O caixão de Zidan Saif desceu à sepultura, no povoado de Yanuh, dez dias atrás. Reuven Rivlin, presidente de Israel, participou da cerimônia, honrando a memória do policial como “um dos nobres filhos do Estado”. Saif, que deixou a esposa e uma filha de quatro meses, foi o primeiro a entrar na sinagoga de Jerusalém atacada por terroristas palestinos. Alvejado por um tiro na cabeça, morreu horas depois. Ele não era judeu, mas druso, de uma minoria dentro da minoria árabe que perfaz cerca de um quinto dos cidadãos de Israel. Nos próximos dias, o Knesset (Parlamento israelense) deliberará sobre um projeto de lei que, se aprovado, representará a segunda morte do “nobre filho do Estado”.
O projeto enviado pelo governo define Israel como o “Estado-Nação do povo judeu”. Israel é o Estado Judeu, dos pontos de vista histórico e demográfico. Contudo, do ponto de vista jurídico, Israel assenta-se sobre o princípio da igualdade de direitos políticos, sociais, religiosos e culturais de todos os cidadãos, judeus ou não. A proposta, patrocinada pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, almeja alinhar a lei à história, removendo os alicerces da igualdade de direitos. No meio de um texto aparentemente inofensivo, uma cláusula determina que, diante de sentenças legais dúbias, os tribunais devem usar a nova lei do Estado Judeu como “fonte de inspiração”. Atrás disso, está uma antiga ambição maximalista da extrema-direita israelense: a limpeza étnica.
“Os pais fundadores de Israel vislumbraram um Estado cujas naturezas judaica e democrática seriam como uma só”, disse Rivlin, criticando o projeto de lei. A harmonia sugerida por Rivlin é, de fato, um delicado equilíbrio assimétrico: na Declaração de Independência que funciona como Constituição de Israel, o polo democrático pesa mais que o judaico. A lei do Estado Judeu pretende deslocar o equilíbrio para o polo oposto, reduzindo a igualdade de direitos ao estatuto de contingência. Nunca antes um governo ousara desafiar a linha vermelha.
O sinal de alerta soou no interior do próprio gabinete de governo. Tzipi Livni, ministra da Justiça, disse que o projeto “joga no lixo a Declaração de Independência”. Yaakov Peri, ministro da Ciência, registrou que a lei do Estado Judeu o faz pensar “nos países que adotam a lei da Sharia”. Romper a linha vermelha significa abrir as comportas jurídicas para a inundação da democracia israelense. No fluxo de água suja, já flutuam um projeto de lei de revogação de mandatos de parlamentares retoricamente solidários à luta armada contra Israel e um de evisceração da cidadania de acusados de terrorismo, que abrange os familiares do acusado e suspeitos de colaboração com o crime. No fundo, Netanyahu tenta traçar uma fronteira dentro de Israel, separando os cidadãos com cidadania plena (judeus) dos cidadãos com cidadania precária (árabes).
É uma encruzilhada histórica, pois as raízes da legitimidade de Israel confundem-se com a Declaração de Independência. O antissemitismo contemporâneo, que se apresenta revestido com a película do antissionismo, acusa Israel de ser um “Estado de apartheid”. A negação permanente dos direitos nacionais dos palestinos configuraria um “apartheid” –mas esse risco ainda pode ser evitado por meio da conclusão de um acordo de paz que divida a Terra Santa em dois Estados. Por outro lado, a destruição do princípio da igualdade de direitos entre os cidadãos israelenses representaria uma mancha indelével: a refundação de Israel como Estado étnico e religioso.
Paradoxalmente, a legitimidade do Estado Judeu repousa sobre a presença da minoria de cidadãos árabes. O ministro da Fazenda, Yair Lapid, entendeu isso, ao formular a pergunta certa: “O que diremos agora à família de Zidan Saif? Que aprovamos uma lei que os converte em cidadãos de segunda classe?”.
Fonte: Folha de S.Paulo