por: Tarso Genro
Socorro-me, novamente, de Walter Benjamim para procurar entender o presente. Paira nas redes a notícia de mais uma violência contra o Estado de Direito da Constituição de 88, que seria cometida pelo juiz Moro. Desta feita promovendo uma prisão desnecessária, espetaculosa e arbitrária, contra o Presidente Lula, dando sequência às deformações processuais e materiais, que transformaram a operação “Lava Jato” num instrumento político do rentismo global, que visa desmontar as conquistas sociais dos Governos Lula, que melhoraram a vida de milhões de famílias pobres e remediadas deste país de classes dominantes escravocratas e intolerantes.
O Estado de Direito que consegue naturalizar a derrubada de uma Presidenta sem crime e destruir as bases sociais do pacto constitucional, através de uma Proposta de Emenda que anula -no tempo e no espaço- os fundamentos da sua Constituição política, comprova a assertiva de Benjamim de que “não existe nenhum documento da civilização, que não seja -ao mesmo tempo- um documento de barbárie.” O Estado de Direito que funcione deve ser, sempre, portanto, um primor de engenharia jurídica, que organiza os conflitos, rompe correlação de forças e absorve conquistas do pensamento humano, tanto para chancelar a humilhação e exploração, como para libertar e resistir.
A PEC 241 é um desses documentos históricos que revela estas ambiguidades. É medida que está prevista no próprio tecido constitucional da nação, de cujo conteúdo tanto podem ser extraídos protocolos civilizatórios, como instrumentos legalizadores de uma pilhagem. Não é novidade para ninguém que a expressão “Estado de Direito”, seja como conceito da Teoria do Direito, seja como momento prático de organização da sociedade, abriga sempre aquela dupla possibilidade.
Foi também por dentro do Estado de Direito – nos países capitalistas avançados – que foi construída a riqueza ocidental parasitária (na “pilhagem” colonial escravista) através de um “gigantesco arco de produção de economias externas legalizadas”. Estas formas de produzir e viver é que permitiram que o capitalismo seja o monstro bifronte que ele é, nos dias de hoje, pois também por dentro deste Estado foram constitucionalizados os direitos fundamentais, vicejaram as políticas de Direitos Humanos e o direito à ampla defesa, que Moro não teme em desrespeitar
A socialdemocracia foi civilizatória, o “ajuste” liberal é pilhagem. Mas ambos contém um e o outro. A socialdemocracia só foi possível pelo acúmulo, nas metrópoles, de um excedente colonial extraído pela pilhagem, justificada pelo Direito em todos os períodos, inclusive na vigência dos seus Estados Sociais mais completos. O ajuste liberal como pilhagem, por seu turno, opera nos dias que correm pela manipulação da dívida pública, que permitiu ao capital financeiro sequestrar o Estado e assim proceder por meios “civilizados”: por intermédio do Direito nas votações do Parlamento, combinadas com uma espetacular manipulação da informação, ficou dispensada a violência física direta dos períodos coloniais e neocoloniais.
Essa é, pois, a grandeza e a miséria do Direito que, na sua expressão estatal -em qualquer regime político- contém sempre aquela dupla possibilidade, de barbárie e civilização. Sua essência não é, pois, metafísica, pois o Direito é sempre um movimento dentro ou fora do que a ordem formal do Estado prevê, ora como “exceção”, ora dentro das “regras”. E o faz pelas decisões judiciais, pelos pactos políticos na sociedade, as interpretações da administração, as votações no Parlamento, que ora privilegiam o polo principalmente civilizador do Direito, ora seu conteúdo “bárbaro” de dominação. A legalização da tortura – reconhecida pelo Estado americano fora do seu território- é barbárie; os acordos de Paz, na Colômbia, são civilizatórios. Ambos teriam poucas possibilidades de acolhimento no senso comum, todavia, se não estivessem presentes pelo menos como possibilidade no Direito do Estado.
Os boatos que surgiram, recentemente, sobre a iminente prisão do ex-Presidente Lula -que ainda pode se realizar – mostram que a ordem jurídica democrática do país é prisioneira de um impasse. Ela está tensionada pela exceção e pela hipnose udenista (promovida por uma parte do Judiciário, do Ministério Público e da direita midiática) de um lado, e o temor – de outro lado – de que a reação popular à ruptura dos precários limites do Estado de Direito, seja capaz de abalar a “Lava Jato”.
Esta, já se caracterizou, aliás, não como um instrumento de luta contra a corrupção, desejado pelas pessoas honestas de todos os partidos do país, mas como um perigoso processo de exceção, que demoniza especialmente o PT, para impor ao país um ajuste antissocial e antinacional, já em curso, administrado por uma Confederação de Investigados e Denunciados. Estes, na verdade -como os prisioneiros ilegais de Moro- também são reféns da exceção: ou fazem o “ajuste” ou caem fora!.
A “Lava-jato” traz embutida no seu cerne dois grandes perigos, além de já ter sido fundamental para viabilizar o embuste da PEC 241. O primeiro é que, logo após o seu encerramento, ela resulte num aumento da corrupção no país, por deixar impunes todos os seus protagonistas originários, grandes figurões da política, que desde a época dos Governos FHC montaram o esquema perverso de “privatização” da Petrobrás, pela corrupção. O segundo é que, com a fantástica desconstituição da política e dos partidos, consolide-se um estilo fascista de disputa política, que divida sem retorno a sociedade brasileira entre petistas e anti-petistas, esquerda e direita, lulistas e anti-lulistas, destruindo a possibilidade de que venha existir, no Brasil, um centro programático e ideológico capaz de ser o estabilizador do pacto democrático e pluralista, que ainda pode ser renovado.
Ou seja, isso significa ter Moro e Dallagnoll, Bolsonaro e Marquezzelli, Alckmim e Doria, como referenciais democráticos para as novas gerações, enterrando em definitivo os fundamentos da Carta de 88 e a ideia de uma nação compartilhada que a Constituição carrega consigo.
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Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.