12/10/2012, Raúl Zibechi, Programa de las Américas
Em menos de uma semana, a política dos EUA para a América Latina sofreu duas derrotas, em dois temas estreitamente associados: a vitória eleitoral de Hugo Chávez e o fracasso na tentativa de impor os critérios do Pentágono na X Conferência de Ministros de Defesa.
Venezuela: eleição decisiva
Poucas vezes alguma eleição dividiu a região de modo tão nítido como a eleição, dia 7 de outubro, na Venezuela. Tanto os governantes como boa parte da população sabiam que do resultado daquelas eleições dependiam não só a continuidade do processo bolivariano, mas, também, o aprofundamento da integração regional, a ampliação do MERCOSUL e, provavelmente as relações pacíficas entre os vizinhos.
“Das 92 eleições que monitoramos, eu diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo”, disse Jimmy Carter, dia 11/9, ao celebrar os 30 anos do Carter Center [1]. Dias antes das eleições e Caracas, o embaixador dos EUA Patrick Duddy sugeriu que, se a eleição fosse “aceitavelmente livre e justa”, seu país deveria “resetar” as relações bilaterais, com vistas a uma eventual renovação de comunicações de alto nível em áreas de interesse mútuo” [2].
Houve reações esperadas e outras quase surpreendentes. O fervor de Cristina Fernández, presidenta argentina, e a cálida felicitação do colombiano Juan Manuel Santos eram esperados. O chanceler chileno Alfredo Moreno, membro do governo conservador de Sebastián Piñera, destacou que as eleições venezuelanas foram um “exercício democrático impecável”. O porta-voz do Departamento de Estado, William Ostick, felicitou “o povo venezuelano”, mas não o presidente, e conclamou o vencedor a levar em conta “as mais de 6 milhões de pessoas que votaram pela oposição”. A União Europeia disse mais ou menos o mesmo [3].
A oposição aceitou o resultado e ninguém falou em fraude, motivo pelo qual houve quem supusesse que Washington tivesse modificado sua habitual hostilidade contra o governo Hugo Chávez[1]. Nada disso. No mesmo dia daquelas eleições cruciais na Venezuela, o secretário de Defesa dos EUA, Leon Panetta, partia para seu segundo giro pela região, dessa vez ao Peru e ao Uruguai, levando debaixo do braço um documento de 12 páginas, “A Política de Defesa para o Hemisfério Ocidental” que o Departamento de Defesa dos EUA havia divulgado na 4ª-feira, 3/10[2].
China: da cautela à euforia
Com a vitória de Chávez, o primeiro inimigo estratégico dos EUA consolida sua presença na região. O papel da China na Venezuela é chave. O intercâmbio comercial bilateral passou, de 1,9 bilhão, para 10,272 bilhões de dólares, o que fez da China o principal parceiro comercial de Caracas. A China aportou 52 bilhões de dólares em “fundos de financiamento conjunto” à Venezuela, a qual paga com petróleo, à razão de 640 mil barris/dia [4].
Para 2014, a sucateada indústria petroleira venezuelana espera produzir 4 milhões de barris diários, dos quais 1 milhão serão exportados para a China. No final de novembro passado, os presidentes de Venezuela e Colômbia assinaram vários acordos de cooperação, entre os quais o Projeto Binacional Oleoduto Venezuela-Colômbia, para exportar 500 mil barris de cru diários pela costa do Pacífico até a China, que seria o “sócio estratégico” num projeto que prevê investimento de 8 bilhões de dólares [5].
A Venezuela vem reorientando suas exportações de petróleo, que representam 90% de suas exportações totais. Em 1999, quando Chávez assumiu a presidência, os EUA compraram da Venezuela 1,5 milhões de barris/dia, cifra que caiu para 764 mil barris/dia em novembro de 2011, a menor em nove anos [6]. Como se pode ver, o mercado chinês está progressivamente substituindo o mercado norte-americano.
Dia 16/9/2010 assinou-se um acordo entre os governos de Venezuela e China sobre cooperação para financiamento em longo prazo. Chávez disse que o volume do investimento chinês na Venezuela é o maior de toda a história dos 60 anos da República Popular e concluiu: “Todo o petróleo de que a China possa necessitar para consolidar-se como grande potência encontrará na Venezuela” [7]. Vale lembrar que as reservas venezuelanas de petróleo já ultrapassaram as da Arábia Saudita e são hoje as maiores do mundo.
Mas nem tudo é petróleo. A China tem 430 projetos de desenvolvimento na Venezuela, em setores de eletricidade, transporte, mineração, moradias, finanças, gás, petróleo e petroquímica. Está contribuindo para o desenvolvimento das vias férreas, e há 50 projetos para exploração de alumínio, bauxita, carvão, ferro e ouro [8]. A cooperação binacional intensificou-se nos últimos cinco anos. Desde 2007, o Banco de Desenvolvimento da China emprestou 42 bilhões de dólares à Venezuela, 23% de todos os empréstimos internacionais do banco estatal chinês e praticamente o dobro de tudo que os EUA investiram, entre 2003 e 2006, para reconstruir o Iraque (29 bilhões) [9].
Sem dúvida, o dinheiro chinês é fundamental para a economia de um país que quase não recebe investimentos estrangeiros diretos. Mesmo os investimentos chineses chegam devagar: só 240 milhões de dólares entre 1990 e 2009 [10]. Talvez por essa razão, o governo chinês, que manifestara certa cautela nas semanas que antecederam a reeleição, não escondeu seu entusiasmo com os resultados, com Chávez reeleito para mais seis anos, e prometeu conduzir as relações entre os dois países “para um novo nível” [11].
Dinheiro novo, em troca de petróleo
A Venezuela paga a metade dos juros de mercado (6%, não 12%) e com esse dinheiro pode planejar obras como as 33 mil moradias que a empresa Citic constrói na China e atender aos crescentes investimentos do Estado. Em troca, Chávez oferece aos chineses participação na exploração do petróleo pesado da Faixa do Orinoco e no projeto das minas Las Cristinas, das maiores reservas de ouro do mundo [12]. Também assinou com a empresa Citic um acordo para mapear todas as jazidas minerais do país [13].
Graças à cooperação chinesa, a Venezuela já pôs em órbita dois satélites; o primeiro “Simón Bolívar”, em 2008, atende as telecomunicações; e o “Miranda”, em 2012, que será usado no planejamento urbano, em operações militares e na luta contra exploração ilegal de minas e plantios ilegais. Segundo o governo Chávez, os satélites permitirão “planejar a ocupação do território, cuidar melhor do meio ambiente, de nossas fronteiras, de nossos recursos naturais e de nosso povo” [14].
As relações com a Rússia também serão fortalecidas, mas são vínculos basicamente diplomáticos e militares. A indústria de armamentos russa está incrementando suas exportações, embora continue muito atrás da norte-americana. Entre 2012 e 2015, o principal comprador de armas russas será novamente a Índia, com 14 bilhões de dólares; mas a Venezuela já aparecerá em 2º lugar, deslocando assim a Argélia e a China, com compras projetadas de 3,2 bilhões de dólares segundo Ígor Korotchenko, diretor do Centro de Análise do Comércio Mundial de Armas [15].
A segunda viagem de Leon Panetta
Dia 7 de outubro, antes que se abrissem as urnas na Venezuela, o secretário de Defesa dos EUA Leon Panetta iniciou seu segundo giro pela região em apenas cinco meses [16]. Dessa vez veio armado com um documento de 12 páginas, “A Política de Defesa para o Hemisfério Ocidental” [17]. O texto é continuação do que foi elaborado em janeiro sobre as prioridades para a Defesa. Nos dois documentos, o objetivo é “manter a liderança mundial dos EUA”.
A política desenhada pelo Pentágono e pela Casa Branca para a região leva em conta dois novos fatos: as mudanças no mundo, entre as quais o novo papel da América do Sul, e o que lá se chama “a limitação de recursos”, como consequência do endividamento e da crise econômica que impõem restrições no orçamento militar.
Em consequência, o Pentágono já não pretende que seu principal modo de operar continue a ser o deslocamento militar direto na região; espera manter sua “liderança” mediante “enfoques inovadores, econômicos e praticamente sem ter de pôr os pés fora de casa. E espera, para conseguir isso, obter “esforços de cooperação” para “alianças bilaterais e regionais” à base do que entende que sejam “interesses comuns de segurança” [18].
Como os EUA encontram-se num “ponto estratégico de inflexão” pelo qual suas forças de concentrarão no Pacífico Asiático, trata-se, na América Latina, de encontrar “sócios” que se convertam em “exportadores de segurança”. O documento cita dois casos: o da Colômbia, cujas forças de segurança partilham “conhecimentos técnicos nos campos da aviação, antissequestro e luta contra o narcotráfico”, e o de San Salvador cujos “capacitadores” trabalham no Afeganistão e no Iraque. (São algumas das consequências ou sucessos do “Plan Colombia”, aspecto que Panetta no menciona.)
Com base nessas alianças, o Pentágono defende que “começa a aflorar uma rede interconectada: um sistema de cooperação para a defesa”, a partir de alianças “flexíveis e ágeis, capazes de responder aos desejos do país amigo e de mudar conforme aumenta a capacidade das forças militares dos países”.
Mas, apesar das aparentes boas intenções, os objetivos e os meios serão unilateralmente definidos pelo Departamento do Defesa. “As ameaças atuais à estabilidade e à paz regionais emanam da difusão do narcotráfico e outras formas de tráficos ilícitos, agitações e terrorismo, cujos efeitos podem resultar acentuados pelos desastres naturais e por uma oportunidade econômica desigual”. E acrescenta às ameaças atuais também novas ameaças no ciberespaço.”
Apesar de propor alianças “inovadoras”, o documento ainda aposta no que denomina “instituições de defesa maduras e profissionais” – entre as quais a Conferência de Ministros de Defesa das Américas que se faz a cada dois anos e a Junta Interamericana de Defesa (JID), no marco da OEA.
Panetta divulgou o documento pouco antes de participar da X Conferência, aberta na 2ª-feira, 8/10 em Punta del Este, Uruguai.
Como assinalou o analista argentino Horacio Verbitsky, o documento de Panetta “utiliza indistintamente “segurança” e “defesa” – o que não está sendo bem visto por boa parte dos países sul-americanos [19]. Verbitsky recorda que o MERCOSUL “rejeita o conceito de desastre natural, que substituiu por desastre socionatural”, o que pressupõe entender esses desastres como situação complexa e sobre tudo só agir no caso de haver pedido expresso “não entre forças armadas, mas pedido feito pelo governo do país afetado”.
A proposta do Pentágono
A proposta feita pelo Pentágono através do Chile, um dos sócios destacados na região, consiste em que as forças armadas coordenem as respostas aos “desastres”, acrescentando que, nessas “respostas” devem usar “unidades ou meios que tenham capacidade mínima de sete dias de operação com autossuficiência”.
Esse parágrafo alarmou várias chancelarias, entre elas a Argentina, dado que a maioria dos países da região não têm a tal capacidade “técnica”, o que deixaria o Pentágono na posição de único protagonista, como já aconteceu no caso do terremoto no Haiti em janeiro de 2010.
Por outro lado, para o mesmo Verbitsky, “os EUA tentam reformular a Junta Interamericana de Defesa (JID), para não perder uma ferramenta de controle sobre as forças armadas e de segurança na região”.
Vários países questionam a vigência das instituições multilaterais hemisféricas de defesa criadas durante a Guerra Fria, entre elas o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), criado em 1947. O mesmo se pode dizer da Junta Interamericana de Defesa (JID), entidade criada pela OEA, constituída em 1942.
O fracasso da “diplomacia militar” dos EUA
Sinal dos novos tempos, vários países da Aliança Bolivariana da Américas (ALBA) chegaram à X Conferência de Ministros de Defesa, esse mês, depois de terem decidido, em junho passado, separar-se da TIAR, que entendem já ferida de morte depois do conflito das Malvinas, em 1982 – quando os EUA apoiaram a Inglaterra, potência extra hemisférica, e não apoiaram a Argentina [20]. Trata-se aqui de Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua.
Somam-se a esses países as reticências de Brasil e Uruguai, contra a JID. O ministro uruguaio de Defesa, Eleuterio Fernández Huidobro, disse em seu discurso na Conferência de Ministros que a JID tem 70 anos, que está “velha”, que nasceu quando, no mundo “aconteciam coisas muito feias” [21]. Acrescentou que a desigualdade “é o grande problema que subjaz ou sobrevoa todos os outros problemas” e que “nem todos os militares do mundo algum dia darão conta de resolvê-lo”. E disparou: “durante esses anos, sofremos a ação de organizações criminosas internacionais piores que as do tráfico de drogas, armas e terrorismo. Falo, em boa parte, do sistema financeiro internacional que, mediante saques, assaltos, batendo carteiras e com roubos de todos os tipos provocou estragos até nos países mais ricos do mundo, mas, sobretudo entre as populações daqueles países. E, esses, andam pelo mundo soltos, um bando de criminosos transnacionais altamente perigosos que não podem ser excluídos de nossa lista de ameaças e riscos”. Panetta ouviu em silêncio.
Mas a intervenção que mais bem refletiu o clima na região foi a do ex-chanceler do Brasil, atual ministro da Defesa, Celso Amorim. Sua fala foi a primeira na Conferência de Punta del Este. Disse que “um sistema interamericano de Defesa como foi pensado imediatamente depois da 2ª Guerra Mundial é coisa que já nada tem a ver com o mundo de hoje, mundo multipolar, onde não há ameaça única nem continentes homogêneos” [22][3]. Defendeu a cooperação em temas de saúde, defesa e desastres naturais, mas “sempre que haja autoridades civis à frente”. E fez mais: questionou o papel das potências no Oriente Médio, a composição do Conselho de Segurança da ONU, disse que a prioridade do Brasil é a UNASUL e o Conselho de Defesa Sul-Americano, apoiou a defesa da soberania argentina sobre as ilhas Malvinas, defendeu um Atlântico Sul livre de armas nucleares e ainda acrescentou: “Nosso problema não é de proliferação: é de desarmamento. Que as grandes potências desmontem todos os seus arsenais nucleares.” Tudo isso, em apenas 22 minutos!
Os 29 países que participaram da Conferência de Ministros da Defesa discutiram durante 48 horas os temos do documento final. Aprovaram a criação de um Sistema Cooperativo de assistência humanitária de caráter voluntário “que respeitará a legislação de cada país e cuja coordenação e direção ficarão a cargo das autoridades civis” – como explicou o ministro argentino de Defesa, Andrés Allamand.
Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Nicarágua, Surinam e Venezuela votaram contra os termos do documento final; Guyana e Uruguai abstiveram-se. “Foi a primeira vez, na história desse fórum continental, que se realiza desde 1995, que foi preciso votar, ante a falsa de consenso” (AFP, 10/10/2012).
A declaração final da X Conferência de Ministros de Defesa não acolhe as principais inquietações do Pentágono – principalmente a intenção de fazer acordos diretamente com as forças armadas de cada país, sem considerar os governos políticos, que tem sido criticada como uma modalidade de “diplomacia militar”.
Bem diferente disso, a Declaração de Punta del Este “inclui o respaldo aos direitos soberanos da Argentina sobre as ilhas Malvinas” (item inicialmente rechaçado pelo Canadá e EUA) e recomenda muito vagamente que se continue e estudar o “sistema interamericano de Defesa”. Os países da UNASUL, exceto Chile e Colômbia, que apoiaram a Argentina em outros termos, “manifestaram sua preocupação com a crescente militarização do Atlântico Sul e com exercícios armamentistas que se realizam nas ilhas Malvinas”[23].
O que os países latino-americanos rechaçam cada dia mais claramente é o estilo do Pentágono de manter relações diretas “militares-militares” só com as forças armadas de cada país, desconsiderando os governos – exatamente o que sempre fez a Junta Interamericana de Defesa (JID) e faz agora o Comando Sul. O relato de Verbitsky sobre como funciona o Grupo Militar dos Estados Unidos na Argentina, o qual, durante décadas, manteve escritórios e gabinetes em instalações do exército argentino, numa “interação horizontal e direta só com as forças armadas, sem pedir autorização e sequer sem informar o Ministério da Defesa argentino”[24], ilustra um modo de operar que já não é aceito, na nova correlação de forças.
A continuidade do processo bolivariano e talvez o aprofundamento nos anos futuros potencializarão a crescente autonomia política, econômica e militar da região em relação aos EUA.