Estado mínimo, desequilíbrio estrutural crônico  a partir do controle de variáveis macroeconômicas etc.

 

As bases em que repousam esses cem anos de paz, segundo Karl Polanyi[2], arrimam-se sobre quatro pilares, formando arranjo cuja ação do todo depende do desempenho de cada parte, a saber: a) adoção do chamado sistema de equilíbrio de poder entre as cinco ou seis potências assimétricas – Inglaterra, França, Prússia, Áustria (império austro-húngaro), Itália, Rússia e, como coringa, a Turquia (império otomano); b) adoção do padrão-ouro, para garantir a existência de um fluxo mundial, no tempo e no espaço, não só de mercadorias, mas de capitais; c) instituição do ‘mercado auto-regulável’, operando no interior de todas as sociedades; e d) o Estado-liberal.

 

A atuação inter-relacionada desses quatro pilares dá existência à chamada ‘economia de mercado’, que, “…em termos ligeiramente mais técnicos, é uma economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado. Um tal sistema capaz de organizar a totalidade da vida econômica sem qualquer ajuda ou interferência externa certamente mereceria ser chamado auto-regulável. Essas indicações preliminares devem ser suficientes para revelar a natureza inteiramente sem precedentes de um tal acontecimento na história da raça humana”[3]. Complementando a síntese das idéias de Karl Polanyi nesses primeiros parágrafos, cumpre acrescentar que a análise dos elementos constitutivos da economia de mercado, também referida como ‘sociedade de mercado’ abre-nos à compreensão fenômenos  iniciados há séculos, mas com inusitados efeitos ainda se desenvolvendo diante de nossos olhos: transformação do homem e da natureza em mercadoria; produção e reprodução social da pobreza como elemento estruturante do sistema capitalista, fenômeno incontornável, já que a extensão do bem-estar a todos levaria à exaustão do Planeta; constituição do conceito de ‘sociedade’, algo ‘dinâmico’ em processo de polarização (ricos e pobres) frente a um Estado tornado fiel do equilíbrio social, ora atuando em  benefício dos perdedores no jogo de mercado, ora  em benefício dos eternos ganhadores. Discorramos um pouco sobre cada um dos pilares.

 

2.1. Política de equilíbrio de poder

 

A aceitação consensual da política de equilíbrio de poder, exigência imediata das lições deixadas pelas guerras napoleônicas, responde ao geral reconhecimento da necessidade de um quadro mundial de paz, não obstante esse ou aquele conflito localizado, contexto essencial ao livre fluxo de mercadorias e capitais, como também de outros fatores de produção, por exemplo, o conhecimento, nessa fase imperialista do capitalismo. É a admissão da guerra como última instância, depois de esgotadas todas as possibilidades de negociação. Instrumento da aplicação permanente dessa política durante esses cem anos serão os quadros da  haute finance, os banqueiros, mais do que qualquer segmento social, cônscios de que uma guerra mundial não apenas traria prejuízos generalizados, mas poderia inviabilizar a experiência hegemônica européia.

 

Num esboço sintético, o equilíbrio de poder significava que, num  determinado quadro de convivência relativamente pacífico, não obstante a manifesta assimetria econômica e militar, uma potência estaria livre para se rearticular com as três ou quatro restantes, com vistas a novo quadro de equilíbrio, caso a ação de uma tivesse desfeito o quadro anterior. Dos quatro pilares, parece ter sido o mais cediço. Em primeiro lugar, destaquem-se as rivalidades econômicas entre as potências hegemônicas, frente àquelas consideradas emergentes (Itália, Alemanha e Japão, principalmente) no que tange a mercados e à repartição do mundo colonial. Em segundo lugar, do ponto de vista político, como sempre, havia uma grande distância entre a pregação democrática ostensiva, a ‘propaganda’ do Estado liberal, e a realidade social interna de cada uma das potências, os impérios austro-húngaro e otomano ilustrando os mais conspícuos exemplos no que tange à magnitude desse fosso.Em nome de um formalismo parlamentar, ambos os impérios espoliam e pretendem unificar, mesmo a ferro e fogo, povos de diferentes origens e religiões, em diferentes etapas de desenvolvimento: húngaros, persas, gregos, turcos, croatas, armênios, curdos, árabes e eslavos de todas as latitudes. Em resposta ao jugo ‘estrangeiro’ localizado em Viena ou Istambul, a ideologia que vai mobilizar esses povos à luta será o nacionalismo, isto é, especificidade de etnia, língua, história, cultura, como justificadores da autodeterminação política. De modo que os acordos e tratados concertando a paz entre essas potências eram acertos entre classes dominantes, necessariamente não legitimados pelos seus povos.

 

Nas rodadas de negociações entre essas potências visando a uma determinada  condição de ‘re-equilíbrio’, se partes dos tratados eram transparentes, a versão secreta, em off, viraria, na época, prática generalizada. Após a tomada do poder em 1917, o governo  bolchevista  publica a versão secreta dos acordos e tratados envolvendo a Rússia czarista. Os escândalos decorrentes vão forçar a que as demais nações venham a dar satisfação à opinião pública mundial, tentando explicar essa ou aquela ‘traição’, para isso dando como causa a traição de terceiros, um dos fatos que irão levar à descrença generalizada das massas em suas elites dirigentes, além de inquinar as relações entre vencidos e vencedores no pós-guerra, conduzindo por fim à eclosão da Segunda Guerra Mundial.

2.2. O padrão-ouro

2.2.1. O fetiche do ouro

 

A existência, desde tempos imemoriais,  de dois tipos de bem econômico, de autenticidade reconhecível e valor inquestionável, é instrumental à articulação dos desafios da sociedade de mercado no século XIX. Dados sua raridade e valor intrínseco, o ouro e a prata há milênios têm recebido a preferência do Ocidente e do Oriente como intermediário, meio de pagamento nas trocas comerciais, enfim como símbolo de riqueza, passaporte para a fruição do paraíso em qualquer lugar da Terra.

 

Na Europa do século XV, tendo em vista o avanço turco sobre Constantinopla e partes da Europa do Este, agrava-se a crise de escassez desses metais a tal ponto, que esse agravamento pode levar ao colapso as transações comerciais do Continente com a Ásia. A fonte de suprimento autóctone, segundo Manoel Maurício de Albuquerque, para prata e ouro eram “a Transilvânia (para este), e Alemanha,  Áustria, Hungria e Boêmia[4] (para aquela). Ainda conforme o autor, nos séculos seguintes às descobertas, o clima de escassez em certos países  expressa-se através de políticas como a do mercantilismo metalista, síntese de práticas de ação econômica governamental que se caracterizavam por considerar o numerário (acervo de metais preciosos) como a única riqueza autêntica. “A este respeito assim se expressa Michel Foucault no seu livro As palavras e as coisas: ‘o metal precioso era, por si, a medida da riqueza; seu resplendor oculto indicava, ao mesmo tempo, que era presença oculta e marca visível de todas as riquezas do mundo. Por esta razão, tem um preço: por esta razão, também, mede todos os preços; e, por último, por esta razão, pode-se trocá-lo por qualquer coisa que tenha um preço. Era o precioso por excelência.’”[5]

 

A propósito, embora com a afirmação seguinte estejamos insistindo no óbvio, o móvel dos descobrimentos é mais a prata que o ouro, tendo em vista sua aceitação preferencial na região onde se sabia haver as especiarias e artigos de luxo como a seda, as essências perfumosas etc. Muitos livros didáticos brasileiros hoje consagram páginas e páginas à questão da descoberta da América pelos vikings. O grau de probabilidade dessa descoberta, dado que quanto mais próximo do Pólo Norte, menor a circunferência dos paralelos, é tão alto quanto o da sua imprestabilidade ou insustentabilidade. Aquilo que se procurava, que mobilizava a imaginação, era ouro, era prata, era riqueza tropical. De que valeria sair do gelo para encontrar o gelo?

 

 

Considerando-se que no transcurso desse século, vive-se num período em que  componentes ideológicos racionais e humanistas já tinham começado a estigmatizar a escravidão negra, antes que compulsão moral, mais por exigência das políticas econômicas da Inglaterra nessa fase contemporânea de aceleração do desenvolvimento tecnológico (século XIX), políticas cuja intenção era, também, a de ‘empobrecer’ os países que ainda dispusessem do escravo como riqueza (meio de produção, meio de troca e reserva de valor); considerando-se que nesse período a pirataria e o butim explícitos à moda dos séculos XVI/XVII não mais transformariam ‘um marginal’ em cavaleiro da Coroa,  –  fácil é admitir-se que imposição oficial do padrão-ouro será um dos artifícios para o estabelecimento e controle de uma relativa e auto-assumida ou imposta paridade monetária entre as nações, diante da magnitude, diversidade e ritmo de evolução do patrimônio e das transações comerciais entre as nações européias entre si e com o mundo.

 

O binômio ouro-prata, ‘intermediário’ tradicional, ampla e consensualmente estabelecido como meio de pagamento, de trocas, de entesouramento, com ampla maneabilidade, indestrutibilidade, durabilidade, divisibilidade e valor intrínseco, inquestionável na compra de qualquer das demais  moedas,  impõe-se nesses cem anos de paz como indispensável ao fluxo de mercadorias e capitais entre as potências européias e as demais formações sociais do globo. Para a Inglaterra, a circulação do ouro quer como moeda, quer como lastro para  re-equilíbrio do meio circulante,  significava tornar oficial o que já era oficioso.

 

2.2.1. Construindo a noção da moeda

 

Numa dinâmica de trocas entre indivíduos em contexto em que não haja noção de um patrimônio comum, um ou alguns bens podem adquirir maior fluidez que outros, ou seja, apresentar maior potencial de intermediar trocas, gozando de mais pronta ou generalizada aceitação entre esses indivíduos: trago peixe seco ao lugar trocas, mas preciso de óleo vegetal, que tem demanda menor que o vinho. Dependendo dos termos, posso trocar meu peixe seco por vinho, que também me é útil, confiante em que ‘permanentemente’ encontrarei demandantes para este produto. Concluo também que dado seu grau de relativa inalterabilidade, sua posse me dá certeza quanto à permanência do ‘valor’ do meu patrimônio inicial, a quantidade de vinho sempre equivalendo ao meu quanto de peixe seco, desde que não ocorra fenômeno imprevisto que altere o preço dos demais itens de troca. Vê-se aqui que o valor de uma moeda tem relação com (espelha-se no) valor de todas as mercadorias que lhe façam face.  É o fluxo M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria) de que fala Marx, admitido aqui que a mercadoria intermediária seja considerada ‘dinheiro’.

 

Se ampliarmos a hipótese acima, acrescentando que esses indivíduos pertencem a um núcleo social que tem patrimônio comum, elemento que como a língua, o território, a herança cultural etc., devia ser parte constitutiva do conceito de sociedade organizada, cidade-Estado, Estado-nação etc.,  configuraremos um quadro mais próximo da realidade, sendo aqui aceito que esse patrimônio comum seja elemento que responda por um maior grau de  permanência, perenidade, de uma determinada  sociedade.

 

Vê-se que o vinho, além do seu ‘valor’ de uso, apresenta ‘valor’ de troca. Devem ser

observadas as diferentes dimensões em que se podem constituir essas duas noções de valor: o de uso, na dimensão imediata, individual, corporal – pessoa versusobjeto de satisfação de necessidade; o de troca, na dimensão social – pessoa versus teia de significados, dimensão simbólica, virtual, projeção do outro. Se esse vinho é produto oriundo de indivíduos com quem tenho esporádicas relações, é maior meu grau de insegurança com relação à sua escolha como intermediário de minhas trocas.  Mas, se não só o vinho, mas todos os bens que uso, as estruturas que os produzem e transportam, o espaço onde vivo, tudo é oriundo do (e ‘pertence’ ao) grupo a que pertenço, então aqui se pode definir moeda e mercado no sentido de espaço (o último), e intermediário do fluxo de bens (a primeira). É a integração dos fluxos da mercadoria e da moeda no espaço e no tempo, ressaltando-se a função da moeda como reserva de valor.

 

No seu esqueleto mínimo, a idéia de mercado, da era medieval aos nossos dias, integra-se por elementos como produtores, consumidores, mercadorias, moeda, essa implicando além das funções  banqueiro-emissor e/ou  Estado-Tesouro-emissor,  um quadro normativo, os quais vão definir, em seu funcionamento dinâmico,  um respectivo sistema econômico.

A moeda retira seu valor interno a partir do cumprimento concomitante de três funções:  a) instrumento de medida do valor de todos os bens econômicos; b) meio de troca e c) reserva de poder de compra. Para que a mercadoria escolhida como moeda desempenhe esta última função – reserva de valor – cumpre que seja estável o preço de todas as demais mercadorias que com ela se relacionam. É a abstração referida como ‘estabilidade do nível geral de preços’ de uma economia. Nesse sentido, a moeda tem relação com a riqueza total de uma nação. Tanto assim que os FMI’s do mundo não deram  o mesmo tratamento às crises inflacionárias somali (país africano desagregado a partir de 1992) e argentina em episódio recente. “No interior de um país, o valor da moeda se determina a partir do nível geral de preços de bens e serviços, uma vez que os preços são a expressão, em unidades monetárias, do valor atribuído a um bem qualquer. A alta geral dos preços traduz uma queda no valor da moeda e, ao contrário, uma baixa indica valorização da moeda.”[6]

 

A condição de um patrimônio social ou individual, função da práxis dos membros de uma dada sociedade, é diminuir, até mesmo em decorrência dos fenômenos de decaimento e reorganização da matéria. A contrapartida é a sistemática produção de riquezas, que numa sociedade não é tarefa só do Estado ou de empresários, mas de todos os seus membros. Assim, não há sociedade, grupo de indivíduos com vocação à perenidade, que não defina seu sistema econômico – conjunto de instituições, não importa se de fundamento religioso, mágico ou jurídico, em que se amparam os meios técnicos, objetivos, para que se assegure a produção de riqueza, base da sobrevivência, da satisfação das necessidades no presente e no futuro, frente ao inamovível espectro da escassez.

 

Estabeleçamos que, fora os aspectos ligados ao encantamento da magia, da fantasia, o valor (aceitabilidade-medida) da moeda seja abstração elaborada em cima de uma equação objetiva:  massa monetária (conjunto de todos os meios de pagamento em circulação ou em depósito) + reservas garantidoras desse meio circulante = somatório do preço de todas as mercadorias existentes nessa economia ou mercado. Essa modelagem didática, analógica,  do fluxo monetário,  extraímos de Pierre Berger quando explica os diferentes modos de formação da moeda, ou seja, a ‘monetarização de créditos’: “A criação de moeda é a operação que consiste em transformar – na maior parte dos casos, mediante o pagamento de juros proporcionais ao lapso de tempo e aos riscos de cada operação – créditos não utilizáveis num  mercado de bens e serviços, em meios de pagamento diretamente utilizáveis nesse  mercado” [7]. Criemos um exemplo: Invento um aparelho de cortar alimentos que sei ter utilidade e demanda em todos os lares. Como não posso fabricá-lo aos milhares, levo-o a um intermediário (função banqueiro-emissor), que me adianta, remunerando-se, uma soma de moedas (meios de pagamento) pela compra de minha invenção. Nesse momento, objetivamente, foi criada ‘moeda-nova’. Se da invenção não resultar dividendos que remunerem o que me foi adiantado, temos um exemplo típico de causa de ‘inflação’.  Caso a invenção se materialize em produtos de venda garantida com lucro, o desfalque que existia no patrimônio do banqueiro-emissor, em breve terá  cobertura milhares de vezes superior ao montante pago pelo invento. A empresa produtora do novo utensílio terá antes movimentado capitais para a compra-contratação dos meios de produção.Na expectativa de retornos crescentes, acelera-se e amplia-se o fluxo econômico, mobilizando-se os demais agentes econômico, criando-se mais riqueza. Assim, para re-equilíbrio do fluxo econômico deverá haver o aporte de mais moedas. O Estado-Tesouro emissor também realiza a função do banqueiro-emissor – criação de moeda nova, quando, por um lado, à existência de superávits futuros, financia seus eventuais déficits, ou remunera novos serviços ou, por outro, quando se deslastra de suas reservas em títulos e moedas estrangeiras amealhadas a partir de uma balança de pagamentos favorável: em síntese, criado/adquirido novo item de riqueza, cumpre emitir moeda nova ou ipso facto valoriza-se a existente. Nada obstante, o mesmo mecanismo que cria riqueza, confirmada pela emissão de moeda nova, também criará inflação no caso de não se confirmarem as expectativas que levaram ao adiantamento de créditos.

 

Mas que jamais seja esquecido que todos os indivíduos criam riqueza, potencialmente são fonte de emissão de moedas novas, principalmente quando sua atividade demanda pagamento a partir do exterior. Em nossa terra, entre os indivíduos que se destacam na produção de moedas, além de um ou outro empresário,  citem-se os artistas, os atletas, os escritores. Não só Ermírio de Moraes, mas também Pelé, os Ronaldinhos, Jorge Benjor, o escritor Paulo Coelho são fontes que drenam moedas do exterior para o Tesouro nacional. Pena que muitos não tenham jamais tido aqui o respeito que merecem. Mas no exterior são reconhecidos: Ray Charles e Oscar Peterson, por exemplo, foram considerados, em seus países – Estados Unidos e Canadá – patrimônio nacional.

 

Assim, num momento de constituição da monetarização, o conjunto formado pelas unidades da ‘mercadoria’ escolhida como moeda (por exemplo, tabletes de um grama de ouro ou outro símbolo qualquer) + sua reserva garantidora (patrimônio junto a banqueiros e ao Tesouro)[8]  tenderia a igualar-se, num determinado instante fugaz  e num plano de aderência à lógica, ao somatório dos preços de tudo que esteja contabilizado nesse mercado, ou seja, àquilo que na sua ambiência e práxis é tido como riqueza. Caso contrário, estamos num mundo onde não há absurdo, logo não há padrão lógico, exigência das construções do mundo simbólico que procurem rebatimento no plano objetivo. Num sistema de produção da subsistência, os elementos podem ilustrá-lo com representações no mundo mágico, mas o produto desse sistema tem que ser concreto. Riqueza é riqueza; riqueza é poder. E poder é poder.  Justifiquemos.

 

Apelando para o absurdo: havendo a noção da necessidade da referida igualdade e já estando definida a propriedade privada absoluta, aquele que possui todos os meios de pagamento, a massa monetária  de uma sociedade – num hipotético sistema fechado,  é o dono dos bens contabilizados dessa sociedade, da sua ‘riqueza até ali totalizada, pode acrescentá-los ao seu próprio patrimônio. Se a moeda, nessa extrema hipótese, não conserva esse poder, que função teria hoje no mundo o dono da Microsoft?

 

Se, não obstante o reconhecimento da necessidade dessa igualdade,  numa determinada economia ela não exista, havendo  moedas demais, cumpre: a) desvalorizar o meio circulante (aumento de preços); b) em não havendo desvalorização, então cumprirá  aumentar o patrimônio, a riqueza social, para que a assumida igualdade seja restabelecida; c) havendo moedas de menos, impor-se-ia  a valorização das moedas, sua emissão ou a destruição de parte do patrimônio.

 

Esses fenômenos, confirmando haver um mínimo de lógica no sistema de trocas, ocorrem com tal freqüência nas sociedades históricas, que é difícil imaginar-se uma hipótese em que, diante do desequilíbrio, nada seja feito. Os agentes econômicos, principalmente os que detêm a posse de grandes volumes de moedas no capitalismo não são, nem podem ser, indiferentes ao meio circulante – lubrificante e força propulsora de suas relações de produção. É imediatamente visto que, no âmbito de um sistema econômico movido pelo lucro individual, quanto mais riqueza houver no seu patrimônio, mais moedas deverá haver – mais tenderão a crescer os patrimônios individuais, a se ampliarem e se acelerarem as trocas e a febre consumista, cujo paroxismo nos dias atuais, em países com mais de100 milhões de pobres como o Brasil (para não falarmos na China e na Índia), poderá levar à exaustão da base de recursos do Planeta em menos de uma década.

 

Reafirmando-se o que já é constatação geral: Se se quiser no âmbito do sistema capitalista dar aos três ou quatro bilhões de pobres do mundo o padrão de consumo atual das classes médias européias, pode-se garantir que o fim da pobreza será o fim da humanidade.  Por outro lado, pode-se garantir também que em direção ao mesmo fim celeremente nos dirigimos, caso nada seja feito para a eliminação das causas da pobreza. Cumpre dizer que se esses países de grande concentração de pobreza não derem início a novos, eficientes e sustentáveis sistemas produtivos, elevando a níveis compatíveis com a dignidade humana o consumo e o bem-estar de suas populações pobres, as potências titulares do mundo capitalista continuarão a consumir tudo sozinhas, a exaurir o Planeta em benefício de seus cidadãos e ainda lhes atribuindo, aos pobres, toda a culpa.

 

Uma das saídas para a convivência relativamente não traumática, isto é ‘racional’, num quadro de desigualdade entre meio circulante, fluxo da atividade econômica e riqueza total, é dada pela atividade regulatória, principalmente a partir do século XIX, do Estado-nação, desde que com a consensualmente reconhecida dimensão ESFERA PÚBLICA. Se uma parte do patrimônio ‘é de ninguém’, isto é, não pertence a um indivíduo, mas a todos como uma abstração, poderia ser e é às vezes considerada  res  publica, reserva de valor da  moeda nacional.  À medida que de acordo com um plano estratégico, essa parte vai sendo inserida  no patrimônio nacional contabilizado, aumenta-se o meio circulante. O desenvolvimento industrial de países ex-coloniais após 1945, a partir da provocada inflação de seu meio circulante, sem que se despreze a ação de contenção ao imperialismo, levada a efeito pelo mundo socialista sob a liderança da URSS, terá tido como lastro o subsolo, as matas, a riqueza potencial desses países em termos de recursos naturais. Voltemos ao modelo em discussão.

 

Se numa sociedade em que haja intenso fluxo econômico, não obstante o fetichismo da moeda, há noção, entre todos os segmentos sociais, da equação acima referida, nesse tipo de sociedade haverá percepção consciente da escassez ou do excesso de moedas, haverá termos para fenômenos como inflação, recessão, deflação, repúdio e colapso do meio circulante. A atividade política se resumirá na ‘luta de classes’ por trazer fim aos desequilíbrios, gerando ‘pactos’ em que cada qual sabe o que ganha e o que perde. É o quadro europeu atual. É a luta pela criação de atividades econômicas, de novos empregos, luta por novos direitos e novas obrigações, na medida em que se está propondo o fortalecimento dos segmentos capitalistas locais e globais.  Se, porém, numa sociedade em que haja o mesmo fluxo não há, entre a imensa maioria da população, noção dessa igualdade, não obstante nela ser fato a presença de indicadores de desequilíbrio, como variação da demanda consumista, como inflação, deflação e recessão etc., então  prova-se que uma importante dimensão existencial dos membros dessa sociedade é vivida em alienação. A atividade política se resume a um bate-boca estéril, sem que jamais haja nexo entre palavra e fato, onde todos, antes das eleições, prometem o paraíso num passe de mágica, mas quando eleitos, optam por vantagens imediatas, até mesmo  pessoais,ao arrepio da ética, a partir da justificativa “vamos fazer tudo para que as coisas fiquem como sempre estiveram, porque ninguém sabe ou pode fazer diferente”. Há completa cegueira com relação às determinantes políticas da sociedade de mercado.  Sem modelo que a explique, sem conhecer seus meandros, não há outro caminho senão seguir as cartas do FMI.  E o pior é que a nossa esquerda jamais procurou saber o que era capitalismo, o que era sociedade de mercado. O resultado está na tragédia do governo Lula.

 

O fato será mais um indicador do quadro de ‘falta de sentido’ em que todos estamos mergulhados no que tange à nossa vida como agentes econômicos. Individualmente, as pessoas nascem e morrem cimentadas numa classe ou categoria social, expressa em termos de nível de salário, espaço de moradia, fazendo jus, quando muito, a um salário mínimo nominal sem jamais questionarem  o quanto de mercadorias ele estará ‘comprando’. Sem jamais questionarem a relação entre as moedas, o meio circulante, e a riqueza que com seu trabalho estão construindo. Sem jamais saberem que ‘ele’ mesmo, qualquer um de nós, é fonte de emissão de moeda nova.  Nessa condição, essas pessoas  são tornadas ‘coisas’ e são oprimidas e, por incrível que pareça, sobre os elementos objetivos dessa opressão nada sabem ou saberão até a morte. O século XXI inicia-se apresentando problemas, como a falta de sentido na instituição trabalho e nos sistemas econômico e político, com  desemprego endêmico, com  irrefreável degradação dos ecossistemas planetários, o derruimento das conquistas trabalhistas e a erosão dos fundos previdenciários, problemas que  não poderão ser compreendidos se não levantarmos o que tem havido de magia escamoteadora, de prestidigitação financeira, na área da administração da moeda, do comércio internacional, do controle das variáveis macroeconômicas das nações em geral, das subdesenvolvidas em particular…

 

2.2.2.  Finalizando a construção da nossa noção sobre moeda

 

Assim, pelo que assimilamos dos ensinamentos de Karl Polanyi, para que a moeda em suas diversas modalidades  tenha curso, legitimidade, liquidez no tempo e no espaçode modo que possa  ter valor de uso, valor de troca, ser meio de pagamento e de reserva de valor, deverá ela, do ponto de vista objetivo, variar em razão direta com o patrimônio de que sua unidade é fração. No limite, tem que igualar-se a um patrimônio, a qualquer patrimônio, admitido até que possa haver ‘uma autoridade’ que ‘garanta’ que ela cumpre esse atributo. Admita-se mesmo que essa igualdade não possa ser permanentemente ‘absoluta’, até  porque a equação tem como segundo membro uma ‘realidade’ dinâmica, expressa pelo somatório dos preços das mercadorias. O patrimônio de uma sociedade, mesmo construção simbólica, é permanentemente desfalcado, recomposto ou aumentado.

 

Cumpre, nessa linha de raciocínio, aduzir que uma moeda tem relação não apenas com a quantidade de mercadorias que estejam no âmbito das trocas da sociedade, mas também  com uma infinidade de aspectos culturais, muitos de natureza subjetiva, ‘psico-social’, por exemplo, quando simboliza a superioridade de uma nação, sem que se despreze o aspecto ‘quadro estrutural de distribuição da riqueza’. A moeda não é uma construção instigante apenas por seus atributos objetivos e racionais, mas, principalmente, pela aura de fantasia, de irracionalidade, de magia. Se para Freud  nossa atividade psíquica normal se desenvolve ora no plano da realidade (processo secundário), ora no da fantasia (processo primário)[9], a moeda pode representar uma das chaves que nos abrem ora esse, ora aquele compartimento  de fruição da vida psíquica. O comentário vem a propósito da insistência de vários economistas quanto à ‘exatidão científica’ de sua disciplina.

 

 

2.2.3. A permanente variação entre patrimônio e moeda

 

Aceita certa relação entre o patrimônio social e seu meio circulante, pode-se então argüir: “Como é que a partir do século XVI a Europa é inundada de ouro e prata enquanto moedas, e o sistema econômico e social europeu  se mantêm relativamente coeso, não se chegando abruptamente à anarquia?”. A resposta é que junto ou paralelamente à entrada de ouro e prata diretamente no meio circulante europeu, também entram a mercadoria que produz riqueza – o  ‘escravo’, tanto africano, quanto americano e, como destaca Karl Polanyi, no caso da Inglaterra (que se estenderá a quase toda a Europa) a terra e o camponês expulso do campo, além da riqueza da biodiversidade dos continentes descobertos. Há um concomitante aumento de moedas, de riqueza e de ampliação do fluxo econômico, vale dizer, do número de ‘ricos’. Há tendência à desconcentração de renda.  Juntamente com a invasão da mercadoria-moeda-ouro-prata,  tem-se a invasão da riqueza escravo-trabalho-terra. A entrada em fluxo contínuo de escravos, máquina humana geradora de riqueza, com seu trabalho grátis permanentemente renovado, momento de criação de “créditos não utilizáveis num mercado de bens e serviços, em meio s de pagamento diretamente utilizáveis nesse mercado.”  É fonte de um imenso volume de bens e serviços que pede escoadouro (mercado interno)  e re-equilibra o fluxo descomunal de moedas pós-descobrimentos.  Há percepção geral de que aumentou-se o patrimônio dessa e/ou daquela nação, e que “se tomarmos-lhes  as moedas, o nosso também aumentará”.  O fluxo de moedas encontra expressão na ampliação do fluxo de bens e serviços.

 

Quanto à relação da moeda de uma nação com o seu quadro de distribuição da riqueza, é notório que em toda sociedade monetarizada, à falta de fato histórico que o contradiga, há relativo consenso quanto ao quadro conjuntural de distribuição da riqueza. Seus pobres foram e são levados a aceitar como natural o quadro de distribuição da riqueza em seu desfavor. É no interior desse quadro que o indivíduo nasce e aceita ou reformula seu projeto de vida. A aceitação dessa posição é elemento que dá sentido à ‘sua’ luta de classe.  Aqui, define-se mais uma função da moeda: expressar o quadro de distribuição da riqueza ou renda, de modo que se possa explicar qualquer mudança significativa nesse quadro, na medida em que para cada segmento social, corresponde uma expectativa de rendimentos e posses. A criminalização do falsário, do contrabandista, do ladrão, até mesmo do ‘cassino’ (e hoje, do chefe de Estado que queira inflacionar seu meio circulante) vem daí. No caso do Brasil de nossos dias, na medida em que obedientes políticas econômicas elevam os juros para ‘sugar’ moedas e conter a demanda (conter demanda é criar pobres), como justificar as palavras de ordem de combate à pobreza, fome zero etc? É a institucionalização da mentira. Elevar juros, no espaço do mercado interno, significa tornar o dinheiro caro, dificultando o pagamento dos empréstimos já feitos, e impedindo que se façam novos. Com isso: a) atrai-se capital estrangeiro, para aplicação nos títulos do governo de juros atrativos; b) remunera-se o capital financeiro, a que o próprio governo dá ‘dinheiro’ (juros altos) para que compre as nossas estatais lucrativas; c) controlam-se não só o consumo (impedindo que haja explosão da demanda e inflação)  mas também os investimentos produtivos, alimentando e realimentando as causas do desemprego e da recessão. É esse mais um ‘trabalho de casa’ em que os atuais meninos do PT estão tirando nota dez.

 

2.2.4 A relatividade dos modelos

 

Por menos complexa que seja, a contemporaneidade de uma sociedade é um precipitado secular de hábitos, costumes, instituições, sendo desnecessário insistir que jamais se encontrará uma situação que coincida cem por cento com esse ou com qualquer modelo. A quantidade de moedas de uma economia poderá ter como analogia o acervo de palavras de uma língua. Por necessidade lógica do sistema lingüístico, toda a realidade social (conforme a percepção dos falantes) encontraria expressão nesse acervo, não obstante admitir-se o surgimento a toda hora de invenções e descobertas exigindo, por um lado, a entrada de novos termos, por outro, a colocação em desuso daqueles ligados à tecnologia em processo de obsolescência.O acervo não está na cabeça de ninguém, embora parte substancial esteja consolidada no somatório de todas as bibliotecas desses falantes.  Aceita a convenção, ninguém jamais se preocupará em confirmar se num determinado momento o número de palavras coincide com a totalidade dos itens do mundo material e espiritual dessa ou daquela sociedade. Nada obstante, se essa sociedade, num determinado momento, é inundada por uma imensa onda de novas idéias, novos produtos, invenções, e de novas necessidades para esses produtos, caso não haja a concomitante invasão de neologismos estrangeiros, dificilmente deixar-se-á de perceber, individual e coletivamente, esse desfalque ou carência. Entenda-se este modelo como um instrumento para que nós, nos auto-assumindo como cidadãos, comecemos a repudiar a ‘cartola’ dos mágicos economistas mercenários. De modo diferente do sistema lingüístico, permanentemente o fluxo econômico, à dominância da ideologia imperialista burguesa, tende a inundar ou a exaurir uma economia de suas moedas, isto é, de suas riquezas.

 

2.2.5. Um quadro para as trocas internacionais

 

Nessa questão, cumpre advertir que o discurso que explica o comércio exterior, principalmente em país subdesenvolvido, unifica toda a nação em torno do seu Estado.  Assim, as transações de importação e exportação que em sua totalidade são feitas entre empresas, geralmente multinacionais, são apresentadas como relações comandadas pelo Estado, no caso, o brasileiro: Este ano o Brasil exportou tanto, ganhou tanto etc. Não resta dúvida que quanto à socialização dos prejuízos, o Tesouro estatal entra como fiador ou penhor.  No capitalismo, as transações entre Estados é exceção. É o caso, por exemplo, da China que faz-se representar no mercado internacional por uma gigantesca ‘empresa’ estatal.

 

Apoiando-nos em  W.M.Clarke et al.,  El dinero en el mundo[10]imaginemos um país em equilíbrio – meio circulante em mãos de agentes internos (mais em mãos de agentes externos), mais reservas,  igual a seu fluxo econômico total. Em relação às demais, o valor de sua moeda já está fixado e aceito. Como em princípio, qualquer país é obrigado a aceitar sua própria moeda, estabeleçamos, por coerência, que as exportações e importações  sejam saldadas, respectivamente, na moeda do exportador e na do importador. Para simplificar, digamos que num ano, apenas um particular deste país vendeu produtos no exterior no valor de um milhão (em moeda nacional) de ‘rubis’. Existem três formas básicas de saldar as contas no comércio internacional: pagamento em ouro, na moeda nacional (ou de escolha) do exportador, ou através de contrato ou convênio financeiro[11].

 

Se no exemplo, o comprador não quer saldar diretamente com sua moeda forte, vai ao mercado de moedas e compra um milhão de unidades da moeda do vendedor, efetuando o pagamento. O banco que vendeu essa moeda pode conservar um tanto na moeda recebida, e com a outra parte, comprar mais ‘rubis’. Espera-se que da operação na balança comercial desse país exportador apareça saldo positivo, na medida em que, de uma parte, entram um milhão de rubis que estavam em mãos de não-nacionais  e de outra, saem rubis, mas entram moeda mais forte (aquela com que o banco pagou os rubis). Se o país exportador recebe o valor em ouro ou outra moeda forte, pode conservar esse crédito em sua balança de pagamento como reservas. Quem tem reservas pode emitir sem gerar inflação. O esquema é para que se imagine a situação de países subdesenvolvidos, que tradicionalmente têm déficits nas contas internas e nas contas externas.

 

Se esse país exportador é ‘pobre’, se suas estruturas produtivas têm baixo rendimento, é mal administrado e sua moeda sofre recorrentes processos de inflação, nenhum banco desejará comprá-la para estocagem e venda a terceiros. Suas mercadorias serão compradas a preços baixos estabelecidos pelo comprador; suas importações, pagas a preços altos; na medida em que sua moeda é repelida ou pouco vale no mercado internacional, não lhe resta  alternativas nas negociações senão a de pagar com moedas fortes, conseguidas quer por contrato de venda das riquezas de seu território, quer por empréstimos. Em suma, sua fragilidade estrutural justificará suas perdas no campo das trocas internacionais[12].

 

Na hipótese de que possua um grande mercado interno com mínimas compras ao exterior, menos desequilíbrio resultará dessa situação (caso da China e da Índia hoje).  Se a pauta de consumo de sua população e toda sua estrutura produtiva, porém, não podem dispensar o permanente fluxo de bens produzidos no exterior, o país será inviável como ente soberano. Para equilibrar a balança de pagamentos, terá que cada vez mais exportar a preços desfavoráveis, a injusta remuneração dos fatores internos de produção causando mais inflação, esta mais e mais apodrecendo a sua moeda no mercado internacional. Os empréstimos contra o penhor de seu território, de suas riquezas, é a única saída ‘provisória’ para essa nação. E, segundo as regras da economia de mercado, a ninguém poderá ser atribuída a culpa por essa situação. Ela resultaria do livre jogo das forças do mercado.  Nesse sentido,  considerando a sociedade de mercado é uma armadilha dos países hegemônicos contra os países pobres.  Cumpre aqui destacar uma das várias contradições da sociedade de mercado: uma vez que não pode deixar de se transformar, até mesmo pela dinâmica do capital que tende a remunerar-se, senão deixa de sê-lo, toda a sua lógica leva-a a eternizar, ampliando-as, suas estruturas produtivas, lógica  pela qual se dirige à  própria extinção, na medida em que vivemos num planeta de recursos finitos.

 

Merece ser destacado aqui que a obrigatoriedade de orçamentos equilibrados, de  relação entre o valor das moedas e demais títulos e a riqueza nacional contabilizada não vale para o país hegemônico: o débito orçamentário dos EUA hoje, 28 de maio de 2005, é 7,783 quatrilhões de dólares. De 2004 para cá, esse déficit tem aumentado a uma média de 1,68 bilhão de dólares por dia. Um total de 44% dos sete quatrilhões está nas mãos de países como o Japão, a China, as nações  árabes exportadoras de petróleo, os quais estrategicamente compram os títulos do Tesouro norte-americano e mantêm superávits nas relações comerciais com a potência. Veja-se o paradoxo: de um lado, os EUA emitem moedas e títulos (para não dizer ‘inflacionam seu meio circulante) que não têm correspondência com o nível de preços internos, com o seu patrimônio contabilizado, cujo rombo é visível a todos; por outro, o dólar continua sendo a mais forte, a mais valorizada moeda internacional. Quando se trata de déficits orçamentários nos países pobres, sul-americanos e africanos, o FMI impõe drástica redução de gastos, venda das estatais aos estrangeiros, congelamento de preços e salários, fim da previdência social etc. Os Estados Unidos, não satisfeitos de reduzirem imposto de renda a seus nacionais  e aumentarem os subsídios à agricultura, principalmente, fazem a guerra do Iraque-Afeganistão, onde já enfiaram mais de 4 bilhões de dólares, enquanto se preparam para desafiar o Irã e a Coréia do Norte. Não há mesmo racionalidade no sistema capitalista, principalmente nessa fase imperialista. É um jogo de faz de contas em que é proibido pensar na hipótese de que alguém resolva virar a mesa e exigir ordem na casa. De qualquer modo, fica aqui o desafio para  que os nossos ‘grandes economistas’ neoliberais venham a público dar suas explicações.

 

 

2.2.6. Mais explicação sobre este modelo

 

A propósito, o modelo é uma expansão relativamente livre do que compreendemos  das pontuações de Karl Polanyi sobre economia em geral e sobre sociedade de mercado em particular. Por óbvio, responsabilizo-me pelos erros e distorções.  Adotando-o com essas reservas, imediatamente podem ganhar sentido na cabeça de um leitor não especializado em economia, fatos recorrentes na história do império romano, por exemplo, a secular política de distribuição gratuita de trigo, vinho e azeite à plebe, como fez Júlio César[13] em 47 a.C., os imensos contingentes de escravos em permanente fluxo e refluxo dados aos patrícios, implicando a conquista de mais terras, assim realimentando o imperialismo,  os gastos suntuosos na realização de espetáculos e obras decorativas, o sistema de castas, a divisão de parte dos butins entre as legiões, além da doação de vultosas somas em dinheiro às famílias romanas, quando da realização dos triunfos ou abertura de testamentos de altos dignitários. O imperador Augusto, que nos quatro anos antes de sua morte recebera através da doação testamentária de amigos quatro bilhões de sestércios, cuja maior parte, afirma, transferiu ao Estado, “legou ao povo romano quarenta milhões de sestércios; às tribos, três milhões e quinhentos mil; aos pretores, mil sestércios por cabeça; a cada homem das coortes urbanas, quinhentos; a cada legionário, trezentos”.[14] O patrimônio romano, permanentemente aumentado pelas guerras de pilhagem, principalmente na fase dos Césares, devia manter qualquer tipo de nexo com o meio circulante, fato que terá levado ao exagero práticas de redistribuição da riqueza produzida ou pilhada. Um sistema social militar, em que o Estado se especializava nas funções de produtor de riqueza a partir do roubo, da exação, da escravização de vencidos, necessariamente deixará sem função imensos contingentes da população – os proletários,  aqueles que só têm a prole.

 

Fica aqui a sugestão para que o leitor elabore sua explicação para a ‘função’ dos subsídios agrícolas hoje  na economia dos países desenvolvidos, principalmente os EUA, Japão, os grandes da União Européia, Austrália etc. É um derrame mensal de dinheiro novo nas mãos de segmentos consumistas  A partir da desculpa de que numa guerra esses países não deixarão sua população alimentando-se de fontes externas, seus governos, de modo hiperbólico,  subsidiam sua agricultura, cimentando numa área rural artificial segmentos de sua população semi-urbana. A verdade, porém, é que aí temos uma prática  redistributiva com que se dá acelerado fluxo monetário ao  mercado interno dessas nações. Fazem o que nos proíbem de fazer: insuflar a demanda para impedir desemprego.  Assim,  Rússia quer triplicar  seu montante de subsídios ao campo, tendo em vista que a Europa nele injeta 90 bilhões de dólares por ano(http://kickaas.typepad.com/). Vê-se que todos fazem o mesmo que os Césares há 2200 anos.  Segundo dados levantados a partir de Google, a média anual de subsídio para cada agricultor na UE é de 17 mil dólares. Nos EUA, de 16 mil. Para um valor aproximado, é só multiplicar a PEA rural  por esses valores. Só para o algodão, no ano de 2004, os EUA destinaram 3,2 bilhões de dólares. Com esses subsídios, eles ‘entulham’ o mercado internacional com produtos a preços irrisórios, arrasando as exportações agrícolas dos subdesenvolvidos. É o que se chama dumpping.

A desagregação da África tem como causa esses subsídios. O milho, o arroz, o trigo, africanos não encontram  preço no mercado internacional. Como o subsolo do Continente é rico,  basta que o imperialista fomente as guerras que esses países se especializem como exportadores de minério, produzindo burocracia estatais corruptas e massa popular aidética.  É o que temos hoje.

 

 

 

2.2.7. Um virtual conjunto de Bancos frente a um Banco Central virtual: a Europa, a Inglaterra e o mundo a partir do século XIX

 

Na compreensão das funções do pilar padrão-ouro, aceitemos que o período após o início da primeira revolução industrial se caracterize, na Europa, por mais elevados níveis de ‘racionalidade’ nas esferas político-administrativas da vida individual e coletiva – auge da chamada racionalidade burguesa. Nessa  esfera político-administrativa, até mesmo por exigência de maior estabilidade nas operações econômico-financeiras, impõe-se a observância de permanente relação entre o patrimônio social e o seu meio circulante (daí a ainda mais estigmatizada figura não tanto do falsário, e do contrabandista,  mas também  do chefe de Estado que tentasse inflacionar seu meio circulante – mais tarde, Hitler e Mussoline não farão outra coisa). Dado o aumento do volume das transações comerciais, impõe-se também certa publicidade, certa transparência na gerência desse patrimônio por parte de cada nação envolvida no âmbito do ‘comércio internacional’. Num contexto complexo onde seja difícil o controle e a fiscalização da quantidade e legitimidade das moedas, além de sua correspondência com os respectivos patrimônios, tem-se que quanto mais seja rara a substância escolhida  para sua cunhagem, mais facilmente controláveis serão suas fontes e autenticidade. Exige-se, também, uniformidade nas práticas de governo, motivo da opção, ou imposição geral do Estado liberal.

 

Nesse século de paz (1815-1914),  com a institucionalização das grandes invenções – vapor e combustão interna na produção de energia eletromecânica, com o eletromagnetismo, a radiofonia, o telégrafo e o telefone, principalmente a segunda metade do século XIX europeu, cabe, para efeito didático, ser estabelecida uma analogia entre uma determinada economia nacional e um banco, no que tange à organização contábil deste. Necessariamente, neste tem que haver relação entre o capital constante, o variável (de que o item principal é a conta depósitos) e os cheques, títulos, ordens de pagamento etc. contra seu caixa em poder de terceiros (seu meio circulante). Na liderança do comércio internacional, abre-se à Inglaterra um quadro de trocas onde em cada economia  é necessariamente diferente o valor das moedas e o custo de produção das mercadorias, quadro em que há intenso fluxo de  relações não só entre esses diferentes ‘bancos’, mas reciprocamente entre os ‘clientes’ desses bancos;  mais ainda, quadro em que, tendo em vista a invariável tendência à diminuição ou aumento dos patrimônios e as imprevisíveis formas de falsificação das moedas e demais itens do patrimônio, resulta difícil não só fixar o valor de uma moeda, como aceitar e compensar os ‘cheques’ na compra e venda, emprestar e calcular juros, pagar, receber, entesourar, trocar cheques por moeda sonante, por ouro. Como, enfim,  exercer o comércio, agora

exponenciado,  em bases permanentes?

 

 

Se há analogia entre uma economia nacional e um banco, esses são, segundo nossa  interpretação de Karl Polanyi, alguns dos desafios que se propõe vencer a sociedade de mercado, por meio da ação integrada dos quatro ‘pilares’ que estamos discutindo, no caso, especificamente o padrão-ouro: Induzir, a partir do comércio internacional e do ‘automatismo’ dos mecanismos de mercado,  o controle e regulação, no interior de cada nação-partícipe, da produção, do consumo, da poupança, da variação do meio circulante e do quadro de distribuição da renda, provendo até justificativa para a obrigatoriedade e objetivo do trabalho de cada um, do capitalista e do operário. Tudo, enfim, nesse tipo de sociedade seria operacionalizado pela abstração ‘mecanismos de mercado’, com pouca ou nenhuma intervenção de uma autoridade estatal ’forte’. É a Mão Invisível. Este é um dos grandes logros da sociedade burguesa, mormente da sua versão neoliberal: Não há mercado sem uma maciça intervenção estatal, ou seja, de uma ou de várias Mãos fortes, plenamente visíveis.

 

 

Concluindo a discussão do item padrão-ouro, tem-se que, no transcurso desse século da paz britânica, os Estados-nações, presos na armadilha desse novo tipo de comércio internacional – o comércio auto-regulado da sociedade de mercado, que perdura até nossos dias,  tenham que gerir racionalmente seus patrimônios, observar normas de contabilidade nacional, controle transparente de receitas e despesas em orçamentos democraticamente discutidos e aprovados (o Estado liberal), além de manterem lastro ou âncora monetária em ouro,  condição necessária para que suas moedas não se fragilizem nas trocas internacionais. Essa gestão racional é também pressuposto à existência de outras características da sociedade de marcado, como os elementos legitimadores  de várias ficções inerentes ao âmbito das trocas comerciais, a exemplo da ficção do preço ‘justo’ das mercadorias, a do arbitrado valor de cada moeda em função de sua procura, inclusive a ambigüidade da questão do nexo entre patrimônio social e meio circulante, nesse século XIX condições essenciais ao fluxo regular de mercadorias e de capitais, ao crédito, ao seguro, à estabilidade da circulação monetária.

 

São essas as funções que, com a opção pelo padrão-ouro, a Inglaterra, nação hegemônica, pensava facilitar, na medida em que esse metal era um bem raro, de permanente e intensa demanda (logo, de pronta liquidez), cujas fontes, no início de século XIX eram facilmente por ela controláveis, assim afastando-se a hipótese de desorganização do mercado e das sociedades, pela via do derrame incontrolado de ouro e prata, como ocorrera no século XVI. Ocorre, porém, que no final do século de XIX e início do XX, ouro em profusão é descoberto na Rússia, na Califórnia, na Austrália e na África do Sul. O centro produtor de riqueza desloca-se da Europa. Tem-se, então, nos estreitos limites da economia continental européia, a ameaça de invasão de moedas, de ouro. Não mais era possível um controle eficiente ‘desse mercado’. O padrão-ouro, em vez de favorecer, passa a prejudicar os fluxos de comércio, alimentando conflitos que levarão à guerra em 1914.

 

2.3. O mercado auto-regulável

 

O terceiro pilar da paz britânica é o livre-mercado regulando,  por indução do comércio internacional, não só os preços, a produção, a distribuição e o consumo, mas todas as instituições sociais, pedra de toque da racionalidade da vida social, enfim criando a ‘sociedade de mercado’, em que o homem, seu trabalho e a natureza são tornados mercadorias, partículas do universo a terem preço, e as instituições sociais, a política,  o direito, a religião, a filosofia e a ciência, em suma, da base territorial às consciências dos indivíduos, tudo tende a ser função do mercado.  Entendido a partir dessa função reguladora da realidade social, mercado é uma instituição localizada no tempo e no espaço, inseminação secular, mas floração a partir do século XIX – tese recorrente em Karl Polanyi. Antes dessa época duvida-se que tenha existido.

 

 

A definição ilumina o conceito. Se defino mercado como aquele ponto em que dois indivíduos, independente de outro interesse, se encontram até mesmo aleatoriamente com o fito de trocar seus bens, então posso concluir que mercado existe desde que o homem existe. Mas não é esse o mercado que dá forma e informa a sociedade, cuja ação, livre de qualquer entrave, é o desiderato último do empresário ou economista liberal e neoliberal. A noção de mercado auto-regulável é em sua base eminentemente metafísica. É elemento ideal necessário à compreensão e implementação do modelo, também ideal, de Adam Smith. Para este, o processo econômico decorre da atividade de um ser cujo atributo é trocar bens segundo seu interesse (o Homo economicus). Nesse modelo, o fluxo de bens polariza famílias (fornecedoras de trabalho) e empresários (fornecedores de bens e serviços). Livres de restrições, em livre competição, os empresários-produtores, para ‘faturarem’ lucros crescentes, lançam seus produtos no mercado onde estão os consumidores com seus desejos e as moedas-salário recebidas no fluxo anterior. Da relação entre procura e oferta, resulta determinado preço, o qual terá embutido em seu  quantum os custos da produção e o lucro do produtor. O nível da relação oferta-procura orientará o devir da produção. Acompanhemos os dois parágrafos a seguir:

 

“Se, em certo momento, a quantidade produzida é insuficiente em relação às necessidades, o preço se eleva: em conseqüência, há um aumento de lucros, que encoraja os produtores a desenvolver esforços no sentido de incrementar sua oferta. Ao mesmo tempo, determinado número de consumidores, cujos recursos são insuficientes para fazer face à alta dos preços, é posto à margem do mercado e restabelece-se o equilíbrio entre a produção e o consumo.

 

“Inversamente, quando a produção é superabundante em relação às necessidades, os preços baixam e diminuem os lucros; os chefes das empresas são desencorajados e esmorecem em seus esforços; a oferta se retrai. Ao mesmo tempo, os consumidores, até então apartados do mercado, poderão participar dele, e a procura será maior. Nos dois sentidos, por conseguinte, a diferença entre a oferta e a procura tende a reduzir-se, e o equilíbrio é restabelecido.”[15]

 

Desses elementos se infere que na medida em que regula  os pontos nodais dos fluxos da mercadoria e da moeda, e estando definida a propriedade privada, a transformação do homem e da natureza em mercadoria, o mercado auto-regulável, ‘teoricamente’,  tenha o controle de toda a vida social, estabelecendo quê e quanto produzir e comprar, explicando e justificando a escassez e a superprodução, o pleno emprego e o desemprego,  até quem é rico e quem é pobre. É a Mão Invisível  de Adam Smith. O modelo teórico está muito distante da prática, porém. Antes de serem produtores e consumidores, os homens são marcados por distintas diferenças econômicas e sociais. São proprietários de terras e outros meios de produção ou desses meios despossuídos; têm níveis de necessidade e interesses hierarquizados, além de baixíssimo grau de mobilidade social;  nos mercados em que a maioria dos despossuídos entra  com apenas  sua força de trabalho, não têm eles outra opção senão a morte.

 

Mas a primeira crítica levantada por Karl Polanyi aos aspectos essências desse modelo, é que muito se deve duvidar quanto à existência do Homo economicus,esse ser movido pelo interesse individual: “Um pensador do quilate de Adam Smith sugeriu que a divisão do trabalho na sociedade dependia da existência de mercados ou, como ele colocou, da ‘propensão do homem de barganhar, permutar e trocar uma coisa pela outra’. Esta frase resultou, mais tarde, no conceito do Homem Econômico. Em retrospecto, pode-se dizer que nenhuma leitura errada do passado foi tão profética do futuro.”[16] Tendo em vista que a crença nesse atributo essencial do homem está profundamente enraizada na mentalidade não só do leigo, mas de muitos especialistas em economia ou ciências sociais, é válido acompanhar os argumentos do autor na relativização das constantes do  modo de produçãocapitalista: “A história e a etnografia conhecem várias espécies de economia, a maioria delas incluindo a instituição do mercado, mas elas não conhecem nenhuma economia anterior à nossa que seja controlada e regulada  por mercados, mesmo aproximadamente”[17].

 

 

Em apoio às suas afirmações, o autor traz o testemunho de Malinowsky[18] e Thurnwald[19] a respeito das práticas de ‘comércio’ dos nativos das Ilhas Trobriand, na Melanésia, hoje Indonésia. Aqui, o fenômeno das trocas mergulha no fantástico mundo da magia, mas, aparentemente, de acordo com nosso modo ‘civilizado’ de ver, essas trocas poderão ser aceitas como práticas de mercado, de comércio, embora tenham  por finalidade não o lucro, mas o interesse social:  “..parte importante da população desse arquipélago despende uma proporção considerável do seu tempo em atividades do comércio Kula. Descrevemo-lo como um comércio, embora ele não envolva qualquer lucro, quer em dinheiro ou em espécie. As mercadorias não são acumuladas, nem mesmo possuídas permanentemente; o gozo dos bens recebidos está justamente em poder dá-los em seguida: não existe nenhuma disputa ou controvérsia nem barganha, permuta ou troca. Todo o processo é regulado inteiramente pela etiqueta e pela magia.”[20].  Para responder a pergunta ‘como se garante a ordem na produção e distribuição’, o autor apóia-se em teorias da antropologia que procuram estabelecer, em nível de generalidade, entre outros, os conceitos de reciprocidade e redistribuição[21].

 

A ordem na produção e na distribuição é conseguida da seguinte maneira: A reciprocidade, no caso das Ilhas Trobriand, tem base no específico sistema matriarcal, segundo o qual a subsistência da família – a mulher e os filhos – é tarefa dos parentes matrilineares dessa família (o irmão da mulher). “O homem que sustenta sua irmã e a família dela, entregando-lhe os melhores produtos de sua colheita, ganhará crédito principalmente pelo seu bom comportamento, porém terá em troca muito pouco benefício material imediato.”[22]

 

Já pelo princípio da redistribuição, entende-se a prática, muito disseminada entre os povos da Antiguidade, em que porção substancial da produção familiar ou da aldeia é entregue ao titular da unidade política representativa (imperador, rei, chefe, sacerdote), que a faz armazenar. Parte considerável desse patrimônio é retornada aos indivíduos por ocasião da passagem de determinados dias ou períodos do calendário, ou para socorrer o consumo por ocasião de eventos fortuitos (guerra, secas, inundações).

 

Retornemos ao texto de Karl Polanyi para que o leitor trate com reservas as afirmações relativas à eternidade de uma instituição, o ‘mercado neoliberal’, formada por um ’ente’ social (animal político – para Sócrates) que no momento da produção/reprodução de sua existência torna-se átomo disperso, movidos uns pelo interesse do lucro, outros pelo dilema vender sua força de trabalho ou morrer de fome:

 

“De forma mais ampla, essa proposição sustenta que todos os sistemas econômicos conhecidos por nós, até o fim do feudalismo na Europa ocidental, foram organizados segundo os princípios de reciprocidade ou redistribuição ou domesticidade(*) ou alguma combinação dos três. Esses princípios eram institucionalizados com a ajuda de uma organização social, a qual inter alia, fez uso dos padrões de simetria, centralidade e autarquia. Dentro dessa estrutura, a produção ordenada e a distribuição dos bens eram asseguradas através de uma grande variedade de motivações individuais, disciplinadas por princípios gerais  de comportamento. Entre essas motivações, o lucro não ocupava lugar proeminente. Os costumes e a lei, a magia e a religião, cooperavam para induzir o indivíduo a cumprir as regras de comportamentos, as quais no fim garantiam o seu funcionamento no sistema econômico.”[23]

 

Em resumo, esse sistema de trocas e de produção para as trocas, que até aqui  tem explicado a sociedade burguesa, é tão metafísico e aberto a contradições quanto qualquer outra instituição humana. Como já se disse alhures, que sentido tem arrancar ouro do fundo das minas da África do Sul, para estocá-lo em  Fort Knox?  Que sentido há em liberar para a atmosfera o excesso de gases que para dar sustentação à vida a Natureza  há milênios aprisionou no interior da matéria fóssil? Que sentido há em fossilizar, mumificar, resíduos da população camponesa nos países desenvolvidos, só para que na eventualidade de uma guerra sua população não coma alimentos produzidos pelo outro? Por fim, que sentido há em enfeitiçar os quatro ou cinco bilhões de pobres do mundo com miragens de um padrão de vida eivado no desperdício, tendo em vista que o Planeta jamais poderá sustentar esse padrão? Talvez já haja passado o momento de dar um basta à loucura. Mas cumpre denunciá-la. Quando o sistema econômico é apêndice do sistema social, a falta de sentido nas instituições e práticas do primeiro não afeta a sociedade em sua totalidade. Esta pode corrigir, aperfeiçoar suas normas e práticas para a produção e reprodução da existência.  A situação é outra quando o sistema social é que depende, é apêndice, do hegemônico sistema econômico. É o caso do capitalismo.

 

Até o advento da produção mecanizada, os sistemas econômicos foram apêndices dos sistemas sociais. Quer o Estado imperial e a Cidade-Estado, quer a pirâmide feudal (Igreja-nobreza-cidade e vila), em sua totalidade essas complexas estruturas de organização dos indivíduos conviveram com sistemas econômico subordinados. A qualquer desses sistemas sociais podia agregar-se o ‘armador’, aquele com disponibilidade de moedas com valor suficiente  para atrair matéria-prima, recursos humanos e demais meios de produção, reincorporá-los em produtos, mercadorias, trocando-os por outros bens (moedas), eventualmente descartando-se, desfazendo-se  da estrutura produtiva que há pouco articulara,  preparando-se para outra ‘empresa’. À sociedade envolvente, o descarte da precária estrutura produtiva em nada afetava o conjunto dos indivíduos e sua estrutura de poder. Isso porque a estrutura de produção básica nas sociedades anteriores à máquina era a agricultura/pecuária, cujos fatores de produção são naturais, ou mesmo a força militar (caso da cobrança de tributos, roubo etc.).

 

2.3.1.Capitalismo: a sociedade como apêndice do sistema econômico.

Já a partir do século XIX, não mais há lugar para ‘aquele armador’. O sistema produtivo industrial está consolidado, implicando grandes inversões de capital, agora imobilizado em  máquinas gigantesca, usinas geradoras e transformadoras de energia, linhas de transmissão de energia e de sinais,  siderurgias, estradas de ferros e esquadras de transatlânticos. Mais ainda, a sociedade, isto é, o conjunto dos diferentes segmentos populacionais – quer por data de nascimento, quer por sexo, área geográfica, estamento econômico – está determinado por esse sistema econômico.  Outro fato notável agora é o volume da produção. Antes, o volume produzido manualmente, artesanalmente, situava-se no âmbito das expectativas humanas. A produção do tear manual teria pouco variado nos 1500 anos anteriores. Com a máquina, porém, a produção do fio de lã era tão grande que, para que não se tornasse nó de estrangulamento de todo o processo gerando desperdício, ela mesma impunha a reorganização de todos os demais fatores envolvidos: do fornecimento de matéria-prima (criação de pastagens, cercamento da propriedade comuna) à descoberta de novas fontes de energia, invenção de novas máquinas para tecer, tingir e imprimir, para o transporte, enfim, invenção de máquinas para fazer máquinas. No plano social, no plano do dia-a-dia das pessoas, a revolução nos hábitos a começar com a imposta obsolescência da roca e a terminar pela necessidade do permanente aumento do mercado consumidor, cuja saída é o imperialismo.

O atendimento dessas demandas – a instalação de parques fabris de bens de consumo e de capital – exige imensos volumes de capital que só podem ser supridos transnacionalmente – é o mercado de capitais transnacional, no caso, europeu. Na organização da produção,  o capital fixo agora articula-se com o circulante, superando-o por um lado, mas rendendo-lhe juros, por outro.  A sociedade agora é dependente do sistema produtivo que ela criou.  A sociedade agora adquire, ou melhor, é devedora de uma  pauta de obrigações frente a ‘seu’ aparelho produtivo que, paradoxalmente, não é ‘seu’. Ela deve, em última instância, arcar com todos os prejuízos resultantes de supervenientes fatos previsíveis e imprevisíveis.

O segredo da atividade política do Estado-nação está aí. Para que, por um lado a aventura capitalista não leve o sistema econômico  à insolvência nem, por outro, a nação repudie suas responsabilidades, cabe a ele gerir como Poder Público (teoricamente), de modo supletivo ou de modo integral, essa economia, que em essência é de natureza privada, principalmente no seu nível macro, aqui estimulando a demanda desse e daqueles produtos, ali restringindo a desse ou daquele outro,  impondo artificialmente elevadas taxas de juros, forçando a que o mercado interno produza isso, não obstante essa ou aquela vantagem circunstancial do produto externo. No plano estritamente social, a permanência da infra-estrutura produtiva cria o que até ‘ontem’ era conhecido como Classe Operária, cuja existência digna exigirá  a jurisdicionalização das relações de trabalho – a legislação trabalhista, conquistas que a partir dos anos 90 a safra dos economistas, políticos e intelectuais neoliberais clonados nas matrizes imperialistas, porfiam por extinguir.  É a sociedade de mercado. Ela existe para produzir e vender, vender e produzir. Fora desses limites polares é o caos.  Os homens são levados a desaprender o fruir, o gozar e apreciar todas as possibilidades da existência, do estar vivo. É a metafísica do suicídio.

Antes que ‘criação’ do Estado, o capitalismo em sua origem é criação privada, iniciativa de comerciantes, piratas, assaltantes de estrada, cobradores de pedágio, navegadores escravocratas e seus armadores. Em sua essência, sempre esteve em oposição à lei, que poucas vejas terá tido reconhecimento pela Justiça.  De tal modo que em função da oposição dos capitalistas  a essa ou àquela restrição ‘legal’, estes e seu regime se tornarão em todos os lugares (e até hoje) paladinos da liberdade, mas de uma liberdade por eles mesmos definida, a ter por base, por um lado a extinção da liberdade de pensamento, por outro a consagração da liberdade de comércio, não importa se do corpo ou da alma, a liberdade na consecução do lucro, desde que seja lucro. Essas pontuações é para explicar porque a produção ideológica do capitalismo jamais o afasta das categorias filosóficas inerentes à questão da liberdade. Nesse sentido, o permanente estado de desequilíbrio que impõe ao sistema social  não deverá derivar das mãos, da vontade de quem quer que seja, mas do LIVRE jogo das forças de mercado, a Mão Invisível.

 

2.3.2. Descobrindo a sociedade a partir do surgimento da pobreza, da coisificação do Homem e da Natureza

 

Se não a mais, sem dúvida uma das mais importantes clarificações do trabalho de Karl Polanyi tem síntese nesta formulação: a descoberta da sociedade a partir do esforço teórico por compreender a realidade social nascida dos descobrimentos, da invasão da Europa pelo ouro americano, da disseminação da escravidão, do apossamento das terras condominiais, da revolução industrial. “Quando se apreendeu o significado da pobreza, estava  preparado o cenário para o século dezenove e o divisor de águas pode ser colocado em torno de 1780. Na grande obra de Adam Smith, a assistência social ao pobre ainda não era um problema; somente uma década mais tarde ele foi levantado, já como tema amplo, no Dissertation on the Poor Laws de Townsend e, a partir daí, não cessou de ocupar a atenção dos homens durante um século e meio.”[24]

 

No parágrafo seguinte a esta citação: “De fato, foi marcante a mudança de atmosfera entre Adam Smith e Townsend. O primeiro marcou o fim de uma era que se abriu com os inventores do Estado, Thomas More e Maquiavel, Lutero e Calvino; o último já pertencia ao século dezenove, no qual Ricardo e Hegel descobriram, a partir de ângulos opostos, a existência de uma sociedade que não estava sujeita às leis do Estado mas, ao contrário, sujeitava o Estado às suas próprias leis”.[25] O nascimento do Socialismo como movimento político deve ser procurado nesse contexto histórico, criação que é dos séculos XVII e XIX. Tem-se que o primeiro teórico e revolucionário socialista foi  François Noël Babeuf, o cabeça do primeiro levante com características comunistas no mundo, a  ‘conspiração dos iguais’, executado em 1797 pelo Diretório. Em sua esteira e até que se chegue a Marx,  seguem-se  o conde Saint-Simon, Charles Fourrier e Robert Owen, principalmente este, algumas de cujas medidas para combate à pobreza são hoje imitadas, como simulacros falazes, pelos donos de ong’s neoliberais, principalmente os que se dizem ‘evangélicos’.

 

Parece um paradoxo que o surgimento daquilo que para o senso comum ‘é o pior’, isto é, o feio e sujo ‘pobre’, seja o instaurador daquilo que ‘se quer que seja o melhor’segundo esse mesmo nível, isto é, a sociedade, a ter por ícone as jovens aristocratas e burguesas ‘limpinhas’.  Na Antiguidade, a estrutura império, reino, cidade-estado etc. compõe-se de entidades autárquicas: o gens, o clã, a tribo, a família; no feudalismo, as estruturas equivalentes  compõem-se do burgo, da vila, da aldeia, do couto ou, genericamente, do ‘primeiro, segundo e terceiro estados’.  Não há em quaisquer das eras noção objetiva de entidade unitária titular de direitos e de obrigações, ou seja, noção de indivíduo, senão como entidade  filosófica, religiosa, mas no sentido de ‘alma’ individual. Não há noção objetiva do conjunto dos indivíduos como categoria social, ou seja, não há noção de sociedade em articulação com o núcleo de poder, o Estado. Uma das grandes contribuições do Cristianismo quando em oposição ao mundo pagão romano é fazer surgir a noção do indivíduo, não tanto como entidade social, mas o ‘indivíduo-e-sua-alma’, entidades metafísicas.

 

Vale a pena repetir a linha de argumento desenvolvida em  parágrafos anteriores: À entrada do ouro e da prata americanos na Europa, cumpre ser rearticulada toda a estrutura econômica das nações européias, principalmente a das não diretamente envolvidas na aventura. Na Inglaterra, essa mobilização encontra amparo, em termos institucionais, na legislação que legitima a apropriação por parte dos nobres das reservas territoriais assim tidas pela organização social feudal, vale dizer, das terras condominiais, inclusive as ocupadas pelos camponeses. E note-se que o nobre quer a terra livre para criar ovelhas, de que, via máquinas, tirar a lã para fiar, tecer e trocar pelo ouro e prata dos espanhóis ou dos holandeses. À expulsão dos servos camponeses, as cidades inglesas são assaltadas por exércitos de ‘homens sem donos’, homens que não mais pertencem a nenhum senhor feudal. Diante de um ‘ontem’ em que se tinha um reino organizado por segmentos dispostos de forma piramidal – primeiro, segundo e terceiro estados – surge um ‘hoje’ em que a estrutura piramidal pode se polarizar em torno da questão: a quem cabe a obrigação de sustentar os pobres? De um lado, os detentores de meios de produção; de outro, os proletários. Entre ambos, o Estado. Está criada a sociedade. Resultante da ação de comerciantes, financistas e manufatureiros cujo ponto de encontro é o mercado, a este será dada a função de nomear e dar sentido ao novo ente: sociedade de mercado.

 

Antes que nos salões de reunião da Convenção e da Assembléia na França após 1789, os conceitos ‘esquerda’ e ‘direita’, conservador/progressista, teriam gênese aqui. Assim, para muitos, nos séculos XVII, XVIII e XIX a pobreza representa a ‘presença da natureza na sociedade’[26] ou seja, resulta da vigência da lei biológica da sobrevivência do mais forte. O pobre é um perdedor, um preguiçoso, abrindo-se para ele ou emprego, trabalho, tão abjeto quanto ele mesmo, ou a morte. Esse é o protótipo do pensamento conservador, de direita.  Para outros, o pobre resulta de um defeito, de um desequilíbrio na estrutura social, logo, o Estado é responsável por ele, já que esse defeito está nas suas instituições, na ‘sociedade’ que ele gere, na propriedade privada, na ação temporal da igreja católica, na escassez de moedas, de ouro etc. É o pensamento de esquerda. Ao mesmo tempo, todos reconhecem que ele, o pobre,  é peça insubstituível na máquina social;  dele, do pobre, não se pode  prescindir, pois do contrário, ‘quem constituirá nossas tropas na guerra, nossas tripulações navais, quem descerá ao fundo de nossas minas?’. O pobre não tem mais obrigações impostas pela ideologia, como no feudalismo, ele agora é ‘livre’, no que de mais paradoxal este atributo possa ter.  Eis formado o Estado-nação, eis formada a sociedade.[27]

 

Fechando essa questão da gênese ‘mercadológica’ da pobreza, cumpre levantar as oportunas observações do professor John Hicks, da Universidade de Oxford, em Uma teoria de história econômica[28], que nos faz ver a Revolução Industrial no sentido de ascensão da indústria moderna, não tanto pelo viés da máquina, do desenvolvimento da mecânica, mas pelo da tecnologia social. Para esse autor, a indústria moderna surge quando o capital fixo começa a comandar o capital circulante, o que exigiu o aperfeiçoamento das técnicas e práticas contábeis e de financiamento. Em síntese: 1) é fato que a máquina provoca grande desemprego entre os segmentos de trabalhadores não especializados, mas, seu reverso entre os especializados; 2) a instalação da moderna indústria exige vultosos investimentos em capital fixo, esse investimento tendo que produzir juros e amortização, donde a nova fábrica, ao contrário dos precários arranjos anteriores ligados às práticas do capitalismo comercial, deve agora organizar-se  para ter longa vida útil, o que dá perenidade e base objetiva para a organização do operariado, fato observado principalmente após a crise de 29; 3) se o fluxo de comércio anterior ao século XIX  partia do mundo colonial  para as metrópoles (transferência de metais preciosos e matérias-primas),  agora é a metrópole que deve exportar ao mundo, inclusive às colônias,  seus produtos e modos de vida, para isso precisando cada vez mais aumentar o percentual de capital fixo: imensos complexos fabris, unidades geradoras de energia etc.  Quando o capital fixo absorve mais capital do que gera, temos crises estruturais violentas. Essa questão é crucial em nossos dias, quando a mudança da base tecnológica, automatizando, miniaturizando, eletronizando, cibernetizando etc. tirou a rentabilidade de grande parcela do parque industrial dos anos 50, capital fixo, criando a categoria capital virtual, volátil, circulante, de difícil conceituação.Outro fenômeno decorrente é a custosa ação estatal para retardar a obsolescência de imensos parques industriais que operam com grandes custos energéticos e sócio-ambientais.  É a partir da compreensão desses fenômenos que se pode começar a compreender esse nosso presente.

 

2.4. O Estado liberal

 

O liberalismo, aríete  filosófico do capitalismo, finca raízes no solo do Iluminismo, principalmente no que tange à crença na bondade essencial dos seres humanos, fé no indivíduo, apego a sua específica faculdade racional, à faculdade da liberdade ou do livre arbítrio. Por esta, eles podem, individual e coletivamente, identificar obstáculos e problemas a sua organização e sobrevivência, com que fica teoricamente consagrada a mudança social em direção ao bem-estar geral. Logo, liberalismo reacionário deveria ser uma heresia, uma contradição nos termos, como etimologicamente é sugerido, mas não é.

 

A implementação desse corpo de idéias a partir do século XVII encontrará instrumento entre os membros de segmentos sociais, a cujas exigências da existência, do seu próprio devir, essas teses filosóficas atendem plenamente. Afinal de contas, o comerciante burguês, o capitalista em qualquer das roupagens antes descritas, pode ver-se como o protótipo do ‘indivíduo livre’, partícula do universo – na medida em que não está cimentado à terra como o camponês, nem preso aos laços familiares, hierárquicos e hereditários, como o nobre. O corsário ou ‘navegador-armador’ elaboram a lei a que sob que julgam. Eles estão presos  apenas ao seu estoque de moedas e mercadorias.

 

Como temos visto, o terreno do encontro das teses iluministas com a ‘burguesia’  é o da gênese da sociedade de mercado em algumas nações européias a partir do século XVI.  Os camponeses começam a ser expulsos das aldeias feudais, a nobreza apropria-se das terras condominiais; nas cidades e no campo, começa a desarticular-se pela raiz  o sistema de propriedade, de herança e de organização do trabalho herdados da fusão entre o mundo antigo e o bárbaro – as corporações, as guildas, as obrigações feudais. Terra, Trabalho e  Homem começam a virar mercadoria. O clímax desse processo ocorre no século XIX.

 

Princípios como o da liberdade do indivíduo legitimam não apenas o contrato de trabalho entre patrão e empregado, mas também toda a organização social. Denuncia-se o Estado monarquista de direito divino, consagrando-se o Estado de direito ‘laico’, oriundo de um pacto, fictício, é claro, entre todos os membros da nação enquanto indivíduos, regido pela lei – norma geral  que vincula e submete a todos sem distinção, por que só aspira ao bem-estar geral. Diante dela, todos estão nus, sem os pingentes sociológicos da riqueza, do berço, da cultura. O cidadão criado pelo direito burguês é um homem nu.

 

No Estado liberal consagrar-se-ão, também, a separação e o equilíbrio dos poderes estatais no mesmo documento em que se gravam os termos do pacto, a Constituição. As liberdades civis, os direitos políticos, o âmbito das esferas individual e pública, tudo é estatuído nesse documento, inclusive aquilo que é e que pode ser patrimônio individual, e o que necessariamente tem de ser público. Nessa mesma linha, as finanças do Estado e seu Tesouro, as normas para a sua gestão visando ao bem comum. O permanentemente elevado nível educacional a ser patrocinado pelo Estado liberal, responde pela crença de que todo e qualquer problema da nação encontrará discussão e solução em vários foros, primeiramente na imensa assembléia popular, a Ágora da modernidade  – a opinião pública, então formada e informada pela Imprensa, o quarto poder do Estado. Idealmente, lindo. Na prática, quando o nome da instituição no modelo teórico permaneceu, bem diferente  resultou  seu conteúdo. No campo da realidade, não existe cidadão, mas homens marcados por brutais diferenças sociológicas: riqueza, herança cultural, nível de conhecimentos, habilidades e habilitações.  No frontispício da primeira página de seu Contrato Social, Rousseau já havia expresso  que “É precisamente porque a força das coisas tende sempre a destruir a igualdade, que a força da legislação deverá sempre tender a mantê-la”. Desde que não leve, sempre, essa orientação ao pé da letra, o Estado liberal tem podido existir.

 

3. Homem e Natureza não podem ser mercadoria, ou ‘num armazém nem tudo é para ser comprado e vendido’

 

Em sendo, como comprovado diante de nossos olhos, torna-se infinitamente  problemática, até mesmo impossível a evolução do atual sistema de produção e reprodução da humanidade dita civilizada, até mesmo porque seguindo sua própria dinâmica, o sistema leva a que, logo, logo, meia dúzia de homens se diga e assuma dona do Planeta, hoje tanto no nível macro, quanto no nível micro, ou seja, leva a que essa meia dúzia assuma a posse da organização atômica e molecular da matéria – momento da ruptura definitiva do homem com sua tradição de racionalidade. Tem sentido a partir de agora o fato de os princípios de organização genética e atômica da biodiversidade amazônica passarem  a pertencer, como mercadorias, a ‘pessoas jurídicas’ supranacionais, inatingíveis por qualquer das existentes ordens jurídicas? Por outro lado, diante do trigo e do boi clonados, da doença da vaca louca, da gripe das aves, não mais se pode diretamente ‘ver’ uma relação de causa e efeito,  donde cada qual determinar o que é bom, o que é ruim. As bases de julgamento agora estão na esfera do micro, a que não mais têm acesso os ‘cientistas-empregados-vendedores de mercadoria-trabalho, porque esse acesso agora é exclusivo de máquinas cuja tecnologia é tornada inalcançável pelo comum dos mortais. Nesse momento, o homem vira não apenas uma mercadoria, mas dependente não da máquina, mas escravizado por aquilo que devia libertá-lo: o conhecimento. Não há maior absurdo que este: a ciência produzir um conhecimento esotérico, que paradoxalmente nega essa ciência, uma vez que não pode ser ‘aberto’a todos. O veredicto das máquinas não pode ser dado a todos, o elemento intermediário – o imperialista capitalista- dando-lhe o significado que lhe aprouver.  A partir daí cria-se um ente cibernético com quem se passa a competir; não mais ‘servem’ os homens naturais, está justificada a existência do clonado, um erro genético contra que ninguém e nada podem recorrer. Movido pelas constantes de mercado, de tanto ‘mexer’ na estrutura genética dos vegetais e animais, por displicência e/ou acidente, a sua estrutura genética já pode ter sido irremediavelmente alterada.

 

Homem e natureza, principalmente enquanto universais, não deviam ser, de modo absoluto, tornados mercadorias, algo de preço etiquetado, num contexto de unipolarização do conhecimento, do poder econômico e do poder militar. É a ciência escrava do complexo industrial-militar.  Em primeiro lugar, até aqui não há como separar natureza e homem quanto à energia e substância. É ponto pacífico entre químicos, biólogos e físicos, quer trabalhando com o macro, quer trabalhando com o micro, que todos somos constituídos das mesmas substâncias e energia que formam as estrelas, o universo. Não devia haver descontinuidade entre o homem e a Terra – sujeito e objeto. Nada obstante, a práxis do mundo ocidental hegemônico, amparada numa metafísica de ampla aceitação acrítica, com imediatos sustentáculos no Velho Testamento e em René Descartes (embora num contexto diferente do atual) insiste numa absoluta dicotomia sujeito-objeto. Por outro lado, como no mundo ainda não apareceu ser de outra espécie com atributos que superem os do homem natural, fato que ampararia uma relação de procedência ou pertinência imediata para este, não há como referenciar, contrastar sua origem ou presença no mundo  com ou contra as coisas desse mesmo mundo, da Terra: essa relação tem sido estabelecida pela religião, pela metafísica. Por esta, homem e natureza são criaturas, têm criador, que não é deste mundo. Polarizada a questão conhecimento-ignorância, pobreza-riqueza, poder atômico-exclusão social, aparecerá  um ‘Criador’ neste mundo, obviamente o mais forte. Estará irremediavelmente cindida a humanidade. Disso não se deve ter dúvida. A ação amoral, anti-ética, livre, despudorada, de toda a direita no mundo hoje, indica que eles já se julgam em relacionamento não com outros homens, mas com bichos.

 

Retornando à nossa argumentação sobre a coisificação do homem, como temos visto, mercadoria remete a um patrimônio, o qual no âmbito da propriedade privada absoluta, ou seja, post mortem, que é o que de fato se tem no mundo burguês, remete a um ou mais proprietários vivos ou por nascer. Com a nanociência como está sendo praticada no mundo neoliberal, em que não há lei nem nação acima das nações mais fortes e de sua lei, temos que um princípio vital do micro, portanto fora do nosso tempo, fora da dimensão dos nossos sentidos, seja tornado  propriedade ‘eterna’ de uma pessoa fictícia, uma pessoa jurídica ou não nascida, não em função do bem-estar de todos, mas do poder e bem-estar particular, individual.  Estamos diante de fatos realmente inusitados,  crônicas de um manicômio.É o nazi-fascismo redivivo.

 

Nos termos em que está organizado, o mercado internacional auto-regulado e patrulhado pelas grandes potências, sem a saudosa mediação do Sistema Socialista Mundial, é uma armadilha fatal a países como o Brasil: Imensa dívida externa, desequilíbrio crônico nas contas externas e internas, gigantesco território rico (e população pobre e culturalmente subnutrida), sua melhor analogia é uma imensa Itaipu em que a carga hídrica é representada pela massa pobre. As determinantes da política de mercado (abertura ao capital externo, privatizações, Estado mínimo, estabilidade monetária etc.) impedem-lhe a implementação de qualquer política que vise diminuir a pressão contra a face interna da represa. A continuar a pressão, é certo um quadro de rupturas.

 

Nesse sentido, a sociedade de mercado, ao transformar homem e natureza em mercadoria, retirando-lhe os meios de compreender e atuar, opera a atribuição dessas entidades ao patrimônio de alguém, e isto não obstante 2000 anos de cristianismo, com a prédica de que o homem não pode ser propriedade de outro homem, quanto menos os princípios da Natureza, obra de Deus. Note-se que aí temos configurado o ‘roubo absoluto’, o ‘Roubo’.  E quem é esse alguém, o Ladrão, nosso proprietário?  Até ontem, era tímida a intervenção dos ‘homens de ciência’ (empregados, em seu conjunto, portanto propriedade dos megacomplexos militar-empresariais) nas entranhas dessa coisa que vêem como objeto, a Natureza. Hoje, esta, como uma paciente nua e deitada de pernas abertas numa maca nas mãos de diabólicos médicos e enfermeiros, perdeu a noção de vida íntima. De escrava, passa a Natureza à condição de garota-de-programa, num  escabrosamente erótico  reality show. Recria-se numa farsa bufa a lenda de Pandora, de cujo útero e vagina, agora, está saindo tudo, menos a Esperança, cujo feto morreu logo após a concepção, para virar célula-tronco. Estão aí a cibernética e a nanociência,  estão aí os clones. Será que pela mesma causa estão aí os HIV, os Marburgs, os Ebolas? São eles os vetores da destruição dos homens naturais?  O que se censura é o aventureirismo e imediatismo desses ditos ‘cientistas’ informados pelo neoliberalismo, é seu desvinculamento com a comunidade espiritual humana. Como os burgueses empreendedoristas, são partículas do universo, e só.

 

4. A RELAÇÃO CUSTO-BENEFÍCIO DA SOCIEDADE DE MERCADO

 

 

Para dar testemunho insuspeitável quanto aos benefícios, nada melhor que Karl Marx e Friedrich Engels:

 

A burguesia, através do rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, através de imensamente aperfeiçoados meios de comunicação, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, ao seio da civilização. O baixo preço de suas mercadorias é a artilharia pesada com que põe abaixo todas as muralhas chinesas, com que força à capitulação o intensamente obstinado ódio do bárbaro ao estrangeiro. Compele todas as nações, sob pena de extinção, a adotar o modo burguês de produção; compele-as a admitir em seu seio  o que chama civilização, ou seja, tornarem-se também burguesas. Numa palavra, cria um mundo à sua própria imagem…

 

A burguesia durante seu domínio de não mais de um século, tem criado forças produtivas mais massivamente diversas  e colossais que todas as precedentes gerações. Subjugação das forças da natureza ao homem, maquinaria,  aplicação da química à indústria, e à agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafo sem fio,  derrubadas em todos os continentes para o cultivo, canalização de rios, populações inteiras  expelidas de suas terras – que século anterior  terá tido mesmo um pressentimento de que tais forças produtivas dormitavam no seio do trabalho coletivo?”[29]

 

 

 

 

 

Não obstante os benefícios, forçoso é reconhecer que o homem não é essencia’ lmente moldável ao conceito de mercadoria que integra a dita ‘sociedade de mercado’ em pleno curso do século XIX aos nossos dias, a relativa adaptação hoje perceptível entre alguns terá sido conseguida por via de uma permanente guerra de extermínio, guerra de extermínio, mesmo, dada a condição de flagrante assimetria entre as classes sociais em luta, ou seja, entre o povo e os alçados em elite, tanto no plano local quanto no internacional, guerra cujas batalhas mais sangrentas têm como marcos históricos (exclusive o quadro contemporâneo):

 

  • a) escravização em três séculos de no mínimo 100 milhões de africanos, com a destruição irreversível de suas culturas, não obstante o esforço dos seus descendentes na diáspora em preservar-lhes aspectos;
  • b) a destruição dos grandes núcleos de civilização das Américas, o maia e o inca, entre outros; destruição de tribos e povos em marcha para o estágio de civilização;
  • c) a dizimação e/ou escravização por séculos das populações autóctones sobreviventes das Américas, da Ásia, Austrália e da Oceania, não insistindo na questão africana, espetáculo dantesco diante de nossos olhos;
  • d) oficialização das políticas de butim interno, quer nas ‘cortes’, quer nas colônias, a começar pela apropriação das terras comunais na Inglaterra a partir do século XV/XVI, mas que se estenderá à totalidade dos países europeus, finalizando na recusa da atual potência em assinar o Protocolo de Kioto,  origem de crimes de lesa-humanidade  que entre outras conseqüências criará e/ou exponenciará a pobreza – o homem  deslocado,  que não pertence a ninguém, ser desconhecido no mundo feudal, ancestral do nosso sem-terra, de nossos refugiados;
  • e) criada a pobreza, nasce o conceito de sociedade, um dos grandes insights  de Karl Polanyi;
  • f) aceleração dos processos ligados ao binômio ‘ciência e tecnologia’ como senha para o domínio da natureza, descobertas no nível macro e micro, invenção de máquinas e processos fabris que aumentam a produção de mercadorias de modo jamais visto, a sua venda com lucro implicando a existência de um permanente mercado demandante, justificativa para o imperialismo e a escravização;
  • g) entre os sangrentos embates que precedem e seguem o parto da sociedade de mercado, tem destaque a Revolução Francesa, com a implosão definitiva das heranças do mundo antigo e feudal, a partir de seus diversos estatutos jurídicos para a propriedade, para o homem, para o trabalho, estabelecendo o fim das corporações e das guildas, a separação entre igreja e Estado, conquistas de valor relativo, pois têm como limites os marcos da liberdade burguesa;
  • h) a partir da consolidação da democracia  burguesa e culto da abstração ‘cidadão’, surge nova versão do racismo, com suas justificativas agora cientificistas, principalmente contra os negros e os judeus, hoje evoluindo em direção da polarização apenas dos povos negros;  por fim, sem querermos ser exaustivos,
  • i) a hegemonia, nos quadros da humanidade, em termos econômicos, tecnológicos e militares, de alguns povos europeus, a qual, porém,  a partir da faculdade lógico-simbólica do homem, estender-se-á a todos os europeus. Eis o que temos de herança  no século XXI ao lado da percepção geral do fenômeno degradação ambiental no nível planetário; devassamento e ultrapassagem dos limites da capacidade auto-regeneradora da Natureza impondo marcos instransponíveis ao modelo de produção/reprodução hegemônico;
  • j) sintetizando todo esse quadro, as duas Guerras Mundiais, cujas irresolutas questões em disputa estariam forçando a Terceira.

 

 

5. CONCLUSÃO

 

Reconstituindo algumas teses centrais de A grande transformação, o século da paz britânica – momento de intensificação de guerras pontuais no nível interno e externo das nações do Planeta, guerras que assistem o parto da sociedade de mercado –,  esse século, repetimos, caracteriza-se  por dois movimentos antitéticos:

 

  • a constituição e expansão do mercado auto-regulável, consagrando a sociedade de mercado, fora da qual diz-se não poder haver vida civilizada,  com a definitiva transformação  tanto do Trabalho/Homem/conhecimento, quanto da Terra/Frutos, Energia e Processos, em Mercadoria com preço, isto é, ‘desvalor’, uma vez que são dons do que antes era Natureza e agora é objeto, desvalor   fixado, teoricamente,  por mecanismos de mercado;
  • b) a contrapressão social das massas exploradas desde que conscientes, junto com seus aliados humanistas, com vistas, por um lado, à dignificação do trabalho e do trabalhador; por outro, à defesa da biosfera e à manutenção, em relativo nível de higidez, dos vínculos estruturais das organizações sociais, admitido que na hipótese de predomínio absoluto das leis de mercado, nos dirigiremos todos para um mundo em conformidade com os modelos nazi-fascistas, fenômeno cujo começo da marcha célere, hoje, maio de 2005,  presenciamos.

 

O primeiro movimento levará ao acirramento da competição tanto entre os indivíduos, quanto entre as formações sociais (desde que ambos os conjuntos estejam mobilizados pelo quadro ideológico da apropriação da matéria, da caça ao lucro, ao butim, pelo instinto da guerra,  pelo ódio racial), a tênue regulamentação aí simplesmente eternizando as desigualdades,  legitimando o caos – caso do atual neoliberalismo;  levará também ao aprofundamento de uma contraditória oposição homem-natureza, na medida em que ora ambos são ‘coisa’, num quadro objetal – homem coisificado versus  elementos da base e do processo de produção e reprodução da existência – ora têm valor transcendente, na medida em que a transcendência é do Eu, mas não do Outro – fundamento de todos os racismos.

 

O segundo movimento, nos quadro do Estado liberal, tem levado a várias revoluções políticas de que se origina uma  permanente ação de regulamentação da sociedade (coletivismo/reformismo/socialdemocracia). Ao Estado, permanentemente dominado pelas elites proprietárias, pelo  statu quo, compete a tarefa de gerir esse processo de regulamentação, sempre procurando transformar as circunstâncias para que as estruturas fiquem como sempre estiveram.  Nesse sentido, num quadro de sangrentas lutas, no decorrer do século da paz britânica o processo político-social  tem levado à regulamentação do trabalho com a defesa e proteção do trabalhador; tem levado, também, a essa noção da impossibilidade da revolução de uma só classe, e da ineficácia dos processos de reforma sob a égide do Estado liberal.  São marcos notáveis a Revolução de 1917 na Rússia, que não obstante a esperança e o sangue de várias gerações, não conseguiu retirar o Homem e a Natureza da vala comum das coisas  etiquetáveis no mercado. É marco notabilíssimo, considerada a epopéia que foi sua revolução operário-camponesa, o atual esforço do governo da China por criar a SOCIEDADE DE MERCADO. É paradoxal, mesmo: faz-se uma revolução socialista operário-camponesa para instaurar a sociedade burguesa! Reconheça-se que após a desagregação do mundo socialista, a China, ou Cuba ou a Coréia do Norte, até esse  momento, não têm outra opção. E pior do que tudo isso: a ‘derrota’ da experiência estatal-coletivista soviética parece ter anestesiado a consciência pensante dos humanistas de nossa geração no nível mundial. Abre-se um jornal, e lá está o anúncio de cursos de mestrado e doutorado em qualidade, em ‘marquetingue’,  em estoque zero, em vinte/oitenta etc. Essa  é a ciência social neoliberal da colônia.

 

Ainda em nossa contemporaneidade, a partir do final dos anos 60 do século vinte, o movimento de oposição à instauração da sociedade de mercado levou à eclosão da questão ambiental, que embora tenha ameaçado  tornar-se um grande movimento de massas de dimensão planetária,  hoje, também, parece não mais mobilizar quem quer que seja, frente a um sentimento de premonição de uma catástrofe micro e macrobiológica, nuclear ou  planetário-ambiental.

 

5.1. E nós, da Colônia?

 

Nesse século em que se debruça Karl Polanyi, ou seja, de 1815 a 1914, frente à humanidade as elites do mundo colonial, mesmo com os movimentos de independência na América Latina, terão pouco ou nada a festejar, tirante a recorrente compulsão por se reatualizarem diante de suas congêneres colonizadoras. A compra de moinhos, navios e outras máquinas a vapor, a instalação de linhas férreas e telegráficas, ou mesmo o telefone (tudo pago com o trabalho do negro e do índio escravizados), enfim, o simulacro de vida civilizada que,  obedecendo ordens à semelhança de um capataz, trazem para si e para as massas que dominam – tudo isso outro significado não lhes traz  senão que são colônias subdesenvolvidas, intelectualmente obsoletas, segundo Ivan Illich,  “metástase do câncer do colonialismo”. A partir de uma análise superficial, poder-se-á dizer que somos por demais rigorosos, injustos. Mas, com a honrosa exceção de Cuba (e da Venezuela, por enquanto, e o Brasil de Vargas, que já acabou), quem deu o mais pequeno passo que seja em direção à criação ou manutenção de uma estrutura social que abrisse vias ao bem-estar das massas trabalhadoras, negros, índios e brancos pobres, quem distribuiu a terra, quem formou patrimônio social como RES PUBLICA?.

 

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Albuquerque, Manoel Maurício de, Pequena história da formação social brasileira, Rio de Janeiro, Edições Graal Ltda., 1981, 730 p.

 

Arendt, Hannah, As origens do totalitarismo – anti-semitismo, instrumento de poder, uma análise dialética,  tradução de Roberto Raposo, Rio de Janeiro, Editora Documentário, 1979,  175 p.

 

Berger, Pierre. La monnaie et sés mécanismes, Paris, Press Universitaire de France, 1969,  123 p.

 

Brenner, Charles, An elementary textbookof psychoanalysis, New York, Double Anchor Books, 1955, 224 p.

 

Clarke, W. M.& Pulay, G. El dinero en el mundo, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1974, 212 p.

 

Descartes, René, Discours de la méthode, Paris, Éditions Garnier Fréres, 1950, 190 p.

Duruzoi, Gerard etYvoire, Jean d’, Philosophie, terminales CDE, Paris, Éditions Nathan, 1989, 334 p.

 

Errasti, Francisco, Introducción a la economia, Pamplona, Espanha, Ediciones de la Universidad de Navarra, 1975, 430 p

.

Hicks, John, Uma teoria de história econômica, tradução de Maria José C. Monteiro, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 170 p.

 

Lajugie, J. Os sistemas econômicos, tradução de Geraldo Gerson de Souza, São Paulo, Difusão Européia do livro, 1971, 130 p.

 

Marx, Karl&Angels, Friederich, Capital and Manifesto of the communist party, Londres, Encyclopaedia Britannica, Inc., 1952, 454 p.

 

Lagassé, Paul, editor, The Columbia encyclopaedia, 6th ed. Columbia University Press, 2000.

 

Polanyi, Karl, A grande transformação, tradução de Fanny Wroebel, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1980, 306 p.

 

Rojo, Luis Angel, Inflación y crisis en la economía mundial (hechos y teorías) Madrid, Aliança Editorial, 1976, 140 p

 

Suétone, Vies de douze Césars, Paris, Gallimard, 1975, 499 p.

 

 

 

 

 

 

 



[1] Documento resultante da reunião em novembro de 1989 de representantes do governo dos EUA e organismos financeiros internacionais para tratar dos temas relativos à questão dos países subdesenvolvidos frente ao emergente contexto mundial àquela época. Seus itens fixam a política econômica neoliberal: privatizações, tributação regressiva para as empresas, abertura total do mercado, vinculação da moeda a uma âncora externa, entre outras. Ver http:www.milenia.com.br/mance//gst/04.htm

[2] Polanyi, Karl A grande transformação, tradução de Fanny Wroebel, Rio de Janeiro, Campus, 1980, p.23

[3] Idem, p.59

[4] Albuquerque, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1981, p.76

[5] Idem, p.75

[6] Berger, Pierre. La monnaie et ses mécanismes, Paris, Press Universitaires de France, 1969, p.12.

[7] Idem, ibidem,  p 18/19.

[8] Entenda-se aqui um artifício para dar o conceito de massa monetária, conjunto dos meios de pagamento que circulam num país num momento dado. Cf. Pierre Berger, op.cit. p.15

[9] “O processo primário de pensar, por outro lado, é o modo de pensar característico daqueles anos da infância quando o ego ainda é imaturo. É diferente sob vários aspectos de nossos modos familiares de pensar conscientemente, a que chamamos de processo secundário; tão diferente, com certeza, que o leitor pode duvidar se o processo primário de pensar tem qualquer lugar no campo do normal enquanto oposto ao funcionamento patológico da mente. É importante enfatizar, contudo, que o processo primário é normalmente o modo dominante de pensamento para o ego imaturo, e que normalmente persiste em certos graus também na vida adulta, como logo veremos.” In Charles Brenner,  An  elementary textbook of psychoanalysis, N. York, Doubleday Anchor Books, 1955, p.52,5.

[10] Clarke, W.M., Pulay, G.El dinero en le mundo, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1974.

[11] “Existen así três formas básicas para saldar las cuentas (esto es, las obligaciones pendientes) entre países. Pueden ser pagadas en oro, pueden ser liquidadas en monedas nacionales en circulación o pueden ser pagadas por medio de algún convenio de crédito.”  In: El dinero en el mundo, W.M.Clarke et allii, p. 14.

[12] “Consideremos agora um país que, no decurso de uma depressão de negócios, é atingido pelo desemprego. É fácil ver que todas as medidas de política econômica que os bancos possam tomar para criar empregos,  são limitadas pelas exigências de câmbios estáveis. Os bancos não poderão se expandir ou estender novos critérios à indústria sem apelar para o banco central que, de sua parte, se recusará a acompanhá-los, uma vez que a segurança da moeda exige um caminho opostos. Por outro lado, se a tensão se distribui da indústria para o estado – os sindicatos profissionais podem induzir os partidos políticos associados a abordar o tema no congresso – o alcance de qualquer política de assistência ou de obras públicas será limitado pelas exigências do equilíbrio orçamentário, outra precondição de câmbios estáveis”, In: Karl Polanyi, op.cit. p.209/210.

[13]  “Os infantes de suas legiões, além dos dois mil sestércios que ele (Júlio César) lhes havia contado a cada um no início dos distúrbios civis, receberam mais vinte e quatro mil, a título de butim. Quanto ao povo, ele fez distribuir não apenas dez  125 litros de trigo por cabeça e o mesmo tanto libras de óleo, mais ainda  trezentos sestércios por pessoa…”. In Suetônio, Vies des douze Césars, ParisÉditions Gallimard, 1975,

p. 56.

 

[14] Suétone, Vies des douze Césars, ParisÉditions Gallimard, 1975,

p. 164.

[15] Lajugie, J. Os sistemas econômicos, tradução de Geraldo Gerson de Souza, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1971, p´. 54.

[16] Polanyi,Karl, op.cit., p.59.

[17] Idem., p 60

16 Bronislaw Malinowski (1884/1942) antropólogo inglês nascido na Polônia, ganhou renome por seus estudos sobre os povos das Ilhas Trobriand, ao largo da Nova Guiné. É o fundador da corrente  funcionalista em antropologia social. In: The Columbia Encyclopaedia, editor  Paul Lagassé, Columbia University Press, 1993, p 1732.

17 Richard Thurnwald, antropólogo alemão (Viena 1869, Berlim 1954). Traz imensa contribuição ao estudo dos povos da Oceania e da África Oriental. In: www.britannica.com/eb/article?/ocId=9072343.

 

 

[20] Polanyi, Karl, op. cit. p. 61.

[21] “E é justamente nesse ponto negativo que os etnógrafos modernos concordam: a ausência da motivação do lucro: a ausência do princípio de trabalhar por uma remuneração: a ausência do princípio do menor esforço; e, especificamente, a ausência de qualquer instituição separada e distinta baseada em motivações econômicas. Mas então como se garante a ordem na produção e na distribuição?”

[22] Idem, p.63

* É o sistema fechado, a família que provê todas suas necessidades, portanto sem trocas exógenas, cuja exemplo poderia ser a a aldeia européia no período entre o século V e o X.

[23] Polanyi, Karl, op. cit.,64/65.

[24] Idem, p.121.

[25] Idem, ibidem.

[26] “O homem foi forçado a resignar-se à perdição secular: seu destino era limitar a procriação da sua raça ou  condenar-se irremediavelmente à liquidação através da guerra e da peste, da fome e do vício. A pobreza representava a sobrevivência da natureza na sociedade. A limitação dos alimentos e a ilimitação dos homens

chegaram a um impasse justamente quando surgia a promessa de um aumento ilimitado de riqueza, o que apenas tornava a ironia mais amarga.” (Idem,p.95).

[27] “A introdução da economia política no reino do universal aconteceu em duas perspectivas opostas – a do progresso e do aperfeiçoamento, de um lado, e a do determinismo e da perdição, de outro. A sua tradução para a prática também foi alcançada por dois caminhos opostos; através do princípio da harmonia e da auto-regulação, de um lado, e da competição e do conflito, do outro. O liberalismo econômico e o conceito de classe foram moldados dentro dessas contradições. Foi com a finalidade de um acontecimento elementar que um novo conjunto de idéias penetrou a nossa consciência.” Karl Polanyi, op. cit. p.96.

[28] Hicks, John, Uma teoria de história econômica, tradução de Maria José C. Monteiro, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1972, 170 p.

[29] Marx, Karl &Engels, Friedrich, Manifesto of the Communist Party, Londres, Encyclopaedia Britannica, Inc., 1952,  p.421/22.