3/06/2014 – Valor Online – Por Alberto Carlos Almeida | Para o Valor
Ontem foi a abertura da Copa e este artigo foi escrito antes do jogo. Ainda assim, é possível dizer que a vitória do Brasil foi merecida. Tratou-se de um jogo difícil, como em geral são os jogos de Copa do Mundo e as estreias. Nesta semana que passou, o país se decorou nas cores verde e amarela. Nossa bandeira, raramente vista na casa das pessoas – ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde com frequência a bandeira do país está permanentemente hasteada na frente das residências -, foi colocada em janelas de apartamentos e varandas de casas. Foi hasteada também nas janelas dos carros. Isso aconteceu em todo o Brasil, até mesmo nos lugares e cidades de menor entusiasmo com a Copa.
Havia quem dissesse, até pouco tempo atrás, que as pessoas não estavam empolgadas com a Copa e isso se refletia no atraso da decoração de rua. Dizia-se que, no passado, na Copa anterior, a decoração tinha começado antes. Mas ninguém soube dizer quando antes, em que data. O que se sabe é da nossa tendência de deixar tudo para a última hora. Afirmar que este ano a empolgação foi menor do que nas Copas anteriores, todas fora do Brasil, faz parte da angústia de ser brasileiro, desta enorme dor da alma que é ser inferior a alemães, franceses, ingleses e americanos.
Na semana passada, houve uma forte chuva em Brasília e cenas de alagamento no aeroporto da cidade circularam na mídia. Obviamente, o complexo de vira-latas veio a público com o bordão mais utilizado nos últimos tempos: “imagina na Copa”. O que dizer, então, do aeroporto de Berlim, que está quatro anos atrasado? O orçamento inicial para sua construção era de US$ 2 bilhões, mas a obra não sairá por menos de US$ 5 bilhões, talvez chegue a US$ 7 bilhões. E, apesar do enorme atraso, não há data prevista para a finalização. Consultorias especializadas afirmam que, quando o aeroporto for concluído, estará subdimensionado para o movimento aéreo de Berlim. Nesse caso, não se aplica o “imagina na Copa”, mas se aplica outro dito. Se o aeroporto da capital do país está atrasado, subdimensionado e com o orçamento estourado, imagina nas outras cidades.
Engana-se quem acredita que esta é a única obra atrasada na Alemanha e com orçamento acima do previsto. O mesmo vem ocorrendo com o túnel de Leipzig, com a estação de trem de Stuttgart, com a sede da agência de inteligência alemã e com a ópera de Hamburgo. Somando-se essas quatro obras com a do aeroporto de Berlim – um escândalo nacional de grandes proporções-, o atraso é de 19 anos e o total do orçamento estourado foi de mais de €15 bilhões. Ainda assim, pode-se dizer que a Alemanha é mais eficiente do que o Brasil. Ninguém negaria isso. O que não se pode é idealizar o mundo germânico e afirmar que lá as obras nem atrasam nem têm seus orçamentos estourados.
Escândalos de superfaturamento de obras públicas e políticos utilizando tais recursos para financiar suas campanhas existem em todos os lugares do mundo e em todas as épocas. Sabemos mais sobre o Brasil pelo simples fato de vivermos aqui e acompanharmos diariamente as notícias relativas a esses fatos. Não se trata de dizer “já que existe em outros lugares, então sejamos tolerantes com o que acontece aqui”. Jamais! Trata-se, sim, de reconhecer o caráter universal e atemporal da apropriação privada de recursos públicos. Corrupção é isso. Assim, não faz sentido nos sentirmos inferiores porque há corrupção no Brasil. Se fosse dessa maneira, pessoas de outras nacionalidades deveriam ter o mesmo complexo de inferioridade.
Alguns utilizarão o contra-argumento de que a corrupção é maior no Brasil do que nos países desenvolvidos. É provável que seja verdade. Mas também é provável que todos os países tenham evoluído de um passado mais corrupto para um presente menos corrupto. Essa evolução é possível porque há mecanismos jurídicos de controle em funcionamento. O Brasil tem isso. Esta coluna já tratou desse tema mais de uma vez, utilizando-se, inclusive, de estudos acadêmicos que demonstram que o ativismo do Ministério Público e dos Tribunais de Contas dos Estados tem sido muito importante e efetivo no controle da corrupção.
Alguns achavam que no jogo de abertura da Copa a torcida cantaria o Hino Nacional de costas para o campo. Isso não aconteceu. O motivo é simples: a seleção nos representa. Cantar o hino de costas para a seleção é o mesmo que cantar o hino de costas para si mesmo. Não há complexo de vira-latas que nos leve a fazer isto. A seleção está acima dos governos, está acima do PT e do PSDB. Os governos e os partidos passam, a seleção não, ela está sempre lá, com o desfile de jogadores inesquecíveis e de lances memoráveis. Foi liderada por Garrincha em 1962, por Pelé em 1970, por Romário em 1994 e por Ronaldo em 2002. Os líderes da seleção são mais numerosos e respeitados que nossos líderes políticos. Ninguém cantaria o hino de costas para a camisa amarela que já foi vestida por esses craques. Não há um pai que não tenha em sua mente uma interação importante com seu filho diante de um lance da seleção. Este pai jamais daria as costas para seu filho, e foi assim ontem, no jogo de abertura.
O brasileiro, que sofre por viver no Brasil, que almeja adquirir um apartamento em Miami para, quem sabe, viver no deserto afetivo que são os Estados Unidos, deveria ver o que aconteceu nesta semana após a chegada das seleções. Os alemães foram fazer turismo no Sul da Bahia, na região onde o Brasil foi descoberto, e nos ajudaram a descobrir um pouco mais do nosso país: os índios pataxós foram à concentração cantar parabéns para o atacante Klose. A Holanda não parou de fazer turismo no Rio de Janeiro, já visitou o Cristo Redentor e foi à praia em Ipanema. Dizem as más línguas que o que a seleção holandesa mais gostou mesmo foi de ficar baseada no posto 9. Os ingleses já dançaram o lepo lepo e a seleção da Itália decidiu se hospedar no cenário paradisíaco de Mangaratiba. Alguns jornalistas italianos disseram que vieram ao Brasil fazer turismo com a família. Qual o mal disso?
Imagina na Copa, foi o que os brasileiros vira-latas mais disseram nos últimos meses. Os gringos desembarcaram aqui esbanjando fascínio por nosso país. Deveríamos nos perguntar: de onde vem todo esse fascínio? Onde está isto tudo que não sou capaz de ver? Nem são capazes de ver Paulo Coelho, Ney Matogrosso e Ronaldo, que recentemente criticaram o Brasil e sua suposta incapacidade de organizar uma Copa de sucesso.
Tudo isso é expressão da vitalidade e da energia de nossa sociedade e de nosso povo. Alguns gostariam que essa vitalidade se expressasse de outra maneira, quem sabe fazendo uma revolução para melhorar os serviços públicos, resolver os problemas de mobilidade urbana, acelerar o atendimento na saúde pública, combater a violência. Queremos tudo isso, sem dúvida. O que não exclui reconhecer que o futebol mobiliza o que temos de melhor. O encontro entre a seleção alemã e os índios pataxós é a mais genuína expressão do encontro humano que o Brasil tão bem sabe patrocinar. A violência e a desigualdade são também coisas humanas e, como dissera uma vez Terêncio: sou humano, e nada humano é estranho a mim.
Não é estranho que o voto em Dilma ou nos candidatos de oposição nada tenha a ver com a avaliação que os brasileiros têm da Copa. Os dados revelam que, quando se controla a avaliação da Copa pela avaliação do governo, é esta última que influencia o voto. Sábio é o povo brasileiro, que, diferentemente de segmentos de sua elite, não mistura o futebol com a política.
É lamentável que tenhamos chegado ao segundo dia de Copa do Mundo no Brasil sofrendo com o fato de estarmos organizando uma Copa. Organizar um evento dessa magnitude é um sinal de sucesso, e o sucesso nos dói. Para alguns, a dor causada pelo sucesso é a prova de que somos um povo de perdedores. A mídia continua procurando o menor sinal de fracasso. Quem sabe um engarrafamento de um quilômetro na chegada a um jogo venha a ser noticiado como uma grande prova de nossa incapacidade de organizar uma Copa.
Aproveitemos o aqui e o agora. Este é o convite feito pelos índios pataxós, pelas seleções da Alemanha, da Inglaterra, da Holanda, da Itália. Aproveitemos a presença de nossos pais antes que eles se vão, é o conselho frequentemente dado aos filhos. Aproveitemos a Copa antes que termine. Ela acabou de começar e os brasileiros cantaram o hino de frente para a seleção.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de “A Cabeça do Brasileiro”. Alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida