por: Tarso Genro
O Grande Ajuste do capital financeiro – fato histórico-universal mais importante desde a 2ª Grande Guerra – não é considerado pelos chamados “formadores de opinião” da mídia tradicional e seus jovens repórteres “da política”, como um elemento decisivo para compreender o nosso presente.
Em regra, analisam as questões políticas, inclusive o próprio processo de impedimento da Presidenta, como um fato isolado desta questão crucial da nossa época.
Seria como se os publicistas do pós-guerra, desconsiderassem a derrota de Hitler e a hecatombe que a precedeu, como elementos de fundo para analisar a reorganização da política europeia e mundial, com seus novos polos de poder na geografia do globo.
O resultado desta omissão, à época, seria um retrato desconjuntado, uma sequência de fragmentos nacionais em movimento, ao sabor da espontaneidade dos seus líderes locais.
O resultado atual – da análise ou da informação que não considera o ajuste como pano de fundo de toda a movimentação política mundial – é uma falsificação do presente, através de categorias morais (luta entre “honestos” e “corruptos”, “dever de casa”) para que o seu objetivo final, o ajuste, seja assimilado sem conflito.
Esta compreensão, que transforma uma suposta naturalidade em ideologia do ajuste, leva – por exemplo, Secretários ou Ministros – contratados para conduzirem tais processos (os mesmos que depois prestam serviços nas agências privadas de especulação) a ironizarem os “déficits” sociais, alegando que um setor público endividado não deve cuidar da sua gente, mas sim da renda dos seus credores.
Assim, a centralidade do ajuste é a matemática dos juros, que só pode ser implementada pela força, seja da corrupção transformada em força política, seja por gerentes terceirizados do sistema financeiro, para o qual eles vão e voltam, a depender dos ventos da política.
As taxas de juros elevadas nos países da “periferia” (e nos “intermediários” como o nosso), em contraste com as taxas muito inferiores ou negativas nos países centrais, nos transformaram – como já disse a professora Leda Paulani – “em plataformas de valorização do capital financeiro”.
Tal posição permite uma drenagem intensa de recursos financeiros para os países do “centro” – onde estão situados os financiadores da nossa dívida – permitindo que estes mantenham a saúde do seu sistema financeiro e bancário, proporcionando inclusive lucros reais na sua base produtiva.
Tais condições autorizaram, ali, a construção socialdemocrata e o Estado do Bem-Estar, como forma de resistência dos “de baixo”, à exploração desenfreada do capitalismo, que desmanchava no ar tudo que era sólido.
Refiro-me ao Grande Ajuste mundial porque, nos jornais de fim de semana, quando escrevo este artigo, pairam – com a leveza peculiar da nossa imprensa – dois temas que já se tornaram “alegóricos”.
O primeiro tema diz respeito à “luta interna do PT”, quando um articulista de Zero Hora – por exemplo – localiza em alguns líderes partidários petistas a vontade de “formar outra sigla de orientação esquerdista”!
(Não um outro partido democrático, de esquerda, compatível com o enfrentamento do domínio do capital financeiro sobre o Estado, que precisa dissolver em escala global – no período histórico corrente – as conquistas da social-democracia e a própria a democracia representativa, mas um outro “partido esquerdista !”).
À medida que alguém recorre à categoria política “esquerdista”, para informar sobre um conflito, está passando uma informação – talvez de forma inadvertida – sobre um antagonismo histórico na esquerda, que vem das origens da social-democracia, da ruptura bolchevique com esta e do confronto, deste, com a “doença infantil do esquerdismo”, tida à época – por Lenin – como uma doença das ilusões dentro do próprio movimento operário revolucionário.
Mas o uso desta expressão é uma forma a generalizar o pensamento de esquerda como “único” e não é gratuito: ele visa dissimular as diferentes matizes da esquerda, assim como o uso da palavra “ajuste”, visa dissimular uma necessidade do capital financeiro, para que ela aparente uma necessidade civilizatória.
Dissimuladas as diferenças entre esquerda e centro-esquerda, centro e direita, nacionalismo fascista e nacionalismo democrático, a ideia do “caminho único” fica mais fácil de ser considerada como tal..
Numa só fórmula da vulgata liberal, o articulista – certamente de forma inconsciente – afrontou uma categoria da ciência política (o significado histórico do “esquerdismo” na história da esquerda); manipulou as suas fontes (que não usaram a expressão “esquerdista”); e retirou da sua matéria cenário o debate principal, que ocorre hoje no PT, que é sobre a questão democrática (ensejado pelo sucesso do golpismo liberal-rentista), não sobre esquerdismo ou direitismo.
Não é a questão do “esquerdismo” – que é o oposto voluntarista das teses marxistas, soviéticas e chinesas – que divide as posições no PT, nos dias que correm.
O que nos divide é como recuperar, hoje, pelo menos a densidade democrática do pacto republicano, que já se move no rumo do desastre.
Para fazer isso, o projeto do petismo em crise, deve, na verdade, é recuperar uma capacidade de luta e de direção social-democrata, análoga (não idêntica) aos grandes partidos socialdemocratas do Século XX.
E não se tornar uma expressão tardia do “esquerdismo”, que é a infantilidade da ideia de revolução fora da democracia, ou travestir-se de uma social-democracia sem projeto alternativo ao caminho único.
As formas artísticas “alegóricas”, para Walter Benjamim, recusam o “fechamento de sentido” para a apreciação de uma obra de arte.
Nas suas múltiplas significações, as obras alegóricas permitem “montagens e remontagens diversas”, cujas ambiguidades são apanhadas pelo receptor da mensagem, como ele as deseja receber.
Se a alegoria pode funcionar bem como arte (o que Lukács duvidava), no jornalismo, todavia, ela pode se tornar um método para manipular a informação.
A medida que eu tenho o ajuste, tal qual ele é, como única saída, e fecho o sentido da palavra somente conectando – a com as reformas neoliberais, as informações políticas que eu transmito tornam-se apenas apologias para consolidar a ideia do ajuste, não elementos concretos que ajudem a compreender o que acontece na História presente.
A consequência deste fechamento é a “naturalização” ideológica do ajuste.
A obra de arte alegórica é aberta a vários sentidos e não se origina, imediatamente, dos impulsos do mercado.
A notícia alegórica, todavia, é um fragmento fechado especial, destinado ao mercado da notícia, cujos financiadores tem interesse na simplificação, porque ela é uma arma política importante para sustentar a ideia do ajuste.
Ser “esquerdista”, na compreensão destas pessoas, portanto, é uma das características de quem não entende que a única boa saída, para a humanidade, seja o regime do capital financeiro e da acumulação sem trabalho.
Mas, pasmem, o que pode ser apontado historicamente como esquerdismo real, na cena política do país, esteve – em conjunto com a direita conservadora – apoiando a substituição de Temer por Dilma, “porque eles não tem nenhuma diferença”.
A esquerda mais tradicional, na qual eu me incluo, foi e é contra o impedimento da Presidenta, porque vê na Confederação de Temer o prenúncio de uma situação muito pior, para as classes populares do país.
Este tema da naturalização do ajuste leva à segunda alegoria: a construção de um fragmento político, através do qual se pretende convencer as pessoas que o “ajuste” demandado pelo capital financeiro é um “dever de casa”, não uma imposição do “rentismo”.
O “espectro do comunismo ronda a Europa”, diziam os inimigos letais do capitalismo, no seu Manifesto de 1848, não sem deixar de manifestar uma profunda admiração pelas forças construtivas da nova ordem, que fazia tudo “que é sólido desmanchar no ar”.
Uma forma literária analógica ao Manifesto, para os dias de hoje, poderia ser expressa assim: “o espectro do ajuste ronda a periferia e tudo que nem era tão sólido, desmancha no rentismo”.
Uma alegoria, com o Manifesto, porém, certamente diria: “cada país, em particular, deve fazer seu ajuste, porque já desmancharam no ar”.
Por esta forma alegórica, o ajuste mundial tornar-se-ia um ajuste particular de cada país (“o dever de casa”), como se o capital financeiro não fosse a totalidade do processo, o comando da ordem, o superior das nações.
Cobra atualidade, esta segunda alegoria, no momento em que os jornais do fim de semana também começam a verter desconfiança sobre o Presidente interino, que não está demonstrando comandar o “dever de casa”.
Desconfiança que ele não vai “fazer” o ajuste combinado, para cuja viabilização foi engendrada a palavra de ordem unificadora da luta contra a corrupção, que levou ao poder a maior Confederação de Denunciados e Investigados, já conhecida na História do Brasil.
Fala-se, com a sutileza mastodôntica já peculiar da nossa época, que “o mercado está ansioso e desconfiado” e que não aparecem, no horizonte, os “sinais de reformas verdadeiras”.
O golpismo, que está defenestrando a Presidenta legítima e eleita – que queria fazer “meio ajuste” – levou ao Governo um interino, que não tem base social e política, para fazer o ajuste integral? Esta crise começa a se desenhar e ela vai informar as grandes disputas políticas, não somente até a votação do afastamento definitivo da Presidenta, mas seguramente até 2018.
Deng Xiaoping, quando disputou os rumos do dragão chinês, no Congresso do PC Chinês de 1982, para o bem e para o mal, convenceu os seus pares que “plano e mercado são apenas instrumentos e não distinções fundamentais entre socialismo e capitalismo”, recuperando uma polêmica originária da social-democracia no início do Século passado”.
Kautsky, Bernstein, os austromarxistas, os Mencheviques de todas as extrações Willy Brandt, Olof Palm, estavam assim regenerados, em nome de um projeto de conciliação entre o Capitalismo de Estado e o distributivismo socialista, num regime político autoritário.
O “ajuste” chinês fez sair da pobreza, até agora, mais de 500 milhões de pessoas. Quais as consequências do nosso ajuste, senão o aumento do desemprego, mais concentração de renda, redução das funções públicas do estado e mais renda drenada para fora?
A consequência será uma tímida retomada do crescimento, que não vai recuperar as taxas de crescimento perdidas e que, pouco depois, demandará um novo ajuste, como tem ocorrido nos últimos 50 anos.
O ponto de partida da autocrítica do PT, na opinião de um conjunto de pessoas que lutam pela sua afirmação como partido de esquerda democrático – não “esquerdista” nem social-democrata de direita – é reconhecer que, além das importantes conquistas democráticas e sociais, que melhoraram a vida de milhões, também contribuímos para – ao não mudar o sentido estratégico da nossa Coalizão durante primeiro Governo Dilma – tornar Temer uma saída acessível ao ajuste neoliberal.
Porque o vazio de ideias é sempre preenchido pelo polo mais ativo, na disputa sobre o futuro.
E o polo que nós fortalecemos é o mesmo que viabilizou a traição e a queda.
A época, hoje, também é de construir as novas preliminares de uma nova utopia, pois a esquerda sem utopia é como a direita sem alegoria: não tem voz nem fantasia para comover as pessoas e mobilizar as consciências.
(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.