por Tereza Cruvinel
Uma das frases mais reveladoras da hipocrisia do Senado no julgamento da presidente afastada Dilma Rousseff foi a de seu presidente, Renan Calheiros, ao comentar a carta em que ela reiterou a percepção de que o impeachment sem crime demonstrado é golpe e propôs um acordo nacional para que o povo decida, em plebiscito, sobre a antecipação das eleições presidenciais: “Na democracia, a melhor saída é sempre a saída constitucional. Plebiscitos, novas eleições, não estão previstos na Constituição. Logo, isso não é bom”, disse Renan.
Como “não é bom” o povo votar, Renan?
Como “não é bom” realizar consultar populares que estão, sim, previstas na Constituição. A elite política brasileira é que não gosta de fazer uso delas.
Quanto menos povo, melhor.
Em 28 anos de vigência da Carta de 1988, fizemos apenas dois plebiscitos nacionais. O que Renan disse resume bem um dos discursos mais hipócritas dos parlamentares brasileiros.
Quando lhes interessa, dizem que são comandados pela voz roucas das ruas.
Quando o interesse é outro, fazem ouvidos moucos a esta mesma voz.
Neste momento, segundo todas as pesquisas, mais de 60% dos brasileiros querem novas eleições presidenciais.
Mudar de opinião também faz parte do cinismo parlamentar brasileiro.
Em abril, Renan disse que via com “bons olhos” a hipótese de antecipação das eleições.
Dilma ainda não havia sido afastada e ele ainda se equilibrava entre a lealdade ao governo dela ou a adesão ao movimento conspirador de Temer e companhia.
Agora, quando a mesma proposta vem de uma Dilma prestes a ser condenada, e ele já se compôs com o grupo que se assenhorou do governo, acha que “não é bom” o povo exercer a soberania do voto.
Por estas e outras, a carta de Dilma não deve alterar a correlação de forças favorável a sua condenação e à efetivação de Temer, o simulacro de eleição indireta a que ela se referiu. Ainda assim, a carta foi um passo necessário.
Com ela, Dilma deixa um documento histórico, onde não reivindicou a volta ao governo para concluir seu mandato, mas a submissão da decisão ao voto popular.
Nas democracias, como diz Renan, as soluções constitucionais devem mesmo prevalecer.
Mas aí estão dezenas de juristas, nacionais e estrangeiros, apontando as deformidades do impeachment em curso em relação ao que diz a Carta sobre a matéria. E ademais, na democracia, nada está acima da vontade popular.
Mas, pelo visto, daqui para a frente será assim, como disse Joaquim Barbosa: “basta um presidente contrariar meia dúzia de parlamentares poderosos para ser derrubado”. Danem-se os eleitores e o direito de escolher presidentes.