por: Marcos Nobre
O PMDB é uma empresa de fornecimento de apoio parlamentar, com cláusula de permanente revisão do valor do contrato. Na qualidade de maior empresa do ramo, estabelece sempre o parâmetro dos preços praticados nesse mercado. Todas as demais empresas aguardam a negociação do PMDB para a fixação do preço de seus serviços. Se quiser governar, qualquer governo está obrigado a estabelecer primeiro um acordo com o líder do cartel do sistema político.
A Operação Lava-Jato colocou em risco não apenas essa liderança, mas a própria sobrevivência do PMDB e das parcerias público-privadas que o sustentam. Afinal, se a Justiça prende e mantém presa gente rica de verdade, se encarcera por meses a fio os grandes empreiteiros que financiam as campanhas políticas, o que não fará com os seus financiados? Em um primeiro momento, a expectativa foi a de sempre: o governo não vai atirar no próprio pé, não vai permitir que a Lava-Jato atinja o serviço essencial de apoio parlamentar.
Só que fazer isso significaria que, além de carregar nas costas a pior recessão em mais de duas décadas, Dilma Rousseff teria também de encarnar sozinha toda a corrupção do país. E aí certamente cairia. A tentativa de sempre de cortar os fios soltos já não tinha mais o lastro de antes de junho de 2013. O trabalho meticuloso da força-tarefa da Lava-Jato e o amplo e difuso apoio popular de que dispõe dificultaram enormemente o bloqueio político da operação. Por paradoxal que possa parecer, o que manteve Dilma no governo até agora foi o fato de não ter obstruído a Lava-Jato. Nem mesmo para tentar salvar figuras do próprio PT.
Mas o que colaborou para que Dilma não caísse também impediu que conseguisse se firmar. A situação pareceu mudar em fins de setembro, quando a presidente resolveu entregar parte substancial de seu governo a Lula. Foi o primeiro e único momento em que se esboçou algo que, à distância, parecia se assemelhar a um governo. Durou o tempo de uma denúncia ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Em mais uma dessas coincidências que só a política é capaz de produzir, cerca de 15 dias depois da abdicação de Dilma em favor de Lula o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, confirmou que o presidente da Câmara mantinha contas na Suíça. Em 14 de outubro, o PSOL e a Rede apresentaram denúncia contra Cunha no Conselho de Ética da Câmara. No dia seguinte, Janot protocolou novo pedido de investigação do deputado no Supremo Tribunal Federal (STF).
Eduardo Cunha interpretou o movimento como o de um governo que tinha pela primeira vez alcançado alguma estabilidade e que pretendia a partir dali remover um a um os obstáculos que o impediam de se estabilizar de vez. Concluiu que o primeiro obstáculo e alvo era ele próprio. Mas precisava ter certeza de que o movimento vinha não apenas de Dilma, mas da regência de Lula como um todo. Foi quando encenou um teste. Arrumou as peças de maneira a fazer com que os representantes do PT no Conselho de Ética se tornassem o fiel da balança no caso do pedido de cassação de seu mandato. O PT fechou questão pelo acolhimento da denúncia, orientando seus representantes a votar pela abertura do processo de cassação de mandato de Eduardo Cunha.
A sequência do processo mostrou que era apenas encenação. Cunha já tinha há muito tempo na manga a carta que levaria o processo novamente à estaca zero no Conselho de Ética. E tinha mais votos favoráveis do que mostrou naquele momento. Precisava apenas ter certeza de que o governo nada faria para salvá-lo. Teve sua resposta. E, com ela, a constatação de que Dilma tinha reassumido, de que tinha acabado o curto período de regência, de que Lula não tinha de fato conseguido assumir o controle do governo da sucessora. Foi quando assumiu o papel de capitão do impeachment.
O governo atual não merece ser defendido. Mesmo porque não existe como governo. Mas o que significa querer afastar Dilma nas circunstâncias atuais? No momento, defender a continuidade sem restrições da Lava-Jato é incompatível com estabilidade política. Simplesmente porque a instabilidade é estrutural. Não está em Dilma Rousseff nem em Eduardo Cunha. A instabilidade vem do fato de que não se sabe até onde vai alcançar a foice do Judiciário em termos do sistema político como um todo. Somente quando estiver delineado o quadro geral de implicados é que será possível produzir alguma estabilidade. Somente aí se tornará possível um acordo mínimo entre forças políticas não implicadas para que o país volte a ter governo.
O presidente da Câmara não representa apenas a si mesmo. É o bastião de boa parte das forças de autodefesa contra a Lava-Jato. Dentro do sistema político, representa parte daquele contingente que passou a usar o impeachment como arma e munição contra a Justiça. Se o objetivo de quem é favorável ao impeachment for de fato reunificar o país e produzir um governo estável, não há como caminhar com Cunha. E não só porque dificilmente a estabilidade virá mediante o mero afastamento de Dilma Rousseff. Também porque se estabilidade vier, o risco é de que seja às custas da Lava-Jato.
O que está em causa agora não é um governo. Não é nem mesmo o mandato de Dilma Rousseff. Trata-se unicamente de não se deixar contaminar pelo uso que faz Eduardo Cunha da lógica de tipo os fins justificam os meios. No momento, o pedido de impeachment não consegue escapar dessa contaminação. Como não escapará da contaminação o seu resultado, caso sua origem seja Eduardo Cunha.
Ao embarcar oficialmente na defesa do impeachment, o PSDB acaba de regredir ao estado de linha auxiliar de uma ala do PMDB. Presta-se ao papel de infantaria à disposição de Eduardo Cunha e Michel Temer em sua disputa dentro do partido. É uma negação das próprias origens. Ao surgiu de dentro do PMDB, em 1988, a propaganda da sigla dizia: “Troque o M de mentira pelo S de sinceridade”. 37 anos depois, parece já não fazer diferença que na cadeira então ocupada por Ulysses Guimarães esteja agora sentado Eduardo Cunha. As letras se embaralharam de maneira irremediável.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
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