por: Roberto Requião[1]
Vídeo do discurso: https://www.facebook.com/robertorequiao/videos/2183854541639884/
Não sou um Marcelino de Carvalho e nem tenho o “savoir faire” da Danuza Leão, mas quero falar sobre algumas regras básicas, coisas simples, naturais que sempre regularam as relações humanas, desde que descemos das árvores e passamos andar eretos.
E são em momentos de tensão, de conflitos, como os de hoje, que mais se exige civilidade, gentileza, enfim…boas maneiras.
No entanto, cada vez mais, convenço-me de que a polidez, o refinamento e a amabilidade não são próprios das classes que, em uma sociedade classes, são as classes dominantes, a minoria dominante.
Quando os conflitos sociais agudizam-se, as classes dominantes tendem a perder as estribeiras, os bons modos e destrambelham-se. O ódio de classes torna-se mais forte que todas as convenções humanas, sociais, políticas.
Os exemplos disso, ao longo de nossa história recente são frequentes, abundantes.
Lembro-me dos comentários grosseiros no “O Globo”, nas décadas de 50 e 60, envolvendo Getúlio, Juscelino, Jango e seus familiares.
Fico imaginando o sucesso retumbante daquelas canalhices se houvesse a internet, naqueles tempos.
Mas hoje, é diferente?
Não! Pelo contrário, com a liberdade concedida pela rede mundial de computadores a toda sorte de idiotas, as boas maneiras, a lhaneza, a generosidade e o respeito no relacionamento humano tornaram-se coisas do alvorecer da civilização, tempos das cavernas, quando a nossa dependência do outro significava sobreviver ou perecer.
A prisão de Luís Inácio Lula da Silva dá a medida do que falo. Na verdade, isso vem de antes, bem antes, pois essas manifestações boçais contra o ex-presidente remontam-se à sua eleição, em 2002. Ainda mais que ele substituiu no Planalto o “príncipe dos sociólogos”, o aparatoso Fernando Henrique Cardoso que, para orgulho dos bocós, dos colonizados, sabia até falar inglês….ou dizia que falava.
Na verdade, poucos como ele expressaram tão fortemente o preconceito das classes dominantes e dos abestados da classe média em relação à Lula e à Marisa.
Sempre que houvesse ocasião, o sociólogo referia-se ao fato de Lula não ter diploma universitário, não falar inglês, falar errado, não ter abotoaduras de ouro ou rendas nos punhos, para se relacionar com chefes de Estado de outros países.
E quando Lula triunfou nas relações externas o príncipe, morto de ciúmes, elevou o tom do despeito.
E a nossa gloriosa mídia comercial repastava-se, deleitava-se com as boutades do sociólogo.
O teórico da dependência queria que o retirante nordestino, o operário metalúrgico também se submetesse aos dominantes, como ele pretendia que fosse o destino do nosso país.
E disso nada mais é tão simbólico do que aquela famosa foto, em que Bill Clinton posta-se atrás de FHC, segura-lhe ombros, enquanto o presidente brasileiro derrete-se em sorrisos.
O ex-presidente poderia ter jogado um papel importante para amortecer o ódio de classes, o preconceito, o despeito tanto dos dominantes quanto da classe média em relação a Lula.
Esse gesto moderador teria feito bem ao país.
Diz-se que a vaidade é o pecado preferido do diabo. E FHC cedeu à tentação. Não apenas ele: todo um círculo de acadêmicos, de uspianos, de intelectuais e jornalistas, supostos homens e mulheres de esquerda ou de “democratas de centro-esquerda” emprestaram seus altos saberes para desclassificar o governo do metalúrgico.
Poucas vezes vi tanto despeito, tanto dor de cotovelo, tanta irresponsabilidade. A satanização de Lula e do PT começou aí.
E o que me impressiona é que o PSDB caiu uma segunda vez na tentação, na sequência da derrota de 2014, quando, ressentido, amuado decidiu destampar a caixa de Pandora, com as consequências que sabemos.
Agora, não adianta proclamar inocência ou se dizer “ingênuo”.
As políticas de inclusão, de promoção humana, a política do salário mínimo e dos aumentos reais para os aposentados, a política de geração de empregos que, tecnicamente, zerou o desemprego em nosso país, as políticas de abertura das universidades aos filhos dos trabalhadores, a política habitacional;
a redenção da agricultura familiar, a extensão dos benefícios da energia elétrica e do saneamento a amplas camadas da população, essas iniciativas todas da presidência de Luís Inácio tornaram visíveis dezenas de milhões de brasileiros, emersos do anonimato secular da pobreza, da fome, da miséria.
E a visibilidade dessa gente nos aeroportos, nas universidades, nas lojas, nos restaurantes, nos cinemas, nos shoppings, no trânsito das cidades provocou urticária em nossas classes dominantes e deixou os enfatuados da classe média incomodados, injuriados.
Mas, talvez a ocupação de assentos nos aviões pelos trabalhadores, pelos nordestinos, pelos mais pobres tenha sido a gota d’água para a explosão da impaciência com o Lula. A frase que mais se ouvia nos aeroportos de parte da classe média metida à besta, pernóstica era: “Isso daqui está parecendo uma rodoviária”.
Coisas simples, como ter carro, casa, emprego, filhos nas universidades, andar de avião, frequentar shoppings, comer três vezes ao dia, gozar as férias viajando ou às praias ou ao exterior passaram a ser encaradas como ofensa pessoal ao status das classes dominantes e da pequena burguesia idiotizada.
Essa a tragédia existencial das classes médias. Elas não existiam no começo da formação da sociedade de classes e não têm futuro garantido em uma sociedade sem classes. Presas ao drama de nunca ascender e de estar sempre próximas de descer, elas odeiam os pobres.
Reproduzo aqui trecho de um artigo do jornalista Mário Magalhães, de dias atrás:
“No sábado em que Lula perdeu a liberdade, uma mulher mostrou a amigas um vídeo em que o antigo torneiro mecânico consola duas militantes que choram. A mulher estava numa padaria da Aldeota, bairro bacana de Fortaleza. Uma amiga pilheriou: “Tá chorando porque agora vai ter que trabalhar.
Vai acabar essa história de Bolsa Família! ”. A mesa tremeu com as gargalhadas jubilosas. Um ouvido absoluto talvez percebesse ao fundo a voz gutural do “cidadão de bem” Justo Veríssimo (….) (dizendo) “Odeio pobre!”.
Nesse mesmo dia sete de abril, a imprensa deu cobertura a uma festança comemorativa à prisão de Lula promovida por notório cafetão paulistano, dono de um famoso prostíbulo que parece não incomodar nem as senhoras de Santana e nem os santos governadores paulistas.
Afinal, à moda dos prostíbulos de Berlim e de Roma, à época da ascensão dos nazistas e dos fascistas, esse puteiro paulistano também é um “puteiro do bem”, que apoia os bons costumes, combate à corrupção e o perigo comunista e defende Lava Jato.
E deu provas disso entronizando, na falta de fuhrers e duces, enormes cartazes com os retratos de dois ícones do poder judiciário..
E, sem que se visse qualquer reação, o gigolô – que se orgulha de suas conexões com juízes, procuradores, policiais e políticos-chegou a prometer um mês de cerveja de graça em seu puteiro, caso Lula fosse assassinado na prisão.
Isso não é estranho, pois sempre houve uma forte vinculação entre o submundo da prostituição, das drogas, do rufianismo com o nazifascismo. É aquela atração inelutável, invencível entre os moralistas e os amorais.
Como exigir, então, boas maneiras, finesse, urbanidade e polidez dessa gente?
Em verdade, não há diferença entre a reação da madame lá no bairro da Aldeota e a chulice do dono do puteiro.
Deus meu! Até o Baile da Ilha Fiscal degradou-se no Brasil…..
Agora que os trabalhadores, os assalariados, os mais pobres estão sendo arremessados de volta aos tormentos de onde foram resgatados, nada mais apropriado do que criminalizar o homem que teve a ousadia de propiciar a um matuto lá dos cafundós do Nordeste o prazer de uma viagem aérea ou de botar um canudo nas mãos de uma filha de operários.
O homem que deu aos pobres o luxo de três refeições diárias.
Parece que a nossa burguesia, as classes que dominam a mídia, o sistema financeiro e o governo, e se afiliam aos interesses globalistas e imperiais, parece que elas acreditam naquela conversa furada do fim da história, da derrota de qualquer sistema que se oponha ao capitalismo ou que tente reformá-lo.
Acreditam na cessação das contradições de classe. Acham, por exemplo, que chamar os empregados de “colaboradores” e os capitalistas de “empreendedores”, fará com que desapareçam, magicamente, operário e patrão, trabalho e capital.
São os artrópodes da fábula “O Escorpião e O Sapo”.
Vejam: nunca se vendeu tanta cerveja no Brasil como nos tempos do Lula e do primeiro mandato da Dilma. O pleno emprego, a política do salário mínimo, a correção das aposentadorias, os concursos públicos, tudo isso fez aumentar extraordinariamente o consumo em geral, e o consumo de bebidas.
No entanto, fiéis à sua natureza escorpiana, os maiores fabricantes de cerveja do país foram ativíssimos conspiradores conta Lula e contra Dilma. Financiaram os movimentos e as manifestações em favor do impeachment de Dilma. E hoje montam fundos para elegerem o presidente, deputados e senadores de sua confiança.
Da mesma forma, nunca se vendeu tanto tecido, nunca se vendeu tanta roupa de cama, mesa e banho e tantos enxovais como na presidência de Lula e nos anos iniciais do mandato de Dilma. Todavia, os fabricantes de tecidos, especialmente um deles, conspiraram o tempo todo contra Lula e Dilma.
Esse fabricante de tecidos que é hoje candidato à presidência, disse que no dia seguinte à queda de Dilma, aconteceria o espetáculo do crescimento, leite e mel jorrariam milagrosamente.
Uma dona de uma famosa rede de lojas, que leva ao seu nome, cansou de bendizer os anos Lula e Dilma, porque nunca vendera tanto, testemunhava.
No entanto, assim que a presidente foi apeada e começou o calvário de Lula, ela não teve dúvidas em tripudiar sobre a desgraça dos dois.
Temos ainda aquele famoso vendedor de remédios, talvez o dono das maiores redes de farmácias do país.
Enriquecido porque o pobre finalmente teve acesso a remédios, não teve escrúpulos em financiar a extrema direita na cruzada contra Lula e Dilma.
As senhoras e os senhores hão de se lembrar dele. Esteve aqui, neste plenário em um debate sobre a reforma trabalhista e tripudiou sobre os trabalhadores brasileiros.
Os donos da meia dúzia de bancos que monopoliza o setor financeiro do país não ficaram atrás do cervejeiro, do tecelão, do vendedor de remédios da dona do magazine. Mesmo que, nunca antes na história, tivessem lucrado tanto como nos governos Lula e Dilma, montaram também no sapo para atravessar o rio.
É claro, o consumo de cerveja caiu. A venda de tecidos caiu. A vende de remédios caiu. As vendas do magazine caíram. A compra de carros, geladeiras, televisões, computadores, máquinas de lavar, via crediário, pagando aos bancos juros lunares, caiu. Mas Lula e Dilma também caíram. Afundá-los era mais importante que o crescimento do país.
No meio do caminho, os escorpiões não resistiram ao chamado de suas naturezas, e sacrificaram o sapo. Fizeram o mal pelo bem, disseram. O mal para o povo, o bem para os dominantes, porque mesmo perdendo eles continuam ganhando.
Agora uma advertência, um aviso de utilidade pública: Os escorpiões amarelos são os mais venenosos.
Portanto, quando andarem por aí, pelas ruas, calçadas, praças de nossas cidades, no vão do MASP ou em frente à FIESP, lá na Paulista, cuidado com os amarelinhos. Como os patos, os escorpiões amarelos são perigosíssimos.
Ah, sim! As assinaturas de tv a cabo, de revistas e jornais, a compra de revistas e jornais, desabaram.
Mas, como dizem os donos da mídia: que se me dá que o muar claudique se meu desiderato é dar de relho, chicotá-lo?
Senhoras e senhores senadores.
Quando alguns sinais, quando alguns símbolos, quando expressões representativas da civilização, da convivência, das relações humanas apodrecem e se esfarelam; quando os limites da tolerância, da boa vizinhança, da cordialidade e do respeito começam a ser ultrapassados, é preciso –independentemente das posições políticas e simpatias ideológicas- é preciso bom senso, humildade, renúncia e sabedoria para evitar o rompimento das pontes que ainda fazem a sociedade se comunicar, interagir.
Claro, não se propõe diálogo com os extremistas de direita, com os fascistas que se abrigam nesses grupelhos que os cervejeiros, os tecelões, os vendedores de remédios, os banqueiros, e os industriais sem indústrias da FIESP financiam, à moda dos Thiessen, dos Krupp, dos Hugo Boss, dos Farben, dos Ferdinand Porsche, dos Agnelli, na Alemanha nazista e na Itália fascista.
Com essa gente não há interlocução.
Modus in rebus, Brasil.
Moderação na coisa.
Sensatez. Razoabilidade. Tino. Ponderação. Cautela. Engulam os seus preconceitos de classe. Deglutam o sapo barbudo. As lições da história estão aí. E os bárbaros estão chegando. Quem quer pagar para ver no que vai dar?
Boas maneiras, senhoras e senhores…
Será que o povo terá “boas maneiras”, como os senhores, quando ele perceber o que está acontecendo?
Vídeo do discurso: https://www.facebook.com/robertorequiao/videos/2183854541639884/
[1] Roberto Requião é senador da República, no segundo mandato. Foi governador do Paraná por três mandatos, prefeito de Curitiba, secretário de estado, deputado estadual, professor universitário, oficial do exército brasileiro, advogado trabalhista, industrial e agricultor. É graduado em direito e jornalismo com pós graduação em urbanismo e comunicação.