por: Renato Soares, ex-repórter da Veja e da Folha
O delegado Sérgio Fleury parecia cansado, recostado na cadeira com os dois pés estendidos em cima da mesa, na sala de torturas do DOPS de São Paulo. Havia passado toda a madrugada prendendo e torturando dirigentes do PCBR. Olhou para a minha cara, com um grande curativo de esparadrapo no nariz: “Que merda é essa?” Respondi que havia feito uma turbinectomia, à tarde. Estava de licença médica. Silêncio. Os policiais olharam para ele. “Que porra é essa?”, repetiu. Expliquei tecnicamente. “Ficha esse e bosta e coloca lá em baixo. Depois a gente acerta com ele”.
Só quando o datilógrafo, que resumia meus dados, colocou sem perguntar “militante do PCBR”, soube da acusação. Me mandaram para uma cela pequena, com uns 15 presos, no subterrâneo do DOPS. Dormíamos no chão. Aí repassei o filme.
Quando atendi à porta do meu apartamento nas Perdizes, de madrugada, logo percebi que era gente do DOPS. Um deles disse: “Tem um rapaz que foi detido. Precisamos que você nos acompanhe até à delegacia para esclarecer o caso”. Só tive tempo de dizer um momento, e fechar a porta. Falei baixo para minha companheira: ”É gente do DOPS. Não tem jeito. Tenho que ir com eles. Lá pelas 8 horas você tira todo o material clandestino daqui do apartamento. Mas verifique antes se não tem campana ”.
Eu era repórter na Folha da Tarde. No carro do DOPS encontrei um jovem jornalista de Última Hora, meu amigo, chorando, sem camisa, com marca de cassetete nas costas. “Você conhece esse subversivo?”, perguntou o que parecia ser o chefe da equipe. “É jornalista, meu amigo”.
Na cela onde fiquei também havia dois médicos: um gastroenterologista e um psicanalista. Impressionava aos carcereiros o sangue escorrendo do meu nariz, mesmo com o tampão. Só três dias depois me levaram a uma clínica, acompanhado de dois carros com policiais armados de metralhadoras, com uma série de ameaças. “Vai só fazer curativo. Se disser uma palavra entra no cacete”. Mas o médico que havia feito minha cirurgia, descendente de japoneses, atendeu com toda calma. Contei as péssimas condições higiênicas onde estava e ele marcou novo curativo, que nunca ocorreu.
Fui transferido para o presídio Tiradentes e, quase uns dois meses depois, a Auditoria Militar me soltou. Não encontrou nenhuma incriminação no meu depoimento. Retornei no dia seguinte à Folha. O secretário de redação me encaminhou ao Departamento de Pessoal. Eu havia sido demitido por “abandono de serviço”, mesmo a Folha de S. Paulo tendo noticiado minha prisão. Não me pagou nada. Ingressei com uma ação trabalhista, mas a polícia não fornecia qualquer certidão do período de minha prisão, porque a incomunicabilidade excedia o prazo legal. Na Justiça do Trabalho foi o depoimento do médico que me operou – só então soube que era capitão da Polícia Militar – que comprovou que eu havia sido preso.
Voltei a trabalhar na Veja, da Editora Abril, após um período desempregado. A Veja ficava no último andar de um prédio na Marginal, e um dia, quando sai do elevador, aí pelas 10 horas, vi três policiais. A gente os reconhecia pela cara. Passei pela recepção, cheguei à redação e o interfone me chamou: “Renato, tem uns rapazes aqui para falar com você”.
Um deles disse logo: ”É Renato Soares? Está preso”. Não explicava nada, nem tinha nenhum mandado. “Vou à minha mesa fechar a gaveta”, disse. “Não, você não contata mais ninguém. Já está incomunicável”. Reagi: “Então vão me levar à força, pois eu vou”. O chefe mandou um policial me acompanhar. “Qualquer coisa a gente pede ajuda à segurança da empresa”, disse. No meio da redação comuniquei: “Estou sendo preso dentro da redação de Veja”.
Estava nos esperando uma Kombi, dentro do terreno da Abril, com outro policial e várias metralhadoras. Era gente da OBAN, precursora do DOI-CODI, e me levou para o Quartel de Quitaúnas. Eu não fazia a mínima ideia porque estava sendo preso. Alguns militares passavam com volumes de processos e provocavam: “Sua situação tá preta. Aqui é melhor dizer tudo ou nunca mais vai dizer nada”.
No início da noite entrei na sala de torturas, onde estava um coronel. O chão molhado, com cheiro de creolina. Explicou: “Um frouxo subversivo cagou aqui e vomitou. Mandei lavar antes de interrogar você, que é jornalista, né?”, ironizou. Ao lado, a famosa maquininha de choque. Um porrete encostado na parede, duas mesas – imaginei o pau de arara. Ele me interrogou umas duas horas. E concluiu: “É, você já foi condenado, cumpriu uma pena, tava preso até poucos dias, mas mandaram prender você de novo para explicar suas relações com Jânio Quadros”. Contestei, não sabia nada sobre Jânio. Ele me mostrou o telex da Auditoria Militar com a ordem de prisão. E disse: “vou ligar pra lá pra confirmar”. Pouco depois reconheceu que minha prisão havia sido engano. “Você poder ir”. “Eu, sair daqui quase 11 da noite? Não, o senhor mandou me prender, agora me leve de volta”. Me xingou de folgado, mas ponderou: ”Você é jornalista… Cabo, leva esse subversivo aqui de volta”. Retornei de jipe do Exército.
Na volta à redação Mino Carta, diretor de Veja, me chamou à sua sala. Condenou a repressão e ficou irritado com a prisão ter acontecido dentro da redação, com suposta conivência do serviço de segurança da Abril. Mas não seria a única vez.
Não passou muito tempo os jornalões noticiaram um suposto atentado contra carros de distribuição do jornal Folha de São Paulo. A história da recepção de Veja se repetiu: “Renato, uns senhores estão querendo falar com você”, alertou a recepcionista. Eram policiais da equipe do delegado Sérgio Fleury.
Em baixo nos aguardavam duas caminhonetes fechadas, também dentro da Abril. Logo que os carros saíram, comigo algemado, um deles, do banco da frente, mostrou uma foto ampliada do meu rosto com barba. “A gente pensou pela foto que era um cara forte, mas é um baixinho desses”, e riu. “Olha só a foto que a Folha deu pra gente!” O outro respondeu. “É fraco, mas chefiou o atentado de tocar fogo nos carros da Folha”. Na lógica deles tudo era perfeito: eu era terrorista, havia sido demitido por justa causa, tinha uma ação na Justiça do Trabalho contra a Folha, havia me vingado. Era o que haviam apurado no Departamento de Pessoal da Folha. Rodaram comigo algumas horas e me levaram para “reconhecimento” no DOPS. Me fecharam numa sala, porta compacta com um buraco. Só percebia o olho me examinando. Depois de uma meia hora, disseram que o motorista do carro queimado não havia me reconhecido.
“Se foi você diga logo, cara. Amanhã vem o outro motorista. Se for você e está mentindo vai morrer”, ameaçava o chefe da equipe. A noite foi interminável, com muitas ameaças. Lá pelas 8 horas da manhã chegou o outro motorista. Quando foram fechar a porta, protestei. “Que reconhecimento é esse que só tem uma pessoa?” O chefe da equipe deu uma gargalhada, “ele ainda quer escolher, ó!” Mas colocou mais três policiais ao meu lado. O olho no buraco da porta circulava de um lado para outro. Saiu.
Uma meia hora depois, veio o chefe da equipe: “Esses motoristas da Folha são uns bostas. Ele reconheceu um dos nossos colegas que estava a seu lado, que não tem nada a ver. Merece um cacete, o filha da puta”.
Quatro dias depois me libertaram. Otávio Ribeiro, repórter, meu amigo, ligou: “Mano, te manda. Teu nome tá numa lista. Vão te botar um pijama de madeira”. Ainda me ajudou a conseguir documentos. Procurei o Mino para que me demitisse. Ele negou: “Renato, quando isso passar ainda quero contar com você. Não há nenhum motivo para sua demissão”.